Publicado originalmente em Pequena Morte.
Nascido no Rio, vencedor do finado prêmio Nestlé em 1994 por Que fim levou Brodie?, autor de dois romances publicados pela Companhia das Letras – Brás, Quincas & Cia (2002) e Memorial de Buenos Aires (2005) -, Antonio Fernando Borges destaca-se por conseguir, em seus livros, misturar a reflexão sobre a própria literatura, fazendo referências a Borges e Machado de Assis, com a reflexão sobre a natureza do tempo e a relação entre a consciência individual e pressão social, não através de choques diretos, mas de pequenas situações de desconforto.
Além da língua e da ortografia, existe algo que demarque nitidamente a nacionalidade de uma literatura? Existe uma sensibilidade brasileira que difere em algum ponto fundamental de uma sensibilidade portuguesa, por exemplo, e permite sua identificação?
Sou, por temperamento, avesso a determinismos de toda ordem – com especial aversão pelos determinismos lingüísticos e (argh!) sociológicos. Essa tropa de choque, cujo nome é Legião, vive tentando nos convencer de que a sensibilidade, o pensamento, o espírito (enfim, o que há de melhor em nós) são coisas sempre delimitadas por fronteiras geopolíticas e por estruturas e categorias verbais. Parecem esquecer que, se fosse assim, só os russos poderiam compreender e admirar Dostoievski, e o acesso à obra de Shakespeare estaria comprometido para além dos limites do velho império britânico…
De minha parte, além de ser católico, sempre “comunguei” da idéia de Tolstoi: a aldeia mais modesta merece (e deve) ser cantada de uma perspectiva universal. Nacionalidades e especificidades são aspectos inegáveis, mas necessariamente óbvios e secundários. O resto é humanismo barato…
Quanto a uma possível “sensibilidade brasileira”, infelizmente não há como deixar de ver e lamentar o abismo cada vez maior que separa o Brasil da espécie humana. Nesse sentido, são “coisas nossas”: a incapacidade de distinguir o que é verdadeiro daquilo que é a mera projeção de uma vontade infanto-juvenil; nosso gosto romântico (“brasileiríssimo”!) pelo coloquial e pelo popular, de trágicas conseqüências não só estéticas, como o Modernismo e a MPB, mas sobretudo políticas e morais, como o populismo e o MST.
Enfim, para tentar uma síntese: o que nos distingue da matriz portuguesa é aquilo que temos de pior.
Apesar de comum no mundo anglo-saxônico, o jornalismo literário de fôlego – penso em livros jornalísticos inteiramente devotados a um único assunto escritos por jornalistas, e não em matérias e artigos – nunca pegou no Brasil, apesar da admiração que muitos brasileiros têm por seus representantes, como Truman Capote. Por que são tão poucos – só consigo lembrar de alguns títulos voltados a escândalos da política – os livros jornalísticos por aqui?
Arrisco uma tese: o jornalismo praticado no Brasil é uma mistura de propaganda ideológica e fantasia, temperada com uma boa dose de incultura e preguiça crônicas. Diante, por exemplo, do presidente Lula ou do Santo Papa, nossos homens de imprensa se comportam sempre como militantes políticos – servis ao primeiro, revoltados contra o outro. Ou seja, são capazes de se curvar diante da autoridade, mas nunca diante das evidências.
A questão é que o jornalismo literário a que você se refere requer não apenas talento e conhecimento, mas principalmente uma postura de admissão e aceitação objetiva da verdade dos fatos – um exercício de humildade que a arrogância tupiniquim tornou absolutamente inviável. “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”, dizia Fernando Pessoa. Mas sabedoria, por aqui, já viu, não é? É brinquedo que não tem mais, ou – pior! – nunca fez parte do estoque.
Na falta disso, o máximo de literatura a que nosso jornalismo consegue aspirar é o famigerado gênero da crônica – uma praga que se espalhou entre nós como planta daninha. Com as honrosas exceções de sempre (Rubem Braga, Nelson Rodrigues e uns poucos mais), é sob a sombra confortável deste rótulo que boa parte de nossa subliteratura se abriga.
Afrânio Coutinho escreveu que “no Brasil, a vida literária é mais importante do que a literatura”. Hoje existe uma cena literária forte no Rio de Janeiro, e a impressão é de que a cada leitor corresponde um aspirante a autor. Você acha que a ingenuidade literária hoje é maior do que em outros tempos, e que a vida literária se tornou ainda mais ou finalmente menos importante do que a literatura?
Mais uma tirada afiada do decano. Nossa imortal “sede de nomeada”, de que falava Machado de Assis no genial Brás Cubas, sempre dotou o Rio de Janeiro (desde os tempos do Império) de uma vida literária intensa – e de uma literatura pífia. Nisso, para lembrar uma tirada impagável de Gustavo Corção, ela sempre pareceu um bordel: muito barulho e pouca fecundidade…
Que todo leitor seja um aspirante a escritor não é o que mais admira e consterna: o pior é esta hipótese absurda para que talvez haja mais escritores do que leitores (falo de literatura especificamente, não do mercado editorial em geral): arriscaria dizer que muitos de nossos jovens autores já escreveram mais livros do que leram, no sentido mais profundo da palavra.
Mas eu não chamaria isso de “ingenuidade literária”: é malícia da grossa, malandragem das piores!
Você acredita que a formação do romancista é um processo essencialmente solitário ou que o contato físico ou epistolar com outros romancistas é importante? Pergunto isto porque tenho a impressão de que o contato entre poetas é mais comum e mais decisivo para seus escritos do que o contato entre romancistas.
A solidão está na base da formação dos grandes espíritos. Escrever, como ler, pressupõe aquela “interrupção temporária e corajosa de toda a ligação com o mundo” de que falava Santo Agostinho. São muitos os exemplos de pessoas que se aprimoraram no recolhimento e na solidão.
Claro que não existe receita para isso, porque também se pode aprender através do convívio, da aceitação da crítica e das sugestões dos outros. No meu caso, atuo na solidão, em termos literários – mas como esta resposta não pode ignorar a resposta anterior, desconfio que não estou perdendo muita coisa do convívio intenso e vaidoso da atual cena literária da cidade e do país.
Quanto à diferença entre poetas e romancistas, acho que isso acontece porque, quando o aprendiz de poeta é pessoa séria e empenhada, ele sabe que tem muito a aprender, se quiser ser mais do que um declamador de bares da orla. Em contrapartida, o aprendiz de romancista acha que já “aprendeu o essencial de seu ofício” nos bancos escolares, daí preferir encontrar seus pares nos lançamentos e sob os holofotes da tal “cena literária”…
Ao ler um romance, quais são os critérios que você utiliza para dizer: “isto é bom”? E quais são as razões que te levam a, subjetivamente, preferir certos livros a outros?
Eis aí uma questão fundamental, difícil mesmo, que a maioria das pessoas em geral resolve pelo caminho fácil da filiação (no fim das contas ideológica) a uma corrente de opinião alheia – ou, então, empinando o nariz e citando os autores da hora… Na verdade, estes critérios (“por que isto é bom?”) envolvem o chamado cultivo do gosto, que tem a ver com a educação do espírito e até dos sentidos – e tudo isso tem a ver com a questão do autoconhecimento, um passo decisivo no caminho da sabedoria.
No Brasil, onde todos defendem o “direito de ter uma opinião”, esquecendo no mais das vezes o dever de buscar a verdade, as coisas sempre acabam se ajeitando num subjetivismo que pouco ou nada acrescenta à própria história de cada um. Mas o fato é que bom gosto e bom senso (elementos decisivos no modo ético-estético de encarar o mundo) são questões objetivas, concretas – e não uma “terra de qualquer um”. Mas, entre nós, cada um prefere “achar” o que quer – e fim de papo. Feliz, ou infelizmente, perdi há muito esta “inocência” (na verdade, uma malandragem das boas…), e então, quando me faço a pergunta estou me colocando um grande desafio: por que este romance é bom? Não me contento com a mera sensação de prazer que sua leitura acarreta: ele é apenas um dos fatores! Há fatores igualmente importantes, como a questão semântica (o que o romance diz, os valores que transmite), a forma como o assunto é tratado (sua sintaxe, a seleção e combinação das palavras), a harmonia do conjunto, a sensação de beleza que tudo transmite… São tantas coisas em jogo! Porque, para além da avaliação específica de cada livro, existe a obrigação de inseri-lo, comparativamente, no conjunto da literatura e da cultura – tarefa a que os tolos e poltrões também se furtam, contaminando o âmbito cultural de uma idéia equivocada de democracia igualitária. Mas, queiram ou não, cultura é hierarquia!
Trata-se de um questionamento solitário, que no fim das contas não difere muito do meu autoquestionamento de escritor. Porque em mim o leitor e o escritor sabem que se trata de um problema objetivo, e não de uma vaidade “subjetivista”. E aí começa todo o drama, que vai se precipitando sem máscaras e, no meu caso, também sem testemunhas, desde que abandonei a prática de escrever as malfadadas resenhas de suplementos literários.
Claro que este esforço de objetividade não elimina as arbitrariedades subjetivas. Mas, a cada livro que começo a ler, a esperança se renova: desta vez, eu chego um pouquinho mais perto!