Joaquim Nabuco fala da poesia brasileira dos séculos XX e XXI

Tenho lido Minha formação, de Joaquim Nabuco. Livro sensacional, que me impressiona por sua atualidade, isto é, por sua pertinência. Nabuco, por exemplo, não teve pruridos nacionalistas ao tratar de questões como a existência de uma classe culta no Brasil cujas referências estão na Europa.

Há alguns anos iniciei uma série de posts chamada “Minha formação”, numa alusão irônica ao título deste livro — as Celias Brookes não captaram a ironia, porque ela não veio em neon rosa, nem cercada de emoticons piscantes que avisassem: “oi, sou uma ironia!” Porém, mal sabia eu que provavelmente terei de incluí-lo na série, caso venha a retomá-la. Nesse momento, tenho pensado que pouca coisa seria mais proveitosa ao Brasil do que retornar ao pensamento do século XIX.

Abaixo, um dos vários trechos do livro que tenho vontade de reproduzir, e que demonstram a sua pertinência.

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Renan me dera o conselho, que transmito à nova geração de literatos, de entregar-me a estudos históricos. Não há em regra nada mais ingrato, mais fútil, do que a produção que o indivíduo tira toda de si, e é o que acontece quando o talento não tem uma profissão literária séria. Há estudos, como as humanidades, que são apenas a habilitação do espírito para a carreira das letras; quem os tem pode dizer que possui a ferramenta do seu ofício; além da ferramente, há, porém, que escolher o material. O material em que trabalham os nossos homens de letras são os costumes, a sociedade, quando são romancistas ou dramaturgos; as leituras, quando são críticos; a própria vida ou impressões, quando são poetas.

O material preferido é, como se vê, todo ele pouco consistente, efêmero, em parte grosseiro, em parte imprestável ou insuficiente, e assim a produção é quase toda fácil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigações, sem esforço, sem tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição. Faltando a disciplina e a emulação de uma especialidade, que acontece? A inteligência contrai o hábito da dissipação, da indolência, do parasitismo; o talento relaxa-se, perde todo o peso específico. Temos por isso uma literatura desocupada; o nosso campo literário é composto de flâneurs… A verdade e que vai aumentando consideravelmente em nosso tempo o que Matthew Arnold traduziu por inacessibilidade às idéias, e que esse novo filistinismo reduzirá a arte dos nossos banquetes literários a um só gênero de iguarias, o gênero nature. O público, o protetor moderno das letras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não passa de uma mecenas de meia cultura, mesmo em França e na Inglaterra. Aconselhar a jovens brasileiros que se dediquem a estudos históricos desinteressados é aconselhar-lhes a miséria; mas as leis da inteligência são inflexíveis e a produção do espírito que não se alimenta senão de sua própria imaginação tem que ser cada dia mais frívola e sem valor.

O cânone acidental

Quarta-feira, 17 de março, na É Realizações, será lançado O cânone acidental, de Marco Catalão. Livro excelente. E o prefácio de Érico Nogueira não fica atrás. Aproveitai, ó, paulistas, e comparecei.

Escrevi sobre um dos poemas para a última Dicta, como também, vejam só, fiz a orelha do livro. Vocês podem lê-la abaixo.

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O cânone acidental é o elo perdido entre a poesia consagrada, a vida cotidiana e o humor. Por que perdido? Porque seria natural esperar que um certo espírito paródico e galhofeiro nos freqüentasse mais. Não aquele espírito meramente irreverente que, bravamente apoiado pela academia e pela imprensa, ousasse afetar nojinho pelos tabus da mítica sociedade conservadora, mas um espírito que viesse nos ajudar a purgar, ou purificar, os sentimentos que nos dificultam estar aqui-e-agora (com o perdão do heideggerianismo), isto é, ser brasileiros, falantes de português, escolarizados, com essa poesia que mais nos pesa do que nos ajuda. Aí entra o humor.

Um momento. O professor empertigado em sua solenidade estética e estrambótica certamente já se horroriza com a sugestão de que a poesia, ainda mais humorística, pode ter um efeito terapêutico (heideggerianos, excavem metafisicamente essa última palavra para me entender). “A poesia não serve para nada”. Uns dizem isso para fazer troça dela, e outros para se orgulhar, como se o serviço fosse uma coisa indigna. Pois toda poesia serve para alguma coisa. Se o senhor não tivesse alma, talvez ela não servisse; mas, como tem, ela serve. Portanto, caro professor, continuemos.

Marco Catalão combina a linguagem e os temas contemporâneos com os ritmos dos poemas consagrados. A geração que era obrigada a decorar Camões na escola — e diversas pessoas acima de uma certa idade podem despejar sonetos e mais sonetos como um iPod sem stop — pode recuperar, por exemplo, os “Sete anos de pastor” depois de rir da paródia que lhe é dedicada. Claro que para as gerações mais novas é preciso uma nota de rodapé para explicar quem é Jacó etc. Os (que se julgam) românticos inveterados, aqueles amantes de MPB para quem o “Soneto de fidelidade” é “aquela parada linda que tem no fim de ‘Eu sei que vou te amar’ do Tom Jobim” podem, após conhecer — para usar uma palavra da moda — a releitura que lhe faz Catalão, talvez até descubram as benesses de se abrir um livro. Dentro de uma biblioteca. E aqueles que foram oprimidos na escola pelas promessas de uma vida de classe média que Dirceu já prometia à Marília em priscas eras verão que, pós-modernamente, contemporaneamente, no século XXI e no alvorecer de uma nova era da comunicação um neo-Dirceu ressentido lhe garante que o sonho dourado da classe média não se tornará realidade para ela: não será famosa.

O leitor há de se reconhecer nisto tudo. Nem que seja no seu desejo inconfessado de ser famoso também (“Quem? Eu? Eu não!”). Ou na fingida indiferença com que, já pai de família, olha as adolescentes saindo da escola… Depois dessa, só falta ressaltar novamente o caráter terapêutico da poesia e deste livro em particular. Leia-o. Rápido. Reconheça-se nas situações descritas e, com uma boa gargalhada, expulse os maus sentimentos de você. Depois, plenamente acalmado, retorne àquela poesia em que esta se baseia, para redescobri-la, límpida, sem a poeira de um cânone aparentemente alheio e distante.

O estilo baço

Enquanto não encontro o tempo devido para retomar as discussões do momento, deixo aqui um trecho de um ensaio de Auden que diz respeito a uma antiga preocupação minha, e que também vai como um acréscimo a um antigo post de Érico Nogueira. Interessante é observar que Érico fala em “poesia dramática”, que Ezra Pound decerto diferenciaria de “teatro em versos”. O encontro entre a poesia e o drama, senhores, é mais raro do que se imagina (ou quiçá impossível).

Uma outra observação, lamentando que no momento eu só possa mesmo fazer observações, é que a solenidade parece ter-se tornado inviável. As tragédias contemporâneas — penso em Tennessee Williams e Nelson Rodrigues — não têm personagens “elevados”, mas pessoas comuns. Creio que isso se deva à própria dessacralização da política. Hoje é impossível não imaginar uma aula de literatura em que não se diga que a promessa feita por Édipo no início de Édipo Rei de livrar a cidade da peste é uma espécie de “populismo”. Não esqueçamos ainda de que é mais fácil um rico entrar no Reino dos Céus do que um comentarista conseguir não reduzir Antígona a uma espécie de dissidente política. Sempre tenho a impressão de que ainda vão querer julgar Creonte na Corte de Haia por violações de direitos humanos. Se você acha que estou exagerando, pode ficar sabendo que o nobelizado Seamus Heaney, ao ser convidado para fazer uma versão de Antígona , declarou ter encontrado a motivação para o trabalho em George Bush

(Não digo isso para reclamar da dessacralização da política, pelo contrário. Prefiro mil vezes o Lula a um sujeito que se ache descendente dos deuses ou ungido por Deus. O que não posso é fingir que isso não tenha conseqüências para a literatura.)

Agora que escrevo, percebo que essa versão de Heaney provavelmente encarna tudo aquilo a que Auden se refere; e que provavelmente os tragediógrafos gregos já evidenciam essa dessacralização, ao menos em suas atitudes (Ésquilo sendo “mais sacro” e Eurípides menos). Mas a arte é longa, a vida é curta, e vou deixar vocês com Auden.

A julgar pelos poemas que escreveram, todos os poetas modernos que admiro parecem compartilhar minha convicção de que, na época atual, a poesia que pretende ser falada ou lida não pode mais ser escrita em estilo elevado, nem precioso, mas apenas em estilo baço [drab], usando esses termos no sentido com que C. S. Lewis os usava. Por estilo baço refiro um tom de voz calmo, que deliberadamente evita atrair atenção para si, enquanto Poesia com P maiúsculo, e uma certa modéstia nos gestos. Sempre que um poeta moderno levanta a voz, ele, como se fosse um homem usando peruca ou sapatos de plataforma, me causa um certo desconforto.

Tenho as minhas teorias — e imagino que meus colegas também tenham as deles — sobre por que as coisas são assim, mas não vou entediá-los infligindo-as a vocês. Para a poesia não-dramática, isso não cria nenhum problema; mas, para o drama em versos, cria. Ao escrever suas peças em versos, Eliot tomou, creio, o único caminho possível. Excetuando alguns momentos peculiares, manteve baço o estilo. Não consigo acreditar, porém, que ele tenha ficado muito feliz por ter de fazer isso, pois atuar em público é, como dizemos, “fazer cena”; isso é coisa que um estilo elevado pode fazer despudoradamente, mas um estilo baço é obrigado a fingir que não está “fazendo cena”. O que tentei mostrar foi que, enquanto forma de arte que inclui palavras, a ópera é o último refúgio do estilo elevado, a única arte para a qual um poeta nostálgico daquelas épocas passadas, em que os poetas podiam escrever de modo grandiloqüente por si próprios, ainda pode contribuir, desde que se dê ao trabalho de estudar o métier e tenha a sorte de encontrar um compositor em quem acredite.

W. H. Auden, “The World of Opera”. Secondary Worlds. Faber and Faber: Londres, 1968. p. 102

Leia o trecho no original.

Para um breve resumo do que C. S. Lewis quis dizer com drab style, ver este trecho do livro de Arana sobre Auden.

Canção do Narciso maduro

Qual Narciso maduro prestes a vingar-se,
abre os olhos, enxerga nada além do espelho,
e pergunta ao chão, teu destino e teu disfarce,
se aquilo na parede é um escaravelho.
Foi ontem que matamos nosso amigo,
e hoje nós o amamos mais que nunca.

Coisas há que apenas se praticam, jamais
são mencionadas; nem são feitas escondidas,
mas sempre à plena luz, e sem quaisquer sinais
que as apontem, perpetuamente protegidas.
Foi ontem que matamos nosso amigo,
e hoje nós o amamos mais que nunca.

Eis que vai sumindo a cidade na distância;
o caminho, somos nós que o vamos inventando;
nós podemos; sim; não queremos ambulância;
a certeza, somos nós que a vamos inventando.
Foi ontem que matamos nosso amigo,
e hoje nós o amamos mais que nunca.

The Triumph of Love

Geoffrey Hill, The Triumph of Love. New York: Houghton Mifflin, 1998

LIV

Entertainment overkill: that amplifier
acts as the brain of the putsch. The old
elixir-salesmen had no such entourage
though their product was superior; as was
their cunning oratory.
For the essentials of the cadre, Wordsworth’s
‘savage torpor’ can hardly be bettered
or his prescience refuted.
What it is they possess — and, at some mean
level, Europe lies naked to their abuse —
is not immediately
in the grasp of their hand. They are as vassal-
lord-puppet-strutters, not great scourges of God.
A simple text would strike them
dumb, and is awaited. Meanwhile
they are undeniable powers of this world,
closely attended in their performance
of sacral baseness, like kings at stool.

LV

Vergine bella — it is here that I enquire
a canzone of some substance. There are sound
precedents for this, of a plain eloquence
which would be perfect. But —
ought one to say, I am required; or, it is
required of me; or, it is requisite that I should
make such an offering, bring in such a tribute?
And is this real obleigation or actual
pressure of expectancy? One cannot purchase
the goodwill of your arduously simple faith
as one would acquire a tobacconist’s cum paper shop
or a small convenience store
established by aloof, hardworking Muslims.
Nor is language, now, what it once was
even in — wait a tick — nineteen hundred and forty-
five of the common era, when your blast-scarred face
appeared staring, seemingly in disbelief,
shocked beyond recollection, unable to recognize
the mighty and the tender salutations
that slowly, with innumerable false starts, the ages
had put together for your glory
in words and in the harmonies of stone.
But you have long known and endured all things
since you first suffered the Incarnation:
endless the extortions, endless the dragging
in of your name. Vergine bella, as you
are well aware, I here follow
Petrarch, who was your follower,
a sinner devoted to your service.
I ask that you acknowledge the work
as being contributive to your high praise,
even if no-one else shall be reconciled
to a final understanding of it in that light.

Em que Yeats explica o mecanismo do bode expiatório

The Leaders of the Crowd
W. B. Yeats

They must to keep their certainty accuse
All that are different of a base intent;
Pull down established honour; hawk for news
Whatever their loose fantasy invent
And murmur it with bated breath, as though
The abounding gutter had been Helicon
Or calumny a song. How can they know
Truth flourishes where the student’s lamp has shone,
And there alone, that have no Solitude?
So the crowd come they care not what may come.
They have loud music, hope every day renewed
And heartier loves; that lamp is from the tomb.

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