Indo ao teatro em Paris: Nouveau Roman

Já é um clichê tão batido dizer que no Brasil se lê pouco que, confesso, tenho vergonha de repeti-lo. Mas é verdade que, cá em Paris, lê-se muito mais, a menos a julgar pelo metrô. Muita gente lê, e não apenas Fifty Shades of Grey – embora a trilogia seja inevitável. São muitas vezes livros enormes, sobre política, sobre tudo. E, aqui e ali, Jane Austen.

Mas, em parte para testar o clichê de que o francês é um povo mais culto, em parte para satisfazer o desejo de ver ao vivo Ludivine Sagnier, musa cinematográfica pessoal há quase dez anos, e ainda em parte pelo mero desejo de ir ao teatro, fui ver Nouveau Roman no Théâtre de la Colline em 9 de dezembro, dia da última apresentação.

Antes de ir, eu não sabia praticamente nada sobre o espetáculo. Decidi não me informar justamente para fazer um outro teste, do qual logo falarei. O que eu sabia era o seguinte: o diretor Christophe Honoré fez uma peça com nove personagens, todos autores do movimento literário que ficou conhecido como nouveau roman, cujo membro mais famoso é, sem dúvida, Marguerite Duras.

O outro teste que mencionei há pouco é o seguinte: será que, sem saber praticamente nada sobre o nouveau roman, eu ficaria entretido com a peça? Confesso que tenho uma grande implicância pela ideia de que uma obra de arte inteira dependa de uma série de conhecimentos prévios, o que sempre resvala em piada interna. Não que haja algo de errado com a piada interna em si, é que a piada interna como fundamento é apenas esnobismo. Acredito que toda obra de arte deve ser no mínimo superficialmente interessante, e depois, se for o caso, prestar-se as análises de quem quiser analisá-la, talvez até descobrindo piadas internas. Assim, mesmo que a peça Nouveau Roman desse seus acenos só para os iniciados, eu queria ver se, mesmo tendo pago o mesmo ingresso que todo mundo, ainda assim seria esnobado pelo autor e diretor.

Já tinha me chamado a atenção a dificuldade de conseguir ingressos – comprei o último, no singular mesmo. Depois, chamou-me a atenção o tamanho do teatro – devia haver umas mil pessoas ali, ou pelo menos muitas centenas. Todas para assistir a uma peça sobre um movimento literário de décadas atrás que não ficou famoso exatamente pela acessibilidade, e sim pelo experimentalismo. Será que aquilo ia funcionar? Sem suspense, digo logo que funcionou, e muito bem. Continuo sem saber muito sobre o nouveau roman (uma peça não é uma palestra), mas me diverti durante as três horas do espetáculo – e vejam que conseguir manter alguém entretido por três horas ininterruptas não é um mérito pequeno – e fiquei até com vontade de ler alguns dos autores. A plateia francesa, claro, pareceu divertir-se até mais do que eu, porque pegava piadas que eu não pegava. E ainda reagia: no momento de interação com o público, esse sim um clichê inevitável do teatro contemporâneo, as pessoas fizeram aos “autores” ali presentes perguntas realmente específicas sobre suas obras. Esse clichê, porém, foi compensando por um momento genial, divertidíssimo: o da simulação teatral de um videoclipe em que os autores ironizavam o suposto glamour do ato de escrever.

Claro que me perguntei se, por exemplo, seria possível fazer no Brasil uma peça de três horas sobre, por exemplo, a geração de 45 e lotar um teatro de mil lugares por algumas semanas. E claro que a resposta é: com talento, tudo é possível. Com talento e com uma legislação melhor. No Brasil não podemos fazer peças históricas porque os donos do bizarro “direito de imagem” impediriam isso. Devo dizer que a representação dos autores do nouveau roman, alguns ainda vivos, não foi 100% lisonjeira. Alain Robe-Grillet rendeu as cenas mais divertidas exatamente por ter sido retratado da maneira mais mesquinha, e digo mesquinha mesmo, porque, se alguém fez uma grande obra (suponho que sim, não a li, não posso falar nada), lembrar dessa pessoa por algum defeito seu é, no caso, apenas um golpe baixo teatral. Mais baixo ainda por ser bem-feito.

Uma amiga me explicou que talvez o teatro estivesse cheio por causa da fama do diretor aqui na França. Não sei: uma das coisas boas de ser estrangeiro é o conforto de um certo alheamento. Mas é claro que ao menos uma parte do público foi levada por ele. Mesmo assim, o tamanho do teatro, a lotação completa, as referências culturais do texto, tudo isso dá o que pensar a quem acredita que o teatro deveria ser mais “culto” e que o público deveria ser assim ou assado. É verdade, mesmo com a provável subvenção estatal, que na França se lota um teatro de mil lugares por algumas semanas, com espetáculos quase todos os dias, para falar de um movimento literário velho de décadas. E há que tirar o chapéu, que ao menos há algo de bom gosto nisso.

Registros

Sempre que vou ao teatro, ouço o presente do indicativo usado para referir uma ação que acontece naquele momento. Isso é bizarro porque na fala, na famosa vida real, nós usamos o gerúndio para isso. Por exemplo, ninguém diz “eu como”, mas “eu estou comendo”. O presente “eu como” refere uma ação habitual. “Você come chocolate?” significa “Você tem o hábito de comer chocolate?”.

De início eu pensava que isso era um dubladismo, isso é, um vício adquirido pelos tradutores a partir do consumo de filmes dublados, e todos nós, na infância e na adolescência, consumimos filmes dublados. Depois, quando crescemos e viramos tradutores, passamos a consumir o inglês diretamente e a deixar o português como língua que só se usa para trabalhar e para comprar pão. Mas observo que mesmo textos escritos em português estão cheios de presentes do indicativo com o valor que mencionei acima. Por quê? É coisa típica do registro literário escrito, mas é também do diálogo dramático? Por que as pessoas têm a exigência nominal de diálogos realistas, mas aceitam essa peculiaridade? É por que elas têm mau ouvido?

Estou traduzindo uma peça de teatro, com diálogos que não tem pretensões barrocas, e não consigo escrever assim. Preciso usar o registro real, que escuto todos os dias. Mas já começo a me questionar.

Palestra na Saraiva de Belém; minha peça no dia seguinte

Nesta quarta, 11 de maio, estarei na Livraria Saraiva de Belém do Pará, no Shopping Boulevard, às 19h, para dar uma palestra sobre a catarse na tragédia grega antiga, como nos relacionamos com ela hoje, e como seria possível recuperar um efeito semelhante num texto dramático.

No dia seguinte, minha peça, Amadores, estreia no Teatro Claudio Barradas (pode clicar aí nesse link que você até compra os ingressos pela internet).

A peça estreia no exato dia do em que se completam quatro anos da última vez em que estive com Bruno Tolentino.

Amadores: estreia em Belém dia 12 de maio

Teatro Cláudio Barradas, de 12 a 15 de maio, às 20h, com ingressos a 20 reais (e meia entrada para todos aqueles grupos previstos em lei e para sopranos que consigam cantar “Du bist die Ruh” e comover os presentes).

Dia 11, eu estarei na Saraiva de Belém, dando uma palestra sobre a possibilidade de recuperar a catarse do teatro clássico no teatro contemporâneo. Aliás, esse foi o tema do artigo que escrevi para a próxima Dicta&Contradicta.

A peça é vagamente baseada em Werther, de Goethe.

Minha peça vai nascer em Belém

Amanhã, a primeira leitura pública de Amadores, minha primeira peça. Será amanhã, em Belém. Ainda que não seja Belém da Judéia, gosto de pensar que há aí uma analogia auspiciosa.

Você pode ler mais a respeito no blog do Teatro do Ofício, esse Globe Theatre da Amazônia,

Quando: Dia 1º de março, terça-feira, às 19h30
Onde: Saraiva MegaStore Boulevard Shopping – Espaço Benedito Nunes
Av. Visconde de Souza Franco, 776 – Loja 233 / 2º piso
Reduto, Belém – PA / 91 3241-3950
Quanto: ENTRADA FRANCA

Teatro é (deveria ser) a maior diversão

Toda vez que leio resenhas teatrais, ou meras sinopses, escritas por jornalistas ou mesmo pelas próprias companhias de teatro, sempre me deparo com as mesmas palavras: “pesquisa”, “investigação”, “questionamento”. E isso faz com que eu me lembre do famoso ensaio de Robert Nozick em que ele se pergunta por que existem tantos intelectuais de esquerda, e sugere, como resposta, que isso acontece porque esses intelectuais querem reproduzir na sociedade inteira o ambiente de uma sala de aula, porque era nesse ambiente que os pequenos intelectuais eram mais valorizados.

O que uma coisa tem a ver com outra? É óbvio: o teatro é encarado como se fosse uma extensão da sala de aula, do ambiente acadêmico. Por que não fazem isso com o cinema, eu não sei. Quer dizer, até fazem: mas só se o filme ou diretor já tiver sido ungido com os santos óleos do cabecismo.

Também é óbvio que existe um outro teatro que nunca é chamado de investigação, nem de pesquisa. Um teatro para as massas, ou para a classe média que pode pagar os ingressos, a mesma classe que é vista com desprezo por aqueles que falam em teatro investigativo e pesquisador.

Fato é que as peças são encenadas à noite. E que só quem quer sair de casa para uma investigação ou uma pesquisa são as pessoas que ficaram em casa vendo TV o dia inteiro, ou melhor, os aspirantes a atores que aguardam o próximo teste de Malhação. Simplesmente mudar a cultura de olhar as coisas por esse ângulo talvez já tivesse um efeito imediato na bilheteria. Eu trabalho em casa boa parte do dia. Será que, depois de ficar traduzindo textos muitas vezes deveras abstratos, eu quero assistir a uma “investigação do universo feminino”? Isso não vai harmonizar com a pizza ou com o sushi de depois.

O fetiche acadêmico gerou até um subgênero (carioca, ao menos), cujas regras adotei conscientemente na peça que escrevi e que será montada em Belém em 2011. Aliás, eu adotei essas regras para aumentar as chances de ser encenado: por exemplo, a peça tem de ter pelo menos flashbacks, ou algo que perturbe um pouco a seqüência começo-meio-fim; tem de ter um personagem cuja identidade é confusa, ou ignorada, sendo compreendida só depois; o ponto de vista principal tem de ser alterado ao longo do texto. Essas regras garantem que você não está escrevendo algo que seria considerado tolo ou “comercial”. Seguindo-as, sei que meu texto será registrado como uma produção intelectual de respeito. Devo dizer, porém, que esse subgênero em si não é ruim (eu não escreveria uma peça se achasse que sairia ruim), mas sua origem é clara: algo na peça tem de parecer que “faz pensar”. O que importa, de fato, é como o público vai registrar o que você fez.

Pelo menos um dos leitores deste texto certamente pensa que o ideal seria juntar as duas coisas: diversão, porque ninguém é de ferro, e alguma “inteligência”, porque o mínimo que você espera após amargar aqueles anos na faculdade é ter o direito de desprezar as massas e de corrigir a ortografia dos outros. Mas isso me parece deveras forçado. Gosto de pensar num teatro que, como boa parte do cinema, como boa parte das melhores séries de TV, são meros prolongamentos das referências que cada um tem, e não são feitos com espírito acadêmico. É claro que um dramaturgo ou roteirista pode escrever algo como parte de uma investigação pessoal, mas nem por isso ele vai criar um clima acadêmico. Basta observar que ninguém diria que Rei Lear é uma “investigação sobre a desagregação familiar / sobre a loucura / sobre a disputa pelo poder”, mesmo que, do ponto de vista do dramaturgo, a peça seja uma “investigação” (e, creio eu, a peça toma como premissa o discurso de Ulisses em Tróilo e Cressida), ou até diria, mas eu não consigo ver o público saindo do Globe Theatre há 400 anos fazendo esse tipo de comentário. Em suma, Shakespeare não estava querendo ser elogiado por ser inteligente e por contribuir para fazer do mundo uma grande sala de aula.

O teatro tem de representar crises e tem de resolver essas crises no palco. Crise no palco é legal. Crise na sociedade não é legal. Se todo o mundo vira uma grande sala de aula, então lugar nenhum é uma sala de aula. Se o teatro é uma sala de aula, então uma sala de aula é um teatro, e aí já começamos a ver a intrusão das obsessões com “com coisas lúdicas” na educação. Você não iria regularmente a uma lanchonete que quisesse fazer você pensar sobre o hambúrguer e não servisse um belo hambúrguer. Se a leitora não atingisse o orgasmo nunca, diria que seu namorado é incompetente. Fingir que o público não tem certas expectativas, ou sugerir que a diversão não é uma expectativa legítima, traz consigo um certo ônus. Se eu quiser aprender algo deliberadamente, abro um livro, faço um curso. Alguns de nós, inclusive eu mesmo, podemos querer ter contato com obras de arte para “aprender” algo (normalmente algo “vital” ou “existencial”, como: “o que é preciso para ser perdoado?”, e mesmo assim estamos em busca de exemplos inspiradores mais do que de teses), mas isso não quer dizer que estejamos eximindo os artistas de prender nossa atenção do mesmo jeito que Ana Beatriz Barros prende a atenção por meramente existir.

A pergunta que eu gostaria que fosse respondida pelos resenhistas teatrais é: foi bom para você? E por quê? Não quero saber exatamente se a peça teve o mérito de se assemelhar a uma investigação ou uma pesquisa: isso é para um pouco depois, ou bem depois, porque o lado investigativo precisa estar de certo modo oculto, a fim de aumentar a força da obra. E isso por uma razão muito simples. Uma propriedade de qualquer investigação séria é eliminar ambiguidades do discurso. Quanto menos ambiguidade, menos sentidos possíveis. Quanto menos sentidos possíveis, mais atenção intelectual é necessária, e menor a chance de a obra falar a diversos públicos. Veja que não estou falando de ambiguidade no enredo. Qual o enredo de Hamlet? O príncipe da Dinamarca, enojado com as rápidas núpcias da mãe viúva, recebe do que julga ser o fantasma do pai a missão de matar seu irmão e assassino, que aliás casou-se com sua ex-esposa, e mãe do príncipe. Ele fica na dúvida, faz um teste com uma peça, e mata meio por acidente o conselheiro real, o que gera uma vingança por parte do filho do conselheiro, e um duelo final, em que quase todos os personagens morrem.” Veja como “príncipe recebe do fantasma do pai a missão de matar usurpador do trono” é muito mais interessante do que “uma investigação sobre a condição humana”. Muito mais vívido do que uma tese, como “o sobrenatural não existe”, “o sobrenatural como projeção de recalques”, “meditação sobre a futilidade da vingança” etc. Eu não preciso de três horas de teatro para entender a futilidade da vingança. Você se vinga, o outro se vinga de novo, aí você repete, num ciclo infinito. É assustador, mas é basicamente só isso. Acabou a meditação. Tocou o sinal, a aula terminou.

O cinema contra a felicidade

Há alguns anos, minha professora de italiano me fez ver o filme Pão e tulipas, que trata de uma mulher negligenciada pela família que decide largar tudo e viver em Veneza, sozinha, trabalhando numa floricultura. O filme mostra a mulher redescobrindo a vida, o amor, a felicidade, e realizando tudo aquilo a que todo mundo acha que tem um direito natural, concedido por Rousseau, por Joseph Campbell e pelos colunistas de auto-ajuda.

Um outro filme, um pouco anterior, mostra uma situação semelhante: Beleza americana. Um sujeito tem uma filha adolescente insuportável, uma esposa não menos repulsiva, e, fazendo chantagem com a empresa, ganha um ano de salário e decide “ser feliz”. “Ser feliz”, é claro, assim como no caso de Pão e tulipas, significa “fazer o que eu quero”. Nesse caso, porém, o sujeito é vil, baixo e mesquinho. Claro que o filme mostra que ele é mesmo – mas por que não vamos julgar que ele, o homem, é que foi amesquinhado pelas pessoas à sua volta?

Estou observando isso apenas porque subitamente percebi que um filme como Pão e tulipas que tivesse um protagonista masculino simplesmente não seria aceito pelas platéias. O homem não teria o direito de largar a família e “ser feliz”, mesmo que essa família o negligenciasse. Ele seria visto como culpado, inevitavelmente. Se ele decidisse largar sua esposa chata e seus filhos ingratos para comprar um carro novo e arrumar uma namorada mais nova, seria visto como tolo, imaturo, canalha. O filme seria considerado prova da maldita cultura machista neoliberal opressora em que vivemos.

Agora, não tenho o menor interesse em denunciar feminismos (o feminismo é suficientemente autodestrutivo), e sim em observar double standards e o que eles revelam sobre as escalas de valores e sobre as possíveis recepções de obras dramáticas. Um filme como Pão e tulipas certamente propõe que a felicidade da mulher vem antes da felicidade da família. Nenhum filme ousa sugerir que a felicidade do homem possa vir antes da felicidade da família. O estranhamento que essa premissa causaria impediria a fruição da obra.

Também não me interessa escrever apenas reacionariamente, isso é, reagindo à premissa feminista com uma premissa machista, e certamente não me interessa dar uma de superiorzinho às duas premissas, mas simplesmente observar que ambas se baseiam no dogma moderno de que a felicidade é um direito natural e que ela é obtida fazendo aquilo que se deseja. Quando as pessoas vão ao cinema, querem ver histórias em que os personagens finalmente iniciam aquela parte da vida que será uma sucessão indefinida de momentos perfeitos. Nenhum filme poderia terminar como Tio Vânia, de Chekhov, em que Sônia, jovem e já ciente da longa vida de frustração que terá pela frente, olha para o tio do título, que já tem uma vida de frustração atrás de si, e fala que, quando eles morrerem, verão as vidas tristes das pessoas na terra banhadas numa misericórdia infinita.

Eu mesmo, admito, prefiro que a felicidade comece agora, e não só após a morte. Sei que poderíamos criticar Sônia porque ela mesma não está enfatizando a alegria que se poderia encontrar em dar a vida por outra pessoa, e sim a crença de que sua vida de tristeza será compensada no céu. Mas será que foi já nesse momento, e já num autor como Chekhov, que a idéia de que a felicidade pode estar num serviço a algo ou a alguém foi considerada inadmissível?

Teatro pragmático, de Tom Stoppard

Eis minha primeira tentativa de aplicar o acordo ortográfico.

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Teatro pragmático
Tom Stoppard
Tradução de Pedro Sette-Câmara
New York Review of Books, 23 de setembro de 1999

O texto a seguir se baseia em uma palestra dada na Biblioteca Pública de Nova York em 1999.

O assunto sobre o qual vim falar aqui é “Técnica e interpretação nas artes performáticas”. Se alguém fosse conceber um título para me deixar sem palavras, ele seria bem parecido com esse. Não é que eu tenha dificuldade com a ideia de técnica. Vejo sem problemas que a ideia de técnica no alpinismo, por exemplo, é claramente inteligível. Mas um alpinista, ao contrário de um crítico do alpinismo, talvez dissesse que aquilo que ele faz é escalar montanhas da maneira que parece fazer mais sentido, considerando que você não quer cair lá de cima. Como sou antes dramaturgo que palestrante, digo que, como um todo, o teatro me parece um jeito de contar histórias que são encenadas para uma plateia, e que elas tratam basicamente daquilo que a plateia achar que elas tratam.

Em breve abandonarei essa persona faux naif. Na verdade, nem sei até que ponto ela chega a ser uma atitude deliberada. Mas não acho que emprego uma técnica que possa ser distinguida do bom senso e de um entendimento comum do que seja contar uma história. O resto é a parte difícil.

A ideia de interpretação também é inteligível. Mas dizemos que atores interpretam papéis, e que diretores interpretam autores. Não creio que dramaturgos sejam artistas-intérpretes. Outro dia fui servido como prato principal no almoço de uma escola de teatro, e a primeira pergunta que um aluno me fez foi sobre o que eu esperava de um ator que fizesse uma peça minha. “Que fale com clareza”, a resposta que dei, foi recebida com uma risada, uma risada nervosa na qual detectei reprovação. A cabeça do ator está cheia de objetivos sutis e complexos, todos a serviço do personagem, e falar com clareza parece ser o menos importante deles — na verdade, uma mera condição — , mas de fato essa é a primeira coisa que peço e, algumas vezes, a última que consigo. É exatamente isso que estou dizendo: quando o espetáculo está pronto — repleto de técnica e de interpretação, com as marcações finais de luz, com os detalhes de figurino, e com os efeitos sonoros nos últimos ajustes — , eu, o autor, posso estar implorando a um ator que preste atenção naquela consoante ou naquela vogal. A palavra “se” no início de uma frase com frequência é esquecida. Quando a peça estreia, sempre sei quantas frases nela começam com “se”, porque guardei todas no meu caderninho.

Há no palco um homem e uma mulher. O homem diz: “Você quer beber alguma coisa?” A mulher responde: “Vou querer sim. Uísque com soda, por favor.”

Dependendo das informações de que dispusermos, esse diálogo vagamente desinteressante pode ficar mais interessante, mais dramático. Fica mais interessante se a mulher faz parte dos Alcoólatras Anônimos. Fica mais interessante se soubermos que o homem é envenenador; e talvez fique ainda mais interessante se já tivermos visto o sujeito que divide o apartamento com o homem usar a garrafa de Cutty Sark para coletar uma amostra de urina. Técnica é isso?

Agora percebo que técnica deve ser isso: o controle das informações que a plateia recebe da peça, e sobretudo a ordem em que essas informações são recebidas. Corremos um grande risco ao interferir nessa ordem, não é? Não, nem tanto. Ocorrem-me dúzias de montagens de Shakespeare em que a ordem da informação é subvertida (é mais difícil lembrar de produções em que ela é respeitada). Lembro de um dos primeiros sucessos de Trevor Nunn, sua montagem da Comédia dos erros. A peça começa na cidade de Éfeso. O duque explica que Éfeso é inimiga da cidade de Siracusa e que qualquer pessoa de Siracusa que esteja em Éfeso vai ser condenada. Uma das pessoas que o ouvem volta-se para nós com uma expressão consternada. Ela ainda não teve nenhuma fala. Mas está vestindo uma camiseta que diz “Siracusa”. Naquele momento, a história de Nunn passou na frente da de Shakespeare.

Os diretores de Shakespeare fazem isso o tempo todo, por diversão e por dinheiro. Temos um exemplo muito mais sério disso no Hamlet de Richard Eyre (também encenado muitos anos atrás), em que o fantasma do pai de Hamlet era interpretado como uma projeção de uma neurose do jovem Hamlet, existindo apenas em sua mente. Ele inventou sua própria cena do fantasma, com o ator fazendo os dois papéis, com duas vozes diferentes. Talvez vocês já tenham pensado que isso cria uma dificuldade em relação à primeira cena da peça, em que o fantasma aparece, mas não Hamlet. A consequência, ou a solução, foi que a cena inicial foi cortada, e a peça começou com a segunda cena, uma cena palaciana com pouca adrenalina. No Hamlet original, a primeira cena original dava a partida na peça como se ela fosse uma motocicleta — falas curtas, cortadas, uma atmosfera de medo.

Era isso a técnica de Shakespeare? Se sim, será que ele sabia que estava usando uma técnica? E isso faz diferença? Na verdade, não gostamos de pensar que o gênio usa técnicas. Parece quase uma contradição.

Há quem diga que A importância de ser honesto é a obra mais próxima da perfeição de todo o teatro inglês de comédia. Imagine uma cena. Estamos no jardim de uma casa de campo inglesa. Há dois homens, um chamado Jack e outro chamado Algernon. E há duas senhoritas, uma chamada Cecily e outra chamada Gwendolen. De repente, entra no jardim um personagem do qual vocês talvez nunca tenham ouvido falar. Ele se chama Grisby e veio cobrar uma dívida de £700 de bebida e comida do Hotel Savoy. A propósito, essa cena ocupa dezessete páginas.

Anos atrás, Peter Shaffer me disse: “Acabo de ver um negócio impressionante. Está na Biblioteca Pública de Nova York. Eles têm o manuscrito original de A importância de ser honesto, todos os quatro atos.”

Foi um instante até a ficha cair. Aí lembrei, é claro, que A importância tem três atos. O ator-empresário George Alexander cortou o texto logo antes dos ensaios. Wilde escreveu-lhe: “A cena que você considera supérflua deu-me um trabalho de dar dor nas costas, de destruir meus nervos com ansiedade, e levou cinco minutos inteiros para ser escrita.” Wilde era o gênio. Alexander era o técnico.

Há algo perturbador no pragmatismo do teatro. Transformar quatro atos em três é só um exemplo extraordinário de um processo pelo qual as peças passam de maneira ordinária, assim como A importância é só um exemplo das peças que sucumbem a esse processo.

Por ora, estamos falando só daquilo que acontece com o texto a partir do momento em que ele é dividido com as pessoas que terão de trabalhar com ele, e deve-se dizer que, no caso de

alguns poucos dramaturgos insistentes, nada lhe acontece, para o bem ou para o mal. Mas o paradoxo central do teatro é que algo que começa inteiro, tão fiel a si mesmo, tão contido em si mesmo e tão subjetivo quanto um soneto, acaba sendo jogado numa espécie de máquina de secar, que é o processo de montar a peça; e é hilariante ver o quanto esse processo tem de empírico.

Quando já não há mais nada a dizer ou a fazer (e, no caso dos dramaturgos, isso equivale a dizer e fazer tudo que eleve a palavra escrita acima de todas as demais contribuições para o efeito total), assim que a peça percorre aquela última ponte entre a sala de ensaios e a plateia, a diferença entre o sucesso e o fracasso está subitamente nas mãos de técnicos de verdade, de pessoas que mexem com botões e seletores. Se você não trabalha com teatro, vai ficar susrpreso com a concentração obsessiva com que se ajusta o tempo, a duração, o volume, a intensidade, a cor e a velocidade de cem ou duzentas marcações de uma montagem.

O paradoxo a que me refiro é que a experiência metafísica está à mercê do acontecimento físico. Vamos ao teatro para “ver” texto e atuação, mas a responsabilidade pela carga emocional de boa parte do teatro moderno depende da pontuação de marcações técnicas muito específicas. Há exceções, algumas celebradas (como o Macbeth de câmara montado por Trevor Nunn com Ian McKellen e Judi Dench), mas quase sempre as plateias (e os diretores) querem tudo a que têm direito, e se o autor está presente, teso em seu assento, provavelmente está preocupado com uma marcação técnica que dali a um minuto vai dar vida — ou vai assassinar — a uma página que, meses antes, quando autor e página estavam a sós, era completa e autossuficiente. Aquele “hilariante” dito acima parecia a palavra exata.

Quero voltar a falar do ordenamento das informações que a peça transmite à plateia. Quantas pessoas na plateia de uma peça de Shakespeare (ou de A importância de ser honesto, ou, aliás, de qualquer peça já encenada) estão ouvindo a história pela primeira vez? No que diz respeito a Shakespeare, pode-se supor que a plateia de uma produção escolar esteja chegando virgem à peça; no National Theatre, essa proporção seria bem menor. Nos próximos momentos quero considerar somente a parte da plateia que conhece a história antes de a peça começar. Para essas pessoas, “ordenar o fluxo de informação” é um propósito fútil. Falando de uma experiência própria, vou citar o que aconteceu numa remontagem de minha peça The Real Thing, em que a primeira cena foi escrita por um personagem (um dramaturgo) que aparece na segunda cena.

Quando a peça era nova, lembro de ter passado horas nervosas, primeiro discutindo a surpresa, e depois como revelá-la. Era frustrante — tanto em Londres quanto em Nova York — ver que nunca conseguíamos perceber o momento em que a plateia toda (da qual gostamos de assumir o controle) “entendia” ao mesmo tempo. Dezessete anos depois, ensaiando a mesma peça, parecia haver algo absurdo nessa abordagem. Eu não tinha ideia se a história da peça já seria conhecida de 10% da plateia, de 30%, ou — em algumas noites — de 90%, mas os números eram irrelevantes. A ideia mesma de astúcia, de armadilha, de revelação, que dezessete anos antes parecia divertida, agora era simplesmente chata. Comecei a achar que seria mais interessante deixar a plateia ficar sabendo desde o início.

Levando essa ideia adiante, comecei a ver que não vale a pena ver de novo uma peça que depende de guardar seus segredos. Assim, o que quer que faça com que valha a pena ver de novo uma peça, isso não é “contar um história” no sentido em que falei. Eu deveria ter percebido isso. Uma vez vi um contador de histórias profissional (só pude ver, porque ele falava persa) e — assim como a maior parte de nós diante da maior parte da obra de Shakespeare na maior parte do tempo — percebi que o “espetáculo” consistia em contar uma história que a plateia já conhecia. Na verdade, há algo de autolimitador no dénouement quando o dénouement é o objetivo mesmo, o único objetivo da narração, e não sua textura. Conseguimos ler Damon Runyon dez vezes e ainda gostar. Será que conseguimos ler O. Henry duas vezes? Ou ver A ratoeira (1)? No que diz respeito a histórias de suspense, estou com Edmund Wilson — “Quem liga para quem matou Roger Ackroyd?” — e essa parte da minha tese mostra a outra fase da moeda da técnica, isso é, que as peças de mistério ficariam mais interessantes se o programa contasse quem é o assassino.

Ainda assim, em nome da incoerência, vou dizer agora que arte adulta é aquela que retém informação. Consigo fazer essa inversão por causa das limitações do vocabulário — o número de conceitos que possuímos até agora ultrapassa o número de palavras disponíveis para nomeá-los, de modo que certas palavras, como “informação”, têm de servir a ideias muito distintas, e o modo como falo de “informação” agora não tem a ver com os elementos da narrativa, e sim com os sentidos possíveis da narrativa. A arte que permanece uma novidade, para usar a expressão de Ezra Pound, é a arte em que a questão “qual o sentido disso?” não tem uma resposta correta. Toda narrativa tem pelo menos a capacidade de sugerir uma metanarrativa, e a arte que “funciona” é muito sugestiva nesse sentido, como se a história fosse na verdade uma metáfora para uma ideia que tem de ser ludibriada para que saia de seu esconderijo e adentre a consciência da plateia.

Mas que ideia? Em Biedermann e os incendiários, de Max Frisch, alguém está incendiando os prédios da cidade. A peça se passa na casa de uma família burguesa. Um homem sinistro se insinua dentro da casa. Outro estranho se junta a ele. Os dois alugam o andar de cima. Volta e meia eles saem da casa e voltam. A cada vez que fazem isso, um prédio pega fogo. A família, sobretudo o pai, resiste a chegar à terrível conclusão, mesmo depois de descobrir que os dois inquilinos estão juntando latões de gasolina no porão. Por fim, o inquilino sinistro desce e pede uma caixa de fósforos. O pai lhe dá os fósforos, e explica, como que se defendendo: “Bem, se eles fossem os incendiários, teriam seus próprios fósforos, não é?” Então as chamas tomam a casa.

Será isso uma metáfora para a subida ao poder de Hitler nos anos 1930? Fiquei sabendo que o autor estava pensando na tomada de poder pelos comunistas no Leste Europeu nos anos 1950. Mas, para mim, a opinião dele não é mais importante do que a minha. Nem do que a sua, caso a sua seja “foi assim que Fulano roubou a minha empresa”. Estou dizendo que a informação está sendo “retida”, mas também poderia dizer que não há (mais) informação a oferecer.

Falei que todas as narrativas têm uma capacidade semelhante, mas as peças que são importantes para o progresso da arte (não as peças que são simplesmente boas sob diversos outros aspectos) são aquelas que sugerem essa capacidade num grau multo elevado, e o fato é, e tem sido, na minha experiência, que elas fazem isso retendo informação no senti

do primário e simples da palavra.

Três peças foram muito importantes para os dramaturgos da minha geração quando éramos jovens: Olhe para trás com raiva, Esperando Godot e Feliz aniversário. São um trio, mas não formam um conjunto. Somerset Maugham ficou horrorizado com Olhe para trás com raiva. O tipo de pessoa representado pela peça (a representação feita daquela pessoa pela peça) era o que horrorizava, e Maugham tinha um nome para ela e para sua laia: gentalha. Mas a peça de Osborne, ainda que cantasse um canto novo, não propunha nada mais profundo. Ela não retinha nada. Não surpreende que Olhe para trás com raiva fosse admirada por Terence Rattigan (por mim também). Depois de ver Olhe para trás com raiva, eu queria escrever uma peça como aquela, mas parei porque isso não fazia sentido. A peça já tinha sido escrita. (Também é verdade que eu não conseguiria escrever uma peça como Olhe para trás com raiva, mas isso é um mísero detalhe.) O que quero dizer é que eu percebia aquilo que Osborne queria fazer, e como aquilo poderia ser feito.

Mas tudo era diferente no caso de Esperando Godot e de Feliz aniversário. Eu não percebia como fazer aquilo. Eu também não percebia exatamente o que estava sendo feito. As duas peças me deixavam simultaneamente inspirado e perplexo. Elas quebraram um contrato que, até aquela época, julgávamos que existia entre uma peça e sua platéia. Até então, parecia que, se você se desse ao trabalho de aparecer para ver alguma coisa ali, então a coisa ali tinha certas obrigações para com você, como a obrigação de oferecer o mínimo necessário de informações para que você conseguisse entender o todo.

Esperando Godot redefiniu esse mínimo para sempre, ou ao menos até agora. Feliz aniversário fez a mesma coisa, de um jeito diferente. E ainda que os dois autores tenham feito essa coisa cruel comigo, confiei neles e, de algum modo vago, eu sabia por que confiava neles.

A maneira mais fácil de explicar o porquê é simplesmente dizer que o surrealismo, o dadaísmo e a família inteira de crueldades das gerações anteriores me pareciam (e ainda parecem) não valer nada em si mesmas (ainda que possam servir de entretenimento, assim como uma briga de bar pode servir de entretenimento), e que isso não era aquilo. Não era irracional. Não era arbitrário. Seus efeitos não dependiam de um deslocamento da narrativa ou do processo de pensamento ou das conexões entre as coisas. As tentativas do “início da modernidade” para fazer o estado da arte progredir em Zurique e em Paris parecem, comparadas com elas, simplesmente infantis. Mas essas novas peças eram desconcertantes de um jeito diferente. A linha narrativa era pura, tão pura que você a perdia de vista durante um tempo, pura como a teia de uma aranha: quando parecia ter-se rompido, uma pequena mudança mostrava que ela continuava ali. Essas peças, tão diferentes das de Shakespeare, faziam aquilo que torna Shakespeare maravilhoso e que define a poesia — simultaneamente comprimiam a linguagem e expandiam o sentido.

Vou terminar lendo uma fala de uma peça de James Saunders, Next Time I’ll Sing to You [“Da próxima vez, canto para você”]. Tenho duas razões para isso. Primeiro, trata-se de uma correção no curso que eu mesmo segui. Acho que sem um texto, um texto aliás razoavelmente autoconsciente, o teatro do tipo que faço é impossível. O teatro é mesmo um acontecimento físico, e as palavras não bastam sem todo o resto, mas todo o resto não é nada sem as palavras, e é certo que, na complexa e extravagante equação de luz e som, são as palavras, numa certa ordem, que — muitas vezes de um jeito misterioso — viram nossos corações do avesso.

Por razões distintas, Olhe para trás com raiva, Esperando Godot e Feliz aniversário me impediram de escrever uma peça minha. Mas um pouco depois, em 1962 ou 1963, eu vi Next Time I’ll Sing to You e pensei: “Sim, é isso. Acho que consigo fazer isso.” Eu queria fazer isso. Não fiz, nem conseguiria, mas a ilusão me bastou.

Eis então uma fala, sem qualquer comentário, de Next Time I’ll Sing to You, de James Saunders.

Você pode acreditar nisso ou não, tanto faz, mas por trás de tudo há uma certa qualidade que podemos chamar de aflição. Ela está sempre ali, logo abaixo da superfícia, logo atrás da fachada, às vezes quase exposta, e você consegue enxergar a forma dela, assim como, às vezes, consegue enxergar, abaixo da superfície de um lago ornamental num dia parado, o contorno escuro, grosseiro e desumano de uma carpa que desliza devagar; quando você percebe que a carpa sempre esteve ali, abaixo da superfície, mesmo enquanto a água refletia a luz do sol, e enquanto você olhava cheio de condescendência para os patos, tão peculiares, e para os cisnes, tão arrogantes, a carpa estava lá, ignorada. Essa qualidade fica à espreita. E se você chegar a olhá-la, pode fingir que não viu nada, ou pode subitamente virar o rosto, e ficar brincando com seus filhos na grama, rindo sem motivo. O nome dessa qualidade é aflição.

Notas

(1) De Agatha Christie. A peça há mais tempo em cartaz na História.

Antígona x Rockantygona

Antígona

A primeira e maior dificuldade em montar a Antígona de Sófocles está em conseguir sacudir o pó acumulado da interpretação costumeira da peça. A julgar pelo que dizem os comentaristas menos especializados, Antígona seria uma espécie de peça de tese, e a tese a ser demonstrada seria que o poder é arbitrário, como se Creonte fosse o primeiro ditador, e Antígona, a primeira presa política acusada de um crime de consciência.

Na verdade, não é possível realmente entrar na peça sem tentar olhar Creonte com alguma simpatia — não no sentido de dizer que ele não é tão mau assim, mas no sentido de perceber que nós não somos tão melhores do que ele, em nossa pequena escala — , e são as palavras dele mesmo que nos ajudam a vencer aquela camada de pó interpretativo (que o próprio Sófocles ajudou a despejar, para que a peça funcionasse), além de nos fazer ver que os elementos trágicos estão por toda parte. A chave está naquilo que Creonte, esse personagem que, assim como tantos de nós, tem uma enorme capacidade de não perceber que fala de si mesmo ao acusar os outros, menciona em duas ocasiões na peça: a hybris.

A hybris está associada a uma idéia de ausência de medida, de uma superação indevida do próprio status, mas também, como observa Walter Kaufmann em Tragedy and Philosophy, a uma irreverência ou insolência em relação aos costumes estabelecidos. A hybris cria híbridos, entidades sem forma definida. Um ato prosaico de hybris seria ir a um casamento de bermuda e chinelo. Outro ato de hybris seria um padre ir a uma boate gay a fim de converter os presentes por meio do temor do fogo do inferno, ou um militante gay ir a uma igreja e tomar o microfone do padre no meio do sermão. Nos três casos, a desmedida seria repelida naturalmente repelida pelo nomos, o costume estabelecido naquele meio.

A tragédia surge quando um ato de hybris é respondido com outro ato de hybris ou quando as pessoas no meio decidem vitimar unanimemente o primeiro híbrido para que a ordem seja restabelecida, com a ressalva de que, nesse caso, não percebemos a violência como “trágica”. Se dois bandidos se matam num tiroteio, isso é trágico; se a lei captura um bandido e o pune, é a lei, e a lei se legitima pela unanimidade: eu, você e nossos amigos achamos que, por exemplo, os bandidos que atiraram em Mário Bortolotto devem ser presos e julgados.

Na interpretação mais comum do texto, prevista por Sófocles, Creonte julga que, como rei, seus atos representam essa violência unânime. O que Creonte não percebe é que, para usar termos de Antonio Gramsci, ele, ainda que possua a capacidade de coerção, para o caso específico do enterro de Polinices, não possui o consenso: o povo está com Antígona. Aquele ato não é unânime: é arbitrário, pessoal. Creonte acusa Antígona de desrespeitar a lei, e a peça depende de acreditarmos que na verdade ela está desrespeitando com justiça o arbítrio de um homem que primeiro desrespeitou os deuses. Assim como Creonte vitimará Antígona, fazendo dela bode expiatório, atribuindo-lhe previamente a culpa por uma possível desordem social, nós, o público, vitimaremos Creonte, ficando unanimemente contra ele. Sófocles estava ciente do paradoxo e de certo modo começou a levantar a tampa da tragédia com esse texto, de modo mais palatável (e de certo modo menos escancarado) do que Ésquilo em Eumênides.

Como estamos acostumados a dar à personagem Antígona toda a nossa simpatia, não percebemos que seu ato vem numa longa seqüência de disputas. Seu irmão Etéocles, num primeiro ato de hybris, recusou-se a seguir o costume e a entregar o trono de Tebas a seu irmão, o qual respondeu com outro ato de hybris, fazendo do estrangeiro o aliado e atacando a própria cidade. Essa atitude não é diferente de pensar, como sempre pensamos, que já que “ele”, alguém que consideramos um rival, “não segue as regras, eu também não vou seguir”. Creonte tem sua hybris ao ficar cheio de si por ter salvado Tebas, e declarar que o fundamento da cidade será a violência contra aqueles que priorizam seus amigos em detrimento dela. A primeira fala de Creonte, aliás, corre paralela à primeira fala de Édipo rei, que Sófocles viria a escrever pouco tempo depois. Os dois personagens armam a própria destruição nela, Édipo (que também se coloca como salvador da cidade, referindo-se aos cidadãos de Tebas como “filhos”) prometendo a perseguição implacável ao assassino de Laio, e Creonte prometendo a intransigência contra quem “põe os amigos antes do país” (na versão de Lawrence Flores), mesmo que isso contrarie o respeito aos mortos. Não haveria tragédia se Creonte de algum modo não tivesse “razão”: a cidade de fato depende de expulsar seus inimigos para sobreviver. O desrespeito de Creonte pelos costumes e o desejo de fundar a cidade na sua própria lei acabam conferindo a Polinices morto uma força que Polinices, vivo, não tinha. Porém, como em todas as disputas trágicas, nenhum dos lados vence.

Antígona pode querer enterrar o irmão, mas, descendente de Édipo, tão portadora da maldição dos labdácidas como o pai-irmão (Édipo é o híbrido por excelência), quer fazê-lo sobretudo por não suportar a humilhação de submeter-se a um decreto de Creonte. É ela mesma que o declara: “Dizem que o grande Creonte baixou o decreto / para ti e para mim! Pasma, até para mim!” Pode-se, é claro, dizer que Antígona fala como irmã e não como princesa, mas o problema continua a existir: ou a lei vale para todos, ou não vale para ninguém. Ao insistir em desrespeitar a lei, por injusta que seja, Antígona sabe que está escolhendo a punição. Ela poderia engolir a ofensa, casar-se com o filho de Creonte e um dia tornar-se rainha de Tebas, contribuindo para derrubar as leis injustas. Desse modo, a estirpe e a cidade poderiam ser preservadas. Mas podemos dizer que “foi Creonte quem começou”. Ao dizer isso, ao pensar isso, somos capturados pela força trágica do revide — “se as leis são absurdas, cabe a nós desrepeitá-las”. Observar que o desrespeito à lei sacrifica a ordem e a paz não é uma apologia da arbitrariedade, é apenas a duríssima constatação que a tragédia insiste em fazer. Ao criar uma lei injusta, absurda por aplicar-se sobretudo a um inimigo morto, Creonte contagiou Antígona com sua hybris, tanto que depois ele é que vai acusá-la — com razão! — de ser “inflexível”, numa disputa para ver quem chega primeiro aos extremos.

Sófocles tem consciência de que a disputa religião x política é um aspecto superficial. Ele sabia que os mesmos deuses aparentemente inofensivos que apenas pedem um enterro também legitimaram a fúria vingadora de Orestes, que, na trilogia da Orestéia, de Ésquilo, legitimam o assassinato de sua mãe, a rainha Clitemnestra. Recordemos o ciclo de violência da família

de Agamêmnon: este mata a própria filha para que os navios gregos possam seguir viagem para Tróia. Quando volta à sua terra natal, sua esposa Clitemnestra o mata a fim de vingar o assassinato da filha que, aos olhos de Agamêmnon, fora um sacrifício necessário. Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra, mata Clitemnestra porque esta matou seu pai, e ainda lhe diz que ela é que está matando a si mesma. No fim da trilogia, um mero voto majoritário entre os sacerdotes de Atena e da própria legitimam o matricídio. O trágico está também em dizer que foram as ações dos outros que obrigaram a uma determinada reação, sempre transferindo a responsabilidade e assumindo o papel de vítima. Creonte se julga uma vítima tanto quanto Antígona. Aqui no século XXI pretendemos “arbitrar” o problema no sentido de descobrir quem “teria o direito” de se julgar uma vítima e reagir. O tragediógrafo limita-se a observar o que acontece quando se inicia um ciclo de violência contagiosa, como quer que esta se justifique diante do público e/ou dos personagens.

Rockantygona

Se a defesa da vítima é nosso (com o perdão da palavra) paradigma fundamental, uma montagem de Antígona poderia se destacar pela tentativa de enfatizar a disputa entre seus dois personagens principais, em vez de partir para a leitura tradicional que destaca apenas a arbitrariedade do poderoso contra os mais fracos, isto é, sem cair na armadilha de mostrar Creonte sacrificando Antígona, para que o público sacrifique Creonte e saia do teatro com a satisfação dos linchadores. Nada é mais moderno do que sentir-se uma vítima que tem o direito de vingar-se, ou melhor, do que vingar-se usando o discurso das vítimas; o estágio a que ainda não chegamos, e a que talvez nunca cheguemos, é o da aceitação coletiva do próprio mal, em que iremos ao teatro para enfrentar a náusea de ser como Creonte, e não para acharmos que temos direito ao prestígio de Antígona, essa primeira culpada de um crime de consciência. Na verdade, quando Aristóteles falava em “catarse”, é provável que esperasse que purgássemos a hybris, mas hoje não acreditamos mais no bom funcionamento da cidade como os gregos acreditavam. Nem vamos apreender a lição de que Antígona cometeu um erro, nem vamos admitir que há um Creonte em nós, que há em nós alguém que acredita que, se tivesse o poder, melhoraria tudo. Ou vamos admitir?

Dentro desse critério, devo dizer que Rockantygona atingiu um resultado ambíguo, não por causa da minha opinião, mas por causa da divergência no grupo de amigos que me acompanhou à peça. Uns achavam que a versão de Guilherme Leme, em cartaz no Espaço Sesc em Copacabana, trazia a velha história do Creonte malvado contra a pura Antígona. Outros entenderam que Creonte tinha lá suas razões, e que Antígona, apesar de ter uma causa mais justa, era igualmente teimosa, entendendo que a complexidade está aí, também: não basta ter razão, é preciso ter razão do jeito certo. Mas admito que posso ter sido influenciado pelas minhas opiniões prévias a respeito da peça.

A trilha sonora mais caótica sublinha o aspecto da desordem que tomou conta de Tebas, tanto exteriormente, nas ruas, no palácio, quanto nas almas dos personagens. A inflexibilidade é acompanhada de desespero, e a iluminação, que se volta quase o tempo todo apenas para os personagens, deixando o resto do palco escuro, marca também os limites estreitos que eles mesmos estabeleceram para si e para suas ações. Se a luz marca a camisa de força do impasse central, o som denota a fúria que ele encerra. Assim, a montagem, também por ser bastante curta, fica devidamente claustrofóbica.

Essa mesma brevidade do texto levanta a questão de ser conveniente ou não editar… Sófocles. Creio que a necessidade ou a vantagem de levantar aquelas camadas de pó pode justificar uma edição, e o resultado ambíguo pode ser satisfatório na medida em que é inevitável. Massacre da inocente ou cabo de guerra entre nobres da mesma família? Seria possível ressaltar o segundo aspecto de maneira inequívoca depois de tanto tempo? Uma opção do corte do texto parece buscar esse resultado. Logo no início, o mensageiro que diz a Creonte que o corpo de Polinices foi sepultado fica cheio de dedos para transmitir a notícia, como se falasse com um tirano caprichoso. Se no texto de Sófocles esse trecho destaca a hybris que já possuía Creonte, cada vez mais disposto a atos de violência, em Rockantygona sua supressão deixa o Rei de Tebas um pouco mais “razoável”, e menos com jeito de Führer.

As soluções para o figurino e o cenário, por sua vez, se não chegaram a atrapalhar, pareceram em parte ter saído da série americana Kings, inspirada na história do Rei Davi. A sala do trono de Silas, o Rei contemporâneo da série, tem uma comprida mesa de madeira, atrás da qual há nada além de imensas janelas. As roupas de Creonte e de Hémon são roupas militares contemporâneas, como as roupas de Silas e de seu filho na TV. Se o espectador desconhecer a série, não correrá o risco da comparação e o contraste entre texto antigo e visual contemporâneo vai dar a marca de atemporalidade que, se não é o melhor efeito possível, é uma das soluções mais confortáveis para as platéias atuais. Somente Antígona aparece vestida à antiga, além de andar sobre pedras postas no palco, como se a diferença entre ela e Creonte (e, por tabela, Hémon) quisesse ser marcada, o que diminui a semelhança que naturalmente adquirem pelo conflito, a inflexibilidade de um se espelhando na inflexibilidade do outro.

Entre os atores, o destaque absoluto é de Luís Melo, que consegue dar ao personagem Creonte a gravitas necessária. Creonte é um comandante militar vitorioso, um rei; não poderia ser levado a sério sem a devida força. O mais revigorante nisso é finalmente ver uma representação do “vilão” da peça que, não se deixando levar por preconceitos pueris, não traz um Creonte meramente maquinador, vil, mesquinho, feio, tosco, como se o mal tivesse de se apresentar sempre assim, o oposto da elegância. O mal grandiloqüente, sério, com toques de heroísmo e de necessidade é que nos convence, porque se percebermos que o mal é mau jamais nos deixaremos levar por ele. A peça mereceria assistida nem que fosse para finalmente ver a representação mais complexa dessa maldade, que gera até simpatia por um homem que, talvez, se nunca tivesse sido colocado naquela posição, nem tivesse ficado tão envaidecido com seu sucesso militar, não teria inventado um decreto tão arbitrário.

O estilo baço

Enquanto não encontro o tempo devido para retomar as discussões do momento, deixo aqui um trecho de um ensaio de Auden que diz respeito a uma antiga preocupação minha, e que também vai como um acréscimo a um antigo post de Érico Nogueira. Interessante é observar que Érico fala em “poesia dramática”, que Ezra Pound decerto diferenciaria de “teatro em versos”. O encontro entre a poesia e o drama, senhores, é mais raro do que se imagina (ou quiçá impossível).

Uma outra observação, lamentando que no momento eu só possa mesmo fazer observações, é que a solenidade parece ter-se tornado inviável. As tragédias contemporâneas — penso em Tennessee Williams e Nelson Rodrigues — não têm personagens “elevados”, mas pessoas comuns. Creio que isso se deva à própria dessacralização da política. Hoje é impossível não imaginar uma aula de literatura em que não se diga que a promessa feita por Édipo no início de Édipo Rei de livrar a cidade da peste é uma espécie de “populismo”. Não esqueçamos ainda de que é mais fácil um rico entrar no Reino dos Céus do que um comentarista conseguir não reduzir Antígona a uma espécie de dissidente política. Sempre tenho a impressão de que ainda vão querer julgar Creonte na Corte de Haia por violações de direitos humanos. Se você acha que estou exagerando, pode ficar sabendo que o nobelizado Seamus Heaney, ao ser convidado para fazer uma versão de Antígona , declarou ter encontrado a motivação para o trabalho em George Bush

(Não digo isso para reclamar da dessacralização da política, pelo contrário. Prefiro mil vezes o Lula a um sujeito que se ache descendente dos deuses ou ungido por Deus. O que não posso é fingir que isso não tenha conseqüências para a literatura.)

Agora que escrevo, percebo que essa versão de Heaney provavelmente encarna tudo aquilo a que Auden se refere; e que provavelmente os tragediógrafos gregos já evidenciam essa dessacralização, ao menos em suas atitudes (Ésquilo sendo “mais sacro” e Eurípides menos). Mas a arte é longa, a vida é curta, e vou deixar vocês com Auden.

A julgar pelos poemas que escreveram, todos os poetas modernos que admiro parecem compartilhar minha convicção de que, na época atual, a poesia que pretende ser falada ou lida não pode mais ser escrita em estilo elevado, nem precioso, mas apenas em estilo baço [drab], usando esses termos no sentido com que C. S. Lewis os usava. Por estilo baço refiro um tom de voz calmo, que deliberadamente evita atrair atenção para si, enquanto Poesia com P maiúsculo, e uma certa modéstia nos gestos. Sempre que um poeta moderno levanta a voz, ele, como se fosse um homem usando peruca ou sapatos de plataforma, me causa um certo desconforto.

Tenho as minhas teorias — e imagino que meus colegas também tenham as deles — sobre por que as coisas são assim, mas não vou entediá-los infligindo-as a vocês. Para a poesia não-dramática, isso não cria nenhum problema; mas, para o drama em versos, cria. Ao escrever suas peças em versos, Eliot tomou, creio, o único caminho possível. Excetuando alguns momentos peculiares, manteve baço o estilo. Não consigo acreditar, porém, que ele tenha ficado muito feliz por ter de fazer isso, pois atuar em público é, como dizemos, “fazer cena”; isso é coisa que um estilo elevado pode fazer despudoradamente, mas um estilo baço é obrigado a fingir que não está “fazendo cena”. O que tentei mostrar foi que, enquanto forma de arte que inclui palavras, a ópera é o último refúgio do estilo elevado, a única arte para a qual um poeta nostálgico daquelas épocas passadas, em que os poetas podiam escrever de modo grandiloqüente por si próprios, ainda pode contribuir, desde que se dê ao trabalho de estudar o métier e tenha a sorte de encontrar um compositor em quem acredite.

W. H. Auden, “The World of Opera”. Secondary Worlds. Faber and Faber: Londres, 1968. p. 102

Leia o trecho no original.

Para um breve resumo do que C. S. Lewis quis dizer com drab style, ver este trecho do livro de Arana sobre Auden.