Dez anos sem Bruno Tolentino

Entre um momento de tradução e outro, passei este dia em que se completa uma década da morte do Bruno Tolentino relendo Os sapos de ontem… E pensando em como, em grande medida, todos nós caímos no culto de personalidade que ele criava em torno de si. Sim, eu o acho um grande poeta etc., mas ele estava o tempo inteiro gozando da cara de todos nós.

E não digo apenas de nós brasileiros, porque entre as várias invencionices dele, há uma, antiga, de sua década de 1980 passada principalmente em Oxford, que ele trouxe ao Brasil e que foi reproduzida na Veja sem que ninguém contestasse ou verificasse uma informação pública: a de que Martine, sua mulher (sem casamento civil ou religioso, porém), era neta do poeta René Char.

René Char não teve filhos. Porém, foi só em 2014, quando comecei a trabalhar em sua biografia, que descobri isso.

No entanto, se o caso sem dúvida não era aceitar tudo, também não era de duvidar de tudo. O próprio Bruno um dia me mostrou um cartão de Natal enviado por Samuel Beckett. Em 2014, em Paris, perguntei a Yves Bonnefoy: “Mas ele conheceu mesmo o Beckett?”. E Bonnefoy deu a resposta mais pé-no-chão: “Qual o problema? Se você frequentasse o meio literário de Paris naquela época, provavelmente conheceria Samuel Beckett.” (Em seu sotaque francês, Samuel Bekét, claro.)

Eu me pergunto até que ponto a mística que Bruno Tolentino criou em torno de si poderia ter colocado sua obra em segundo plano. Já conheci muitos escritores, de ficção e de poesia, e nenhum tinha 1% da exuberância pessoal tolentiniana (o que não significa que não tivessem um talento extraordinário). Às vezes também me parece que o estilo ensaístico brasileiro mais celebrado tem mais understatement do que toda a Inglaterra; e que se Tolentino tivesse chegado aqui exalando a civilidade blasé que esperavam que ele tivesse aprendido na Inglaterra (segundo a nossa visão brasileira — BBC period drama dos ingleses), em vez de ser uma espécie de Super-Homem Cordial buarquiano, sua “poética classicizante” (na expressão de Érico Nogueira) teria sido vista como marca de um saudável ecletismo da poesia brasileira.

(Mas claro que as coisas não são tão simples. Além de tudo, tendo passado trinta anos fora do Brasil, Tolentino construiu uma poesia com temas totalmente alheios à poesia brasileira que encontrou, sem que com isso eu pretenda desmerecer a produção da época. Todavia, este é um dos comecinhos do problema.)

De minha parte, resta o mesmo assombro da primeira vez que o li. Gostamos de poesia por causa da força com que algo é dito, da maneira como as palavras se impõem. Podemos apreciar o virtuosismo depois. Mas virtuosismo sem força são os trinta modelos de cartas de apreço ao sr. diretor.

O domínio do terror pânico no poema Dançarina espanhola, de Rainer Maria Rilke

Se me fizessem hoje a seguinte pergunta: “Qual foi o livro que fez a sua cabeça, nos últimos meses?”, eu poderia aproveitar a complexidade semântica da expressão e dizer: “Foi Rolling Words: A Smokable Songbook, de Snoop Dogg”. Mas estaria deliberadamente mentindo, já que nunca tive (e nem pretendo ter) um exemplar deste mui engenhoso livro em mãos. A resposta sincera à pergunta seria: Massa e Poder, de Elias Canetti. No entanto, a ideia de um songbook fumável me remete a um dos temas abordados pelo autor búlgaro neste livro monumental, o tema do fogo. Foram as reflexões de Canetti sobre o fogo que me fizeram ler, em nova chave, o poema Dançarina espanhola, de Rainer Maria Rilke.

De que modo? Logo verás!

1. “O fogo se propaga; é contagioso e insaciável”

Para Canetti, o fogo é um dos mais antigos símbolos da massa, da multidão que se acha fixada em determinada meta. “O fogo”, diz o autor, no último tópico da primeira parte do livro, “se propaga; é contagioso e insaciável. A violência com que atinge florestas, estepes e cidades inteiras é uma de suas qualidades mais impressionantes” (a edição de que me sirvo é a da Cia das Letras, 1995, tradução de Sérgio Tellaroli). Aquilo que antes se achava diferenciado, identificável em forma e conteúdo, sob a ação do fogo funde-se num todo indiferenciado; o fogo une tudo num instante. A “ausência de resistência possível ao contato com as chamas”, observa Canetti, “é algo sempre espantoso.”

O fogo também surge de súbito. Um incêndio nos toma de assalto. Sua propagação veloz é temerosa; seu poder de destruição, também. Os focos de incêndio podem surgir em qualquer lugar. Assim sendo, o fogo, diz o autor, também é “múltiplo”. E, não se trata apenas “do fato de que se tem sempre consciência de que ele existe em muitos, inúmeros lugares. O fogo é múltiplo em si: fala-se em chamas, em labaredas. Nos Vedas, o fogo é chamado ‘o Agni único, o multiplamente inflamado’”. Por fim, após consumar a sua meta, o fogo se dissipa e se extingue.

Pois bem, todas essas características inerentes ao fogo são também aquelas que descrevem a massa. Ao modo do fogo, a massa tende a se propagar, se ampliar, com velocidade; é igualmente contagiosa e insaciável; é difícil opor-lhe resistência, e assim por diante… A conexão entre uma coisa e outra fica evidente. Canetti ainda destaca que, “dentre os traços mais perigosos e constantemente ressaltados da massa, o que chama mais a atenção é a tendência a provocar incêndios.” Basta rememorarmos quaisquer grandes eventos históricos violentos em que a massa foi protagonista para nos certificarmos disso.

A raiz dessa tendência ao incêndio, Canetti a encontra na experiência milenar do incêndio nas florestas. “Há boas razoes para se supor”, diz o autor, “que os homens aprenderam a lidar com o fogo a partir dos incêndios nas florestas. Entre a floresta e o fogo há um vínculo pré-histórico evidente.” Tal como os animais que fogem em bando de uma floresta em chamas, os primeiros grupos de hominídeos também fugiam. Talvez nisso, inclusive, esteja a raiz da “massa de fuga”, cuja meta é evadir-se, em bloco, de uma situação perigosa.

Todavia, a experiência de ver uma floresta em chamas (causadas por algum fator natural) também deu aos homens primitivos a sugestão de usar o fogo para abrir espaços às habitações e às lavouras. O controle desse elemento proporcionou ao homem ter “o incêndio em suas mãos e não mais precisar temê-lo”. Assim, diz Canetti, “no lugar do velho medo alojou-se seu novo poder, e ambos firmaram uma aliança espantosa”, de modo que a massa “que outrora fugia do fogo sente-se agora fortemente atraída por ele. É conhecido o efeito mágico dos incêndios sobre homens de toda espécie.”

Sobre fogo, floresta e massa, Canetti remata, assinalando que “o homem carrega hoje em seu bolso um pequeno resquício dessa antiga e importante relação: a caixa de fósforos.” Certamente uma companheira fiel dos fãs/leitores de Snoop Dogg, a caixa de fósforos, para Canetti, “representa uma floresta homogeneizada de troncos isolados, cada um deles providos de uma cabeça inflamável. Poder-se-ia acender vários deles ou todos de uma vez e, assim, produzir artificialmente um incêndio na floresta. As pessoas podem sentir-se tentadas a fazê-lo, mas normalmente não o fazem porque o formato minúsculo de um tal acontecimento privá-lo-ia de todo o seu antigo fulgor.” A ação do fogo sobre os palitos de fósforos, tal como sobre milhares de árvores de uma floresta, é imagem primitiva do contágio que se aplica à massa. As labaredas “abraçam”, enredam troncos, galhos e folhas em seu turbilhão.

A relação com o fogo, no entanto, levou o homem mais longe. Lembra Canetti que “antigos costumes fazem também com que os homens se equiparem ao fogo.” Isto é, a simbiose entre o medo e o domínio deste elemento foi plasmada pelo homem em ritos diversos, nos quais ele próprio quer ser o fogo, ou ao menos tangenciar sê-lo, até o limite. Entre esses ritos, está aquele que Canetti nos dá como exemplo, a famosa dança do fogo dos índios navajos.

2. “E de repente é tudo apenas chama”

Os navajos, índios que vivem em regiões do estado do Novo México (EUA), em determinadas ocasiões, entre o pôr e o nascer do sol, praticam a dança do fogo. Este rito implica a execução de onze atos, que varam a madrugada. Canetti cita uma fonte etnográfica que descreve o fenômeno. Diz o texto que os promotores do rito, tão logo desaparece o disco solar, começam a dançar freneticamente em torno de uma enorme fogueira: “Apresentam-se quase nus e com o corpo pintado; os cabelos longos, eles os deixam movimentar-se livremente. Carregam bastões de dança com penachos na ponta e, em saltos frenéticos, aproximam-se das elevadas chamas.” O que os dançarinos querem é pôr fogo nas penas que adornam os bastões da dança.

Segue o relato: “Um disco, representando o sol, é alçado ao alto, e em torno dele tem prosseguimento a dança frenética. Cada vez que o disco é baixado e reerguido uma nova dança principia. (…) Homens pintados de branco adiantam-se e acendem pedaços de cascas na brasa já a se extinguir; depois, numa caçada selvagem, põem-se novamente a saltar em torno do fogo, lançando fagulhas, fumaça e chamas pelo próprio corpo.”

Dançando, os navajos são o próprio fogo, transformam-se nele. Como destaca Canetti, seus movimentos “são os das chamas. Aquilo que têm nas mãos e acendem deve causar a impressão de que eles próprios estão queimando. Por fim, dispersam as últimas fagulhas da brasa até o sol nascer e receber deles o fogo que dele os dançarinos haviam recebido ao findar-se o dia anterior.”

Quando li as observações de Canetti sobre o fogo como símbolo da massa e sobre rito dos navajos, descrito acima, me veio à mente o poema Spanische tänzerin, de Rainer Maria Rilke, escrito em junho de 1906, em Paris. Tal poema, Dançarina espanhola, em português, é um dos melhores e mais conhecidos do poeta austro-húngaro. Segue a tradução que dele fez Geir Campos (Cf. Rainer Maria Rilke. Poemas. Luzes no Asfalto, 2010, pp. 61-62):

Tal como um fósforo na mão descansa
antes de bruscamente arrebentar
na chama que em redor mil línguas lança –
dentro do anel de olhos começa a dança
ardente, num crescendo circular.

E de repente é tudo apenas chama.

No olhar aceso ela o cabelo inflama,
e faz girar com arte a roupa inteira
ao calor dessa esplêndida fogueira
de onde seus braços, chacoalhando anéis,
saltam nus como doidas cascavéis.

Quando escasseia o fogo em torno, então
ela o agarra inteiro e o joga ao chão
num violento gesto de desdém,
e altiva o fita: furioso e sem
render-se embora, sempre flamejando.
E ela, com doce riso triunfal,
ergue a fronte num cumprimento: e é quando
o esmaga entre os pés ágeis, afinal.

Logo de início temos a imagem do palito de fósforos que, quando entra em combustão, “mil línguas lança”, isto é, dispara labaredas até que sua cabeça esteja completamente inflamada. E assim a dançarina inicia a “dança ardente, num crescendo circular”. A imagem do fogo vai se ampliando, como o próprio fogo o faz. Vai se propagando, e incendeia toda aquela que com ele se pôs a dançar, até que tudo seja “apenas chama”. O olhar se torna “aceso”, toda a roupa gira como um redemoinho de fogo, toda a dançarina é uma “esplendida fogueira”, converte-se nesta fogueira – tal como desejam os navajos fazer, em seu rito. Mas, eis que “escasseia o fogo, em torno”. A dançarina então o domina por completo e atira ao chão, num “gesto de desdém”. Ela, inda agora “uma esplendida fogueira”, prestes a dar cabo de seus movimentos – cada um deles, imitando o das chamas, como no caso dos navajos –, impõe-se superior ao contágio do fogo que, irado, no chão, ainda inflama, insaciável. É quando, por fim, “altiva”, ela o fita e “o esmaga com os pés ágeis, afinal”.

Uma dançarina de flamenco, ou de qualquer outro estilo de dança espanhola similar, ao contrário dos índios navajos, não dança com o fogo, realmente; tampouco põe fogo no vestido, nos cabelos, nos olhos, etc. Mas Rilke imprime aos movimentos dela as imagens relacionadas a este elemento. Por quê? Parece-me que o poeta, mais do que ter meramente encontrado, em tais imagens, boas metáforas, utilizou-as a fim de explicitar intuições sobre a sensação de terror pânico que este tipo de dança evoca, bem como sobre o domínio sobre tal sensação que tem a dançarina espanhola.

É isso que abordo nos parágrafos seguintes.

3. “De hum panico terror todo assombrado”

Já disse que Elias Canetti analisa os símbolos da massa, dentre eles, o fogo, no último tópico da primeira parte de Massa e Poder. Entretanto, bem no início do livro, precisamente no oitavo tópico, o autor já deita tinta sobre o elemento roubado por Prometeu. O título do tópico em questão é “O Pânico”. Canetti define o pânico como “a desagregação da massa no interior dela própria.” Para explicar melhor o que isto quer dizer, ele dá um exemplo angustiante, o do incêndio dentro de um teatro.

As características arquitetônicas de um teatro são propícias para a deflagração do pânico, pois, Canetti, “quanto mais unidas as pessoas se encontram em função do espetáculo, quanto mais fechada a forma do teatro, que exteriormente as mantém coesas, mais violenta a desagregação”. Pois bem, imagine um teatro de médio ou grande porte, com várias fileiras de assentos, mas contando apenas com uma única porta para entrada e saída das pessoas. Imagine ainda que tal porta seja bem estreita. Se acontece um curto-circuito na fiação do teatro que, por sua vez, gera algumas labaredas de fogo que, rapidamente, passam a consumir o que encontra de inflamável pela frente, qual seria a reação mais provável do público que lota o recinto?

Ao contrário da “massa de fuga” que, a exemplo do incêndio na floresta, consegue formar grupos e partir em debandada, a reação da massa dentro de um recinto fechado, diante de um incêndio, é a mais hostil imaginável. Como bem expressa Canetti, “a energia da fuga transforma-se por si só numa energia do rechaço. (…) Quanto mais as pessoas lutam ‘por sua própria vida’, tanto mais claro se torna que lutam contra os outros, que, por toda parte, as estorvam.” Cada indivíduo que se encontra em semelhante situação procura, segundo Canetti, “escapar da massa que, como um todo, está em perigo. Como, porém, encontra-se ainda fisicamente nela, tem de combatê-la. Entregar-se à massa nesse momento seria a sua ruína, visto que ela própria está ameaçada de arruinar-se. Num tal momento, o indivíduo não se cansa de enfatizar sua singularidade. Com seus golpes e empurrões, ele atrai mais golpes e empurrões. Quanto mais golpes dá e recebe, tanto mais claramente sente-se a si próprio, e tanto mais nitidamente recolocam-se para ele as fronteiras de sua pessoa.”

A tal situação de “cada um por si” dentro de uma massa homogênea ameaçada, o intelectual francês Jean-Pierre Dupuy, comentando este trecho de Canetti, deu o nome de “paradoxo do pânico” (Cf. “Totalisation et Méconnaissance”. In: Paul Dumouchel [ed.], Violence et Vérité, 1985, pp. 110-135). É por isso que o pânico é “a desagregação da massa no interior dela própria.” E é surpreendente observar, continua Canetti, “o quanto a massa assume o caráter do fogo para aquele que combate em seu interior.”

Para o indivíduo que quer evadir-se da massa em terror pânico, as pessoas que ele se esforça em empurrar para longe são “objetos incandescentes; seu toque é-lhe hostil, assustando-o onde quer que elas lhe toquem o corpo. Quem quer que se interponha no caminho é contaminado por essa disposição genericamente hostil do fogo; a maneira como este se propaga, como vai paulatinamente cercando as pessoas e, por fim, as envolve por completo, assemelha-se bastante ao comportamento da massa, a ameaçá-las por todos os lados.” Isto porque os “movimentos imprevisíveis em seu interior, o braço, o punho, a perna que sobressai, são como chamas, capazes de, subitamente e por toda parte, erguerem-se em labaredas.”

Em suma, o que a peça de teatro não consegue o fogo consegue: a todos une, mesmo a contragosto; une a todos em terror pânico. A expressão, com pânico figurando como adjetivo de terror, não é à toa. Inclusive, ela aparece em certo momento do Canto III, de Os Lusíadas: “De hum panico terror todo assombrado”. Pânico vem de Pã, do deus Pã, que significa “tudo”, que a tudo engloba. Terror pânico é, portanto, a sensação de medo em sua plenitude, individual e coletivamente. É esta sensação que o símbolo do fogo traz à tona. Na condição de símbolo da massa, o fogo penetrou a economia psíquica do homem, traduzindo-se, diz Canetti, “num seu componente imutável. Aquele enérgico pisotear de homens que tão frequentemente se observa em situações de pânico e que se afigura tão sem sentido nada mais é do que um pisotear o fogo, com o intuito de apagá-lo.”

A essa altura, posso voltar ao poema de Rilke.

Ao assistir, em um teatro ou em uma arena, o número de uma dançaria espanhola, Rilke pode ter ficado bastante impressionado com o modo como todos os espectadores vão sendo enredados pelos movimentos da dança. A dançarina encarna em si mesma o paradoxo do pânico. Ela, por meio de seus movimentos, ora sedutores ora hostis, oferece aos espectadores que formam a massa homogênea a imagem do turbilhão desagregador no qual essa mesma massa pode se transformar. Ela é o fogo e, ao mesmo tempo, é a massa que dele quer se evadir.

O seu domínio sobre o terror pânico se desvela quando ela esmaga o fogo com os pés precisos, e não com um pisotear desesperado dos sujeitos tomados pelo medo em um recinto fechado, sob incêndio. Ela cumpre uma função que a massa, em pânico, não consegue: retomar a homogeneidade. Canetti, mais uma vez, é certeiro: “A desagregação pelo pânico somente se deixa evitar na medida em que se prolonga o estado original de medo experimentado homogeneamente em massa. Numa igreja ameaçada, isso é possível: compartilhando do medo, as pessoas rezam para um deus comum, que tem nas mãos a possibilidade de, através de um milagre, extinguir o fogo.”

A dançaria espanhola, em seu número, encarna este papel “divino”, primeiramente sugerindo aos espectadores, com sua indumentária e seus movimentos, a imagem ancestral do fogo e sua potência contagiosa. Depois, ela livra do pânico desagregador a massa que a observa, na arena ou no teatro, atirando o fogo hostil ao chão, e o extinguido, ao pisá-lo, com os seus “pés ágeis, afinal”.

Tercinas sobre a fugacidade de tudo

De Hugo von Hofmannsthal, com tradução de Vasco Graça Moura.

I

Inda lhes sinto o hálito na face:
pode lá ser que este correr de dias
para sempre e de todo assim passasse?

Ninguém entende coisa tão estranha,
cruel demais pra queixas e agonias:
que deslizando, nada se detenha.

E que o meu próprio eu, imperturbado,
de um menino pequeno até mim venha,
cão de estranheza inquieto e tão calado.

Mais: que eu fosse há cem anos, e sabê-lo,
que cada avô dos meus, amortalhado,
esteja tanto em mim como o cabelo,

sendo um comigo como o meu cabelo.

II

As horas! Onde nós o azul claro
do mar vemos e a morte se nos fez
leve e sem medo, em festa e sem reparo,

como meninas só de palidez
e grandes olhos sempre se resfriam,
e à tarde olham perdidas, na mudez

de ver que a vida, enquanto adormeciam
seus membros, lhes fluiu silente e langue
em árvore e erva, e tímidas sorriam,

como uma santa enquanto verte o sangue.

III

Nossa matéria aos sonhos é igual
e os sonhos abrem olhos à maneira
de umas crianças sob o cerejal.

Das copas, ouro pálido se esgueira
da lua-cheia e a vasta noite alcança…
senão, sonhos não há à nossa beira.

Vivem aí qual riso de criança,
e como a lua-cheia sobem, descem,
quando desperta sobre a fronde avança.

O mais íntimo se abre a quanto tecem;
quais mãos-fantasma sempre num tristonho
espaço estão em nós e vida oferecem.

E os três são um: homem e coisa e sonho.

Poemas psicografados

Ressuscitando um clássico de 1999…

Não fui eu mais que um instrumento:
a mão de algum fantasma oculto
rende, dos silêncios do além,
esta homenagem às avessas.

1. Manoel de Barros – “Sapiência dos vagalumes”

I. Ode à filosofia das plantas

O sonho de todo girino é ser nuvem.
Os olhos das pedras cheiram a manhã.
Os besouros enobrecem a terra.

Se uma pedra se pergunta “quando nasci?”
então os céus enfolham e deságuam
em vertigens e delicadezas minerais.

*

II. Compreensão da clorofila

Hoje meu pâncreas fez fotossíntese.

*

III. Legalize Santo Daime

Conheci ontem Lucélia Santos.
Ela me passou uma paz de libélula,
dessas que nem os tuiuiús conhecem.

Então o céu enluarou.
Meus olhos de capivara arderam em flor.

***

2. Elisa Lucinda – “Sonhos de batedeira”, inspirada em Isaac Asimov

A vida da batedeira é só bater, brum brum brum ou então ficar desligada
Ela só existe para fazer bolo, pudim, essas coisas gostosas que agradam os maridos
E dificultam a vida das empregadas domésticas que só querem ver novela.
Quando passa novela a televisão fica apaixonada
E todos os móveis da casa passam a gemer de amor e ficam só gemendo
A noite inteira e a louça que está na máquina também fica cheia de amor
Mas a batedeira que só bate brum brum brum fica toda enciumada
Porque sempre que há amor ela está muito cansada de ter ficado o dia inteiro
Batendo aqueles bolos e pudins que ela nunca vai comer.
Então ela tem um dilema: “Desligar ou não desligar?”
Porque se é para sempre perder a festa dos amigos e nunca namorar
Talvez seja melhor nem existir, pois é melhor não existir do que viver só pra escangalhar.

***

3. Chacal

a vida é assim, é assim mesmo
às vezes beber, as vezes não
o que importa é ter o pé no chão
que é pra nunca andar a esmo

é preciso liberdade, meu irmão
é preciso que todo mundo seja feliz
e ande por aí cantando essa canção
que eu compus com meu nariz

a festa não pode acabar

***

4. Paulo Leminski, “Variações sobre um tema de Chacal”

não sei se a vida é assim mesmo
ou se assim mesmo é que é a vida
só sei que é vida e é vida mesmo
vida vida mesmo vida mesmo mesmo vida

onde é que está o mesmo da vida?
ou não está?
quem procura acha?
e se eu morrer atropelado no próximo cruzamento…
ainda assim é vida mesmo?

a cidade… as pessoas… tudo me olha

como

Kiss and tell, tudo mentira

Isto tudo é verdade verdadeira:

O ponto é: ensina-se poesia, aqui, como uma justificada sucessão de assassinatos, até que, finalmente, se chegue ao modernismo mais chinfrim, do tipo “amor: humor”, como se chega ao paraíso. Imaginem um professor italiano dizendo que Ungaretti, sim, é que é bom, e aquele almofadinha do Carducci faz muito bem em ficar na penumbra; ou um francês dizendo que Apollinaire salvou a França do rendilhado de Gautier; um alemão afirmando que Celan estirpou a praga de Rilke… — seria caso de polícia, acreditem. No Brasil não; e a criançada continua aprendendo que “amor: humor” é ‘a’ poesia brasileira de verdade, enquanto “Ora o surdo rumor de mármores partidos” não passa de afetação…

Em meu último semestre na Faculdade de Letras falei algo semelhante para a professora da matéria de Literatura Brasileira II: “Por que se ensina que o modernismo veio em 1922 para nos salvar dos almofadinhas? Não tínhamos Machado, Augusto dos Anjos? Quem precisava de salvação?” A professora disse que havia Coelho Neto. Façamos pois um movimento literário contra a Hebe Camargo.

Dito de outro modo, a história da poesia brasileira ensinada nas escolas é um kiss and tell cujo kiss nunca aconteceu e cujo tell é prá lá de chinfrim. Agora, a mulher que foi difamada pelo idiota que diz que a beijou volta de panela na mão para arrebentar o safado.

Dicta&Contradicta, #06

Minha contribuição é mais uma “Anatomia do Poema”, continuando a exploração da idéia de estilo baço.

E, para dizer a verdade, essa é a Dicta que eu mais tenho vontade de ler! Ainda que, admitamos, o título “O caminho para a Casa-Grande” não seja propriamente auspicioso. O autor, porém, escreveu uma tese que parece muito interessante: Nos sertões do poente: conquista e colonização do Brasil Central.

Ovídio em Ruanda

Enquanto aqui na Zona Sul carioca podemos nos ater a uma espécie de catolicismo burguês e satisfeito consigo, outras pessoas passam por situações extremas e fica a pergunta: o que dizer a elas? Não acredito por um segundo que o mal questione a possibilidade do cristianismo, mas me pergunto, sim, que exemplo ou que palavra eu poderia oferecer às mulheres estupradas de Ruanda.

Clique no link, e veja que, apesar da história de horror que envolve um sacerdote, a filha que nasceu dos estupros em série, praticados por vários homens, usa uma cruz. O que também é um grande exemplo para as pessoas que se julgam puras demais para pertencer a uma igreja.

Ovídio no Terceiro Reich
Geoffrey Hill
Tradução de Pedro Sette-Câmara; ver outra tradução

non peccat, quaecumque poteste peccasse negare,
solaque famosam culpa professa facit.
(AMORES, III, xiv)

Gosto do meu trabalho e de meus filhos. Deus
é distante, difícil. Dão-se coisas.
Perto assim das antigas tinas de sangue
a inocência não é arma terrena.

Uma coisa aprendi: a não desprezar tanto
os condenados. Eles, em seu plano próprio,
têm estranha harmonia com o amor
de Deus. Já eu, no meu, festejo seu coral.

Ovid in the Third Reich
Geoffrey Hill

non peccat, quaecumque poteste peccasse negare,
solaque famosam culpa professa facit.
(AMORES, III, xiv)

I love my work and my children. God
Is distant, difficult. Things happen.
Too near the ancient troughs of blood
Innocence is no earthly weapon.

I have learned one thing: not to look down
So much upon the damned. They, in their sphere,
Harmonize strangely with the divine
Love. I, in mine, celebrate the love-choir.

Cordel liberal para acompanhar as eleições

Nos primeiros dias de 2003, um romance então recém-lançado captou exatamente o meu estado de espírito diante da chegada do PT à presidência: Brás, Quincas & Cia, de Antonio Fernando Borges. Creio que o romance estava “certo” (aspas porque um romance não é um ensaio que propõe uma tese) ao falar de como a sutileza perde prestígio para a superficialidade. Parece a coisa mais banal do mundo, a coisa que só acontece com os outros por excelência, até que você percebe que em 2003 não seria tão fácil confundir a direita mesma com um antipetismo tão epidérmico e gratuito que não enxerga nem mesmo que José Serra não é nem conservador, nem liberal, mas apenas o adversário viável do partido que se espera derrotar.

Recebi de Martim Cardoso o poema abaixo e me lembrei da experiência de ler aquele romance em 2003. Alguém está dizendo o que eu queria dizer. A linguagem, é claro, é outra; aqui temos uma poesia ligeira (ligeira no melhor sentido possível, para ler e guardar imediatamente, para repassar e repetir) e relevante, um cordel urbano e liberal.

Obrigado, Martim, por ter escrito isto.

Cidadão, não companheiro
Martim Cardoso

Prefiro cidadão a companheiro
Salvo se escolho acompanhar
Prefiro por opção e por inteiro
Não por alguém me obrigar

Prefiro igualdade na lei
Que igualdade em tudo mais
Dispenso veleidades de rei
Mantenho veleidades reais

Reais até na ilusão
Que se possa acalentar
Meu direito à decepção
Ninguém ouse roubar

Prefiro iniciativa privada
Com certa dose de risco
A uma vida empatada
Encalacrada no Fisco

No sustento do impostor
(Daí o nome imposto)
Na falta de pudor
De quem assume um posto

E trabalha em causa própria
Como se dele fosse o Estado
São cenas muito impróprias
Para as quais sou tributado

Prefiro que a sacanagem
Seja restrita à cama
Nada a ver com vantagens
Estranhas a quem ama

A quem ama seu semelhante
Por mais que declare fazê-lo
O Estado, quando gigante,
Ninguém consegue detê-lo

Prima pela voracidade
De olho em todos os ganhos
Minguando-os à vontade
Conforme seu tamanho

Dando pouco em troca
Mas com que estardalhaço
Uma bola para a foca
Um nariz para o palhaço

Prefiro cidadão a companheiro
Salvo se escolho acompanhar
Prefiro por opção e por inteiro
Não por alguém me obrigar

As horas de Katharina

Nas livrarias, dia 30, já em pré-venda na Cultura, As horas de Katharina.

E com comentários de Juliana Perez e notas de Jessé Primo. Conheço os dois e acho que não haveria ninguém melhor para trabalhar no livro. Juliana tem uma percepção muito aguda da obra de Bruno Tolentino, e Jessé, prestem bastante atenção, tem o melhor ouvido para poesia do Brasil.

Por ora, estando eu aqui exausto e atarefado, só poderia dizer que, num tempo remoto e distante, a peça finalmente publicada neste volume foi lida na Casa da Gávea, com Júlia Lemmertz no papel de Katharina. Foi uma noite memorável.

Este aqui é o segundo poema do livro:

Noturno
Bruno Tolentino

I.

Porque o amor não entende
que tudo quer passar,
nunca, nunca consente,
a nada o seu lugar.

Planta presa, de alpendre,
sacudindo no ar
braços impenitentes,
tenazes, em lugar

de aceitar que não prende
nada, o amor quer dar
apaixonadamente
laços à luz solar

e é noite de repente.

II.

Se ainda te iluminar
com um olhar novamente,
sei que não vais estar
tão perto; a alma entende,

o corpo quer gritar!
Porque o olhar apreende
mais do que alcança dar,
à distância, na mente,

de que vale um olhar
com a noite pela frente?
Essa noite que tende
a unir e separar

inapelavelmente…

Inovações técnicas (iminentes) na poesia

O assunto me interessa demais e o tempo para elaborá-lo é de menos (diversas coisas têm-me afastado do blog), mas preciso fazer algumas observações sobre o que diz o Érico:

1. Creio que o próprio Mattoso Câmara, com a teoria do grupo de força, aponta o caminho para a criação de um novo pé métrico em português. Poderíamos experimentar com versos em que se contam primariamente o número de vezes em que as intensidades se repetem, e não o número de sílabas métricas. Mas isso é só o começo. Como os estudos prosódicos ainda são relativamente incipientes no Brasil, pode ser que estejamos numa posição semelhante à dos pintores renascentistas, com mundos a descobrir.

2. Já apresentei a questão do “v’rão” europeu a uma professora minha de fonética e fonologia, que me disse que um espectrograma ainda acusaria a presença da vogal que nos parece perdida. Creio que aí há um problema de dar à máquina a primazia sobre o ouvido, que é um problema porque não falamos com máquinas, e sim com pessoas. O ouvido acusa que um verso como “por mares nunca dantes navegados” tem na Europa no máximo 9 sílabas: “por mares nunca dantes nav’gados”. Digo no máximo porque me parece possível comer outras sílabas de maneira realista, mas prefiro parar por aqui porque nunca sequer pisei em Portugal…

Falei há pouco de pintores renascentistas de propósito. Há muito mais na poesia do que a simples formação da sensibilidade pessoal. Há em qualquer arte a necessidade de pesquisa, e boa parte das obras que mais valorizamos está em busca de inovações técnicas. O esquema poundiano de inventores, mestres e imitadores segue a lógica de fazer uma descoberta técnica, explorar as possibilidades abertas pela descoberta e depois apenas repetir aquilo que já foi esgotado. O poeta que, hoje, não tem nenhum interesse pela grande área da fonética, está condenando a si próprio a nunca testar os limites do seu material.