Ovídio no Terceiro Reich, de Geoffrey Hill

Geoffrey Hill / Trad. Pedro Sette Câmara

non peccat, quaecumque potest peccasse negare,
solaque famosam culpa professa facit.

(AMORES, III, xiv)

Gosto do meu trabalho e de meus filhos. Deus
é distante, difícil. Coisas dão-se.
Perto assim das antigas calhas de sangue
a inocência não é arma terrena.

Uma coisa aprendi: a não desprezar tanto
os condenados. Eles, em seu plano próprio,
têm estranha harmonia com o amor
de Deus. Já eu, no meu, festejo seu coral.

Ovid in the Third Reich
Geoffrey Hill

non peccat, quaecumque potest peccasse negare,
solaque famosam culpa professa facit.
(AMORES, III, xiv)

I love my work and my children. God
Is distant, difficult. Things happen.
Too near the ancient troughs of blood
Innocence is no earthly weapon.

I have learned one thing: not to look down
So much upon the damned. They, in their sphere,
Harmonize strangely with the divine
Love. I, in mine, celebrate the love-choir.

Vilanias

W. H. Auden / Trad. Pedro Sette Câmara

Somente os vis proferem vilanias,
por que são percebidos de imediato;
mas nobres platitudes… Sendo assim,
é preciso prestar muita atenção
para distinguir quem é bom de fato
de quem é vil e obteve posição.

Base words are uttered
W. H. Auden

Base words are uttered only by the base
And can for such at once be understood;
But noble platitudes – ah, there’s a case
Where the most careful scrutiny is needed
To tell a voice that’s genuinely good
From one that’s base but merely has succeeded.

A pedra e a saxífraga

Em dezembro de 2006 Ruy Goiaba postou um belo, leve e curto poema de William Carlos Williams, e decidi arriscar uma tradução.

A propósito: isto é uma saxífraga.

A Sort of Song
William Carlos Williams

Let the snake wait under
his weed
and the writing
be of words, slow and quick, sharp
to strike, quiet to wait,
sleepless.
— through metaphor to reconcile
the people and the stones.
Compose. (No ideas
but in things) Invent!
Saxifrage is my flower that splits
the rocks.

Como uma canção
William Carlos Williams

Espreite a cobra sob
sua erva
e a escrita
seja de palavras, lentas e lépidas, precisas
no ataque, quietas na espera,
insones.
— pela metáfora reconciliar
as pessoas e as pedras.
Compõe. (Não idéias,
mas nas coisas.) Inventa!
Saxífraga é minha flor que rompe
as rochas.

Leitura e comentário:1m30s
[audio:saxifraga.mp3]

Ruy Goiaba quis contrapor o poema de Williams ao famoso No meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, um poema que, segundo o próprio autor, é “insignificante em si” (por isso não o reproduzo), mas que se tornou muito conhecido, provavelmente como exemplo perfeito do argumento “se isso é poesia, eu também posso ser poeta”. Em algum momento vou discutir a natureza da má poesia, mas não agora; agora basta dizer que a pedra de Drummond é apenas um poema que, por sua simplicidade extrema, sugere profundidade, mesmo quando não há nenhuma, e temos medo de não ter entendido nada. Tememos, na verdade, que o poema se refira a um contexto que não conseguimos apreender, quase como numa linguagem codificada: a pedra seria x, o caminho seria y. Mas tudo o que há para entender é claro: tinha uma pedra no meio do caminho, e isto foi um acontecimento inesquecível. Nem sabemos se a pedra se mostrou um obstáculo intransponível ou não; só supomos que o poeta não está mais naquele caminho.

O poema de Williams, como diz muito mais coisas, se presta muito mais à interpretação. Começa descrevendo como deve ser a escrita (obviamente literária) e termina mencionando a saxífraga, a flor que consegue brotar na rocha. A imagem é bastante clara: a rocha indica a mudez, ou a inércia lingüística que é só barulho sem sentido, e a saxífraga indica a poesia, que, pela ordenação surpreendente de palavras, produz vida onde antes não havia nada, rompendo a aridez e a banalidade. O desenho do poema na tela (ou na folha) sugere o movimento da cobra, o que naturalmente decorre dos próprios cortes nos versos; a escolha de adjetivos para qualificar a escrita, sugerindo economia e precisão, é confirmada pela pouca extensão do poema; e, assim como a cobra dá o bote ao fim do tempo de espreita, Williams abre o jogo no final com a metáfora da saxífraga, e o próprio exotismo da palavra reforça a surpresa.

Drummond viu a pedra, mas limitou-se a registrar o fato; Williams descreveu todo um modo de olhá-la, e também como se faz para rompê-la e, por que não, animá-la. São dois poemas e atitudes diferentes, e Williams leva a melhor em todos os aspectos – o que não quer dizer que Drummond não seja grande. Um dia escolherei um poema dele para discutir aqui.

No centenário de Auden, a queda de Roma

auden.jpg
Ler W. H. Auden mudou minha vida. Não estou falando do meu gosto literário: mudou a minha vida. Pena que só fui ler em junho de 2003.

Hoje, 21 de fevereiro, Auden completa seu centenário. Como celebração, tributo, homenagem etc. gostaria de oferecer uma tradução que fiz de um de seus poemas, The Fall of Rome. Acho que ela está very decent. Mostrei-a a algumas pessoas que realmente entendem de inglês e poesia para que opinassem: Paulo Henriques Britto, Bruno Tolentino e Leonardo Fróes. Ao primeiro devo uma ajuda com os dois primeiros versos da terceira estrofe. Ao segundo, uma reclamação a respeito da última – havendo disposição, melhoro. Ao terceiro, devo o empréstimo de uma edição de Selected Poems corrigida à mão pelo próprio Auden.

Chama a atenção que nesta edição esteja escrito “Cerebrotonic Catos may”, e Auden não tenha corrigido. Em todas as outras edições do poema, há apenas um “Cato”. Para tirar a dúvida, fui até a leitura que Auden fez, disponível no site do New York Times: “Cato”, e não “Catos”.

(Leia a respeito de sua festa de aniversário de 50 anos.)

A queda de Roma
W. H. Auden / trad. Pedro Sette Câmara

para Cyril Connolly

As ondas batem contra o cais;
a chuva sobre o descampado
açoita um trem abandonado;
nos montes há ladrões demais.

As vestes cada vez mais belas;
o Fisco busca sem pudores
abscônditos sonegadores
nos esgotos das cidadelas.

Faz-se dormir, com ritos mágicos,
no templo as sacras prostitutas;
e os literatos já recrutam
um amiguinho imaginário.

Catão, o cérebro perfeito,
louva os saberes do passado;
fuzileiros amotinados,
porém, exigem seus direitos.

Esfria o leito imperial
enquanto um reles funcionário
em seu rosado formulário
diz: MEU TRABALHO PAGA MAL.

Sem riqueza e sem piedade,
passarinhos de rubras pernas
aquecem seus ovos e observam
a gripe entrando nas cidades.

Num lugar distante, entrementes,
imensos bandos de veados
correm por milhas de dourado
musgo, silenciosamente.

The Fall of Rome
W. H. Auden
for Cyril Connolly

The piers are pummelled by the waves;
In a lonely field the rain
Lashes an abandoned train;
Outlaws fill the mountain caves.

Fantastic grow the evening gowns;
Agents of the Fisc pursue
Absconding tax-defaulters through
The sewers of provincial towns.

Private rites of magic send
The temple prostitutes to sleep;
All the literati keep
An imaginary friend.

Cerebrotonic Cato may
Extol the Ancient Disciplines,
But the muscle-bound marines
Mutiny for food and pay.

Caesar’s double-bed is warm
As an unimportant clerk
Writes I DO NOT LIKE MY WORK
On a pink official form.

Unendowed with wealth or pity,
Little birds with scarlet legs,
Sitting on their speckled eggs,
Eye each flu-infected city.

Altogether elsewhere, vast
Herds of reindeer move across
Miles and miles of golden moss,
Silently and very fast.

O cancioneiro de Sebastian Arrurruz

Por Geoffrey Hill. Tradução de Pedro Sette Câmara.

Sebastian Arrurruz: 1868-1922

I

Dez anos separados. Que fazer?
Os dias seguem sua marcha, uma rotina
que, clemente, não chega a interessar ninguém.

Como um disciplinado estudioso,
junto os caquinhos, além da conjetura,
perfazendo seqüências de dor pura;

e é justo dar valor à habilidade
fria, assim como às coisas consertadas:
os adeuses que tanto ensaiei e esqueci.

COPLAS

i

“Ninguém perde o que nunca possuiu”.
Que se dane esta pérola sublime.
Eu perco o que eu quiser. Eu quero a ti.

ii

Ah, meu amor, eu te lamentarei
pelo resto da vida em melodias
bastante parecidas, meu amor.

iii

Meio zombando da meia-verdade,
noto “como é fugaz o amor carnal”;.
Até um negócio assim mexe comigo.

iv

É para ele que escrevo, é com ela que falo
em contido silêncio. Será que os tocará
a paixão que jamais lhes foi familiar?

3

O que outros homens e mulheres fazem juntos
eu não acho que seja orgia ou sacramento
e tampouco uma língua sincera e estrangeira

mas simplesmente a chance, a possibilidade
remota de que surjas dizendo o meu nome
como eu já digo o teu sempre que negocio

com os múltiplos deuses do sono, tentando
obter o máximo que posso: outros cenários,
os sonhos em que eu sempre posso te encontrar.

4

Fantasia viável. Irritante, a velha
tristeza encena seu retorno, transmutada
e semi-preciosa. Um âmbar fortuito.
Como se compensasse a nossa privação.
Vê como brilham os caquinhos quando, ao fim,
os reviramos sob a luz do pensamento.

5

Oh, meu amor, ela virá
com certeza. Uma tempestade
rumina sobre a terra seca o dia inteiro.
Quando ela cai, à noite, as persianas se sacodem.

A metáfora agüenta, aconchegante
como um chalé. Estás lá fora, não sei onde.
Então devoro versos de paixão bizarra
e exílio, as palavras exatas mordidas

pela absoluta fome que eu tenho de ti.

POSES

Imagino, como imagino a nós
cada vez mais estilizados, mais
maravilhosamente detalhados,
que eu não sou mais eu, mas um outro alguém
que eu poderia ser: assexuado,
saboreando, pleno de indulgência,
provavelmente as poses estudadas
de Santo Antônio ou São Jerônimo, aqueles
sonhos hermafroditas tão pacíficos
pelos quais os excessos da memória
poderiam guardar sua abstinência.

DO LATIM

Teríamos assunto, mas também silêncio
que se alimentaria da nossa luxúria,
banalidades renovadas; coisas do dia;
na madrugada, minha língua em tua fenda.

Sem ti, zombam de mim as cortesias, todas
as conversas supostamente interessantes
a que mulheres satisfeitas e zelosas
submetem os convivas menos desejados.

UMA CARTA DA ARMÊNIA

Remotamente, então, no seu lado do mundo:
o maduro espoucar das glândulas, ciprestes
tremendo de calor (que nós também sentimos,
do nosso jeito) Minha mente então se volta
para a pilhagem delicada, a procedência
de caquinhos opacos e brilhantes, três
das espécies de grãos que restaram. Hesito
entre os desastres casuais. Observo
os que morreram de verdade.

UMA CANÇÃO DA ARMÊNIA

Folhas quase cor de prata que são a neve
do Ararat vista através das mesmas folhas.
O sol derrama uma folhagem de sombra.

Uma bica de fonte se projeta um pouco
para fora da pedra-bebedouro.
Uma velhinha chupa, apoiada na borda.

Por que, até agora, tenho que lembrar
da tua boca, da tua mão me percorrendo
como um lagarto, como um jato de água?

À ESPOSA DELE

Às vezes te aventuravas –
como estivesses na casa de alguém –
não íntimo, mas uma conhecida
a ostentar seus pequenos direitos; ou como
alguém gratuitamente apiedada
de amantes novos em justos deleites
quando os convivas todos já se foram.

II

Balbuciando: freqüentemente, não passa
de uma frieza entre vizinhos. Freqüentemente
há uma orgia de sono. Acordo e afago
a compostura com palavras inesperadas,
e desfruto a abstinência numa vocação
de desespero agora quase sem sentido.

Moraes por Bishop

Sonnet of intimacy
Translation by Elizabeth Bishop

Farm afternoons, there’s much too much blue air.
I go out sometimes, follow the pasture track,
Chewing a blade of sticky grass, chest bare,
In threadbare pajamas of three summers back,

To the little rivulets in the river-bed
For a drink of water, cold and musical,
And if I spot in the brush a glow of red,
A raspberry, spit its blood at the corral.

The smell of cow manure is delicious.
The cattle look at me unenviously
And when there comes a sudden stream and hiss

Accompanied by a look not unmalicious,
All of us, animals, unemotionally
Partake together of a pleasant piss.

Soneto de intimidade
Vinícius de Moraes

Nas tardes da fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma aurora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.

Os falcões

Publicado originalmente em Pequena Morte.

I falchi
Bruno Tolentino

Dicono: ‘lascia stare, anche di loro
ti scorderai, perche è così la vita;
c’è il buio ormai, non c’è più l’ala d’oro,
hai torto di stupirti che sconfitto

cada ogni falco dalla sua altezza…’
Il sogno che sognai dell’infinito
era ancora promessa ed ogni ebbrezza
ad ogni altezza mi sarà rapita,

tutto è troppo mortale, e ben lo sò.
Eppur quel giovanotto li portava
ben aggiustati al cuore, erano lava

e vulcano, e nessuno, e niente può
tagliarci in due, quei miei falchi ed io.
Non hò mai imparato a dire addio.

Os falcões
Bruno Tolentino / Trad. Pedro Sette Câmara

Dizem-me: “deixa estar, deles ainda
te lembrarás, porque assim é a vida:
agora as trevas, a asa de ouro finda;
erras ao espantar-te que, vencido,

caia cada falcão da sua altura…”
O sonho que sonhei com o infinito
era promessa então – cada loucura
a cada altura me será tolhida,

tudo é mortal demais, o que eu sei bem.
Contudo aquele jovem os levava
no coração bem postos, eram lava

e vulcão, e ninguém, e nada vem
dividir-nos, a mim e aos falcões meus.
Nunca mais aprendi a dar adeus.

Aqui você pode me ouvir recitando o poema original e minha tradução. A gravação tem 1min49s.
[audio:ifalchi.mp3]

“I Falchi” está na página 303 de O mundo como Idéia, de Bruno Tolentino (São Paulo: Globo, 2002), livro que reúne poemas escritos ao longo de trinta anos em português, inglês, francês e italiano. Ao menos uma palavra sugere que foi um dos primeiros poemas a ser escritos: “ebbrezza”, aqui traduzida por “loucura”. Literalmente “ebbrezza” significa “embriaguez” (no português também chamamos o embriagado de “ébrio”), e sugere que Tolentino ainda começava a formular a questão central do livro, que é a oposição entre o frio formalismo que, ao tentar capturar a beleza, abole a vida e por tabela a própria beleza, e a difícil aceitação de que esta reside em coisas que morrerão inevitavelmente. Para designar o estado de humildade diante das coisas que permite a visão mais pura, uma certa anulação da consciência (já presente em seu livro de estréia, Anulação & outros reparos), Tolentino veio a usar a palavra “rapto”, que também tem o sentido de “enlevo, êxtase” e cuja raiz é muito freqüente na língua inglesa com a palavra de sentido idêntico “rapture”. Mas o uso de “ebbrezza” sugere que Tolentino ainda pensava na oposição entre o artista e a pessoa comum em termos mais românticos, isto é, em termos que já estavam prontos, e que veio a abandonar quando equacionou o problema à sua própria maneira, mais sofisticada.

De todo modo, como cabe ao tradutor ser fiel antes ao poema do que àquilo que o poeta enfim se tornou, e ainda sabendo que o próprio poeta quis publicar o poema assim mesmo já em sua maturidade, não há rigorosamente nenhuma razão para insistir na fidelidade ao último Tolentino – além de ser ingenuidade ignorar a conveniente rima com “altura”.

O poema ainda traz a “asa de ouro”, clara referência ao pássaro de ouro de Byzantium e Sailing to Byzantium de W.B. Yeats, que, sendo imortal (feito de “changeless metal”) cantava aos mortais os acontecimentos de todos os tempos (“what is past, and passing, or to come”), e cujo canto teria levado o poeta a conhecer a “ebbrezza”. Vencendo a mortalidade e preservando a beleza, o “tordo de Bizâncio” – como aparece em outros poemas de Tolentino – enlevaria, isto é, elevaria o ouvinte, daí que sua voz possa ser chamada de “asa”.

Os falcões do poema retornam, mas como um único falcão, na página 205 de Os deuses de hoje (Rio de Janeiro: Record, 1995), em que o momento imóvel do falcão sugere o momento de rapto preconizado por Tolentino:

O falcão parado
no ar um momento,
imobilizado
no ar pelo vento
que lhe empurra o peito
parado, perfeito,
no exílio do céu.
(…)

Mas a sugestão do rapto, que é instantâneo, e só não dizemos “atemporal” para não cair na Idéia – fica por aí mesmo: logo depois Tolentino se identifica ao falcão – como já tinha dito, ele não podia ser separado dos falcões – e diz que abandonou a solidão da altura para juntar-se à grei; isto é, Bruno Tolentino abandonou fisicamente a vida que levara por décadas na Europa para retornar ao Brasil, pois “não soube ser / daqui nem de lá”. E, provando que realmente não aprendeu a dar adeus a seus falcões, tira deles a lição da altura e da solidão, que permanece gravada na alma, que o alheado carrega mesmo quando volta, e que, novamente à moda de Yeats, purifica, já que “é ainda um sinal / da torre ancestral / que há no coração.”