Bruno Tolentino, vencedor do Jabuti de poesia

Nesta terça, liga-me cedo o Martim para dizer que assistira à apuração dos votos do Prêmio Jabuti e que Bruno Tolentino ganhou o de poesia. Mas como, segundo as regras da Câmara Brasileira do Livro, autor falecido ganha mas não leva, o primeiro lugar foi transformado em homenagem póstuma.

Na segunda tivemos uma bela homenagem a Bruno Tolentino aqui no Rio, na livraria DaConde. Para quem não pôde ir, eis-me aí recitando o que recitei naquela noite.

Pedro lendo Bruno Tolentino

Leitura de “E lhe cantei então este acalanto”: 3m04s

[audio:acalanto.mp3]

Endechas a Bárbara escrava

Luís de Camões

Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo;
e, pois nela vivo,
é força que viva.

Leitura e comentário: 2m16s
[audio:endechas.mp3]

Obra completa de Camões

Uma das coisas que mais gosto neste poema de Camões é como ele parece que poderia ter sido escrito hoje. Nas duas edições que tenho dele, a da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, e na antologia preparada pelo professor Massaud Moisés, apenas uma palavra aparece grafada à moda quinhentista: “fermosa” no lugar de “formosa”. Normalmente também esperaríamos ver “pera” no lugar de “para”, mas não disputarei com estes editores. E não me incomodaria, para falar a verdade, a modernização de “fermosa”.

Claro, há construções que dificilmente produziríamos. Ninguém soltaria um “neles lhe mora”; bastaria “neles mora”. Também ninguém “perde opinião”. A palavra “siso” só parece subsistir na expressão “muito riso é sinal de pouco siso”, e acho que só a conheço porque uma professora na escola – e lá se vão quase 20 anos – a usava com freqüência. Mas expressões como “Pretidão de Amor”, vindas de um português na Índia no século XVI, humilham o nosso modernismo nativista, e a brincadeira que vem logo depois com a neve, sendo também pura metalinguagem, repisa o projeto de criação de sensibilidade autóctone. Não era preciso inventar nada. Bastava voltar a Camões. Sempre basta voltar a Camões. E mesmo o Pe. Baltazar Estaço, já citado aqui, reclamava do modelo petrarquista da mulher loura de olhos verdes, a única a aparecer nos poemas:

Que enfadonha certeza é celebrardes,
os poetas profanos, olhos belos,
e mais que sejam brancos, ou amarelos
sempre verdes formosos os pintardes.

Que velhice tão certa nomeardes
por fino ouro quaisquer negros cabelos,
e se os raios de sol ousaram vê-los,
cos raios do sol os comparardes.

Os portugueses sempre foram misturados, nunca foram suecos, e por isso já reclamavam desde aquela época contra a uniformidade etnocêntrica da musa a ser cantada; ou, melhor dizendo, o Pe. Estaço já reclamava e Camões já resolvia o problema.

Mas a presença do ideário clássico, a marca mais quinhentista mais forte do poema está no Amor com A maiúsculo, que não denota uma devoção ao nobre sentimento, nem àquilo que “move o sol e as estrelas” no sentido de Dante Alighieri, mas ao deus pagão Eros ou Cupido. A pretidão dos cabelos da escrava é uma das armas de Eros; e enquanto o “povo vão” – a elite literária e talvez até o povão – se ocupa do fetiche universal pela lourice que continua existindo, Camões não perde a chance de cantar o que é no mínimo tão belo quanto e, dentro da literatura de então, exótico. Os olhos também não estão cansados de matar; o Amor aqui não mata, não atormenta, não destrói, mas cuida, alivia, vivifica.

Por estas subversões de padrões, é estranho que este poema não tenha feito escola, ao menos no novidadeiro Brasil. Mas certamente continuou sendo lido: diante dos versos “nem no céu estrelas, / nem no campo flores” é impossível não pensar na “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias: “nosso céu tem mais estrelas, / nossos várzeas tem mais flores”; a impressão é que Dias escreveu primeiro “campos” e depois trocou para “várzeas” para disfarçar um pouco. Curioso é encontrar um eco tão forte de um clássico português no poema mais clássico do nacionalismo brasileiro; mas não há como fugir, porque onde se fala português, ouve-se Camões.

Escrito em cinco sílabas, o poema é lento; parece que a redondilha menor é um dos limites da possibilidade de variação rítmica. Tudo que já li em quatro sílabas – tudo de bom, não as coisas ruins, que só ficam dizendo “eu tenho quatro sílabas, ta-tan-ta-tan” – era rápido, até um pouco vertiginoso. Talvez a plasticidade da língua portuguesa dê um salto a partir da incorporação da quinta sílaba.

Há ainda um detalhe interessante na estrutura do poema. Ele é dividido em estrofes de oito versos, dividida em duas frases (períodos sintáticos) que duram quatro versos. Tematicamente, a última e a primeira metade da estrofe seguinte estão ligadas, separando a primeira metade da primeira estrofe e a última metade da última, que por sua vez estão ligadas entre si. A primeira primeira metade começa com “aquela”, o pronome demonstrativo que indica uma certa distância; a última última metade começa com “esta”, que indica proximidade. O contraste, é claro, é entre o personagem a apresentar e o apresentado, e nos faz perguntar por que Camões teria “cortado” o poema em estrofes de oito e não de quatro versos, já que assim atingiria mais unidade. Mas há ainda um outro contraste: aquela visão subversiva do Amor só vai aparecer no meio do poema e ser reiterada no final. No início, ele diz: “porque nela vivo, / já não quer que viva”, isto é, a amada, que nos dois últimos versos é fonte de vida, começa matando o amante. É neste ponto que não custa observar que este início parece um pouco automático. A cativa, supondo que tenha existido, simplesmente lhe apareceu na mente. Estando apaixonado por ela, ou de algum modo enamorado, dizer-se cativo dela também é quase imediato; é uma pequena ironia que ocorreria a qualquer pessoa que gosta de palavras. Dizer “porque nela vivo” também não é o máximo da originalidade, e “já não quer que viva” parece-se com o automatismo do próprio modelo amoroso que será contestado poucos versos depois. Portanto parece que Camões realmente começou o poema daí, sem maiores pretensões, e viu-o tomar direções inesperadas. Isto lembra Auden em uma de suas mais interessantes distinções: a obra de arte de um poeta, músico etc. seria diferente da obra de um sapateiro porque este inicia o trabalho com um fim predefinido e o poeta não sabe direito o que vai acontecer.

O tigre de William Blake

William Blake

Tradução de Vasco Graça Moura, publicada em Laooconte, rimas várias, andamentos graves (Lisboa: Quetzal Editores, 2005).

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria
tua terrível simetria?

de que abismo ou céu distante
vem tal fogo coruscante?
que asas ousa nesse jogo?
e que mão se atreve ao fogo?

que ombro & arte te armarão
fibra a fibra o coração?
e ao bater ele no que és,
que mão terrível? que pés?

e que martelo? que torno?
e o teu cérebro em que forno?
que bigorna? que tenaz
pro terror mortal que traz?

quando os astros lançam dardos
e seu choro os céus põem pardos,
vendo a obra ele sorri?
fez o anho e fez-te a ti?

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria
tua terrível simetria?

Leitura e comentário: 3m03s
[audio:tigre.mp3]

William Blake

The tyger, parte de Songs of Innocence and of Experience, de Willam Blake, é um dos poemas ingleses mais conhecidos no mundo luso, e por isso mesmo um dos mais traduzidos. Contudo, ninguém conseguiu vertê-lo melhor que o português Vasco Graça Moura, que merece, por seu trabalho como crítico, poeta e fantástico tradutor (da Divina Comédia, dos Sonetos de Shakespeare, por exemplo), o título inexistente de “Jorge de Sena do nosso tempo”. Apesar de tudo o que é evidentemente perdido em qualquer tradução de poesia, a mim parece sumamente filisteu não admitir que, em certos trabalhos excelentes, muita coisa é recuperada e, por conseqüência, uma obra em língua estrangeira pode passar a ocupar um lugar na nossa língua. Os anglos nunca foram bobos e sempre consideraram as traduções dos salmos por Miles Coverdale parte de seu cânon; e Samuel Johnson disse que as traduções dos clássicos feitas por Dryden e Pope “afinaram” a língua inglesa de tal modo que, depois delas, nunca mais apareceu um poeta que não captasse sua melodia. Tenho a impressão de que, no caso do português, foi Camões quem prestou este serviço.

Uma boa tradução de um grande poema em língua estrangeira também traz, além das possibilidades sonoras, certas possibilidades imaginativas. As obras em língua portuguesa parecem ser muito amigas do realismo e da intimidade, talvez pela influência francesa; já na Inglaterra parece que sempre houve mais amor por tudo que parecesse exótico e fantástico. De fora, posso dizer que não me espanta que um poeta como Blake tenha surgido ali, mas duvido muito que Blake gostasse de ser considerado “mais um poeta fantástico”, já que ele parecia levar muitíssimo a sério tudo o que escrevia – uma atitude que, curiosamente, pode ser desdenhada por muitos autores mas que parece garantir mais longevidade às obras do que seu contrário.

Songs of Innocence and of Experience trata de dois aspectos da criação: de um lado, o que é pequeno, inocente, frágil e belo por sua delicadeza, tendo como símbolo o cordeiro, o “anho” (palavra que pouco usamos no Brasil), que remete obviamente ao menino Jesus. De outro, aquilo que é majestoso e tremendo, tendo como símbolo o tigre. O poema “The tyger”, aparecendo na segunda parte, Songs of Experience, complementa The lamb (“O anho”) nas Songs of Innocence, poema em que Blake afirma candidamente ao cordeiro com quem dialoga que Aquele que o criou também chama a Si mesmo “cordeiro”; daí que, diante da força do tigre, ele prefira apenas perguntar: “fez o anho e fez-te a ti?” (“did he who made the lamb make thee?”). Estes dois aspectos da existência – reluto em falar de “arquétipos” para evitar qualquer associação com o Dr. Jung – estão simbolizados por duas estrelas que estão a praticamente 180 graus uma da outra: Aldebaran, o “Olho do Touro”, e Antares, “o Coração do Escorpião”. Ainda que hoje elas estejam próximas dos pontos norte e sul, por causa da precessão dos equinócios, há coisa de 5000 anos marcavam os pontos leste e oeste, daí sua associação com o início e o fim das coisas – o ponto leste marca a primavera e o oeste o outono – , e também com certos mitos. Hoje as estrelas não têm mais personalidade, e são tratadas genericamente apenas pelo nome de “estrelas” (assim como para mim, nascido e crescido na cidade, só existem “árvores”), mas é muito difícil achar que Blake, no século XVIII, não tivesse considerado um simbolismo tão antigo, ainda mais considerando os pendores que tinha para estas considerações. (A propósito: se você for pesquisar estas estrelas, vai ver que elas também foram associadas a anjos; mas saiba que o Judaísmo e o Cristianismo só reconhecem oficialmente os nomes de três deles, Miguel, Rafael e Gabriel; pronuncie por sua conta e risco os demais nomes, porque podem ser de anjos caídos, e dizer um nome é invocá-lo.)

Ao ler o poema, atente para seu ritmo bem marcado: um dos maiores feitos de Vasco Graça Moura é fazer com que consigamos ouvir o original mesmo na tradução. Os poemas de Blake são exemplos extremos de como a infidelidade à métrica na leitura pode fazer com que grande parte do efeito final seja perdida – e a leitura da poesia será o tema do próximo texto dominical.

São Tomás de Aquino hoje

Comentario a Ave-Maria

Na noite de quarta recebi dois amigos – Remo Mannarino Filho, que já contribuiu uma vez com O Indivíduo, e Omayr José de Moraes Junior, minha referência particular para assuntos filosóficos e católicos – aqui em casa e, aproveitando a especial familiaridade de Omayr com a obra de São Tomás fizemos algumas perguntas e gravamos – uma por uma, para facilitar a vida do leitor.

Talvez você tenha visto nas livrarias o Comentário ao Pai-Nosso de São Tomás de Aquino traduzido por Omayr José de Moraes Júnior. Omayr lançou este ano sua segunda tradução de São Tomás, o Comentário à Ave-Maria (ou Comentário à Saudação Angélica), cuja capa está aí do seu lado. O livro custa R$21 e você pode comprá-lo diretamente com Omayr, ou em SP, na Livraria Cultura, na Nobel da Av. Paulista, na Loyola, na Veritas do Shopping Eldorado, e, no Rio, na Paulus, na Vozes, na Lumen Christi (Mosteiro de São Bento), na Livraria da Travessa, na Letras & Expressões, na livraria da Igreja Nossa Senhora da Paz e nos sebos Luzes da Cidade e Baratos da Ribeiro.

  1. Os sacerdotes que testemunharam o Vaticano II tinham mais resistência a São Tomás do que os sacerdotes mais jovens. O estudo de São Tomás de Aquino pelos manuais e os males que isto trouxe. 3m44s.
    [audio:omayr01.mp3]
  2. Depois que a Igreja Católica de certo modo parou de dar tanta importância a São Tomás, os não-católicos, sobretudo os anglo-saxãos, sentiram-se “liberados” para estudá-lo. 2m48s

    [audio:omayr02.mp3]
  3. Como alguém que nunca leu São Tomás deve se aproximar de sua obra? Qual o São Tomás mais acessível? 2m15s
    [audio:omayr03.mp3]
  4. A estrutura da vida intelectual na Idade Média. O que São Tomás enfrentou para tornar-se professor. O confronto de pares e alunos. 5m44s
    [audio:omayr04.mp3]
  5. A disputa medieval, o “torneio dos clérigos”. Disputas ordinárias e quodlibetais, sempre ao vivo, sem a possibilidade de voltar ao gabinete para procurar bibliografia. 4m40s

    [audio:omayr05.mp3]
  6. São Tomás de Aquino é “multifacetado”. Mas que facetas são essas? Quais eram as expectativas que São Tomás precisava atender? São Tomás pregador, como bom dominicano. E, antes de tudo, um santo. 5m50s

    [audio:omayr06.mp3]

Mais Bruno Tolentino

Começando a comemorar já na véspera os 9 anos do Indivíduo, mais um poema. A gravação tem um minuto e meio.

[audio:tudoaquiembaixo.mp3]

101

Bruno Tolentino

“O castelo interior”, As horas de Katharina.

São Paulo: Companhia das Letras, 1994

Tudo aqui embaixo quer o que ela quis.

Toda alma quer fazer o que ela fez.

É desastroso ouvi-la que uma vez

ouvido tudo aquilo que ela diz

é impossível voltar a ser feliz,

ou infeliz, com a mesma insensatez

de antes. É possível, se talvez

perigoso demais, ser aprendiz

da morte nobre, voluntária e ávida,

que a santa expostulou na fortaleza

prodigiosa e interior, se árida

(como Castela) à débil natureza.

É possível tentar (mas como Ávila)

durar na altura (torturada e presa).

No aniversário de Bruno Tolentino

Hoje Bruno Tolentino completa 66 anos. Digo sem pudor: creio que é o maior poeta vivo da língua portuguesa.

Hoje há em português muita coisa interessante de se ler, muita coisa bem feita, esmerada, é verdade. E há ainda aqueles livros cujas resenhas falam da “fragmentação do homem contemporâneo”, de “margens” e “rupturas” e que o autor “propõe uma visão de mundo em que…”, livros que podem valer uma tese de mestrado mas não proporcionam prazer a ninguém. Mas se você quiser ler poemas contemporâneos que têm música, poemas que grudam no seu ouvido e que você fica recitando para si próprio, pode ir à obra de Bruno Tolentino.

Novidade: clique aí embaixo para me ouvir recitando o poema. Dura mais ou menos um minuto.

[audio:inpassim.mp3]

In passim

Bruno Tolentino. O mundo como idéia.

São Paulo: Globo, 2002. p. 250

Tudo vai-se acabando, tudo passa

do que é ao que era. É tudo mais

ou menos uns vestígios de fumaça

no espaço do que deixas para trás.

E tudo o que deixaste ou deixarás

de manso ou de repente, sem que faça

diferença nenhuma no fugaz,

é assim como a garoa na vidraça:

intimações de lágrima delida.

Não valeu chorar nada. Nem te atrevas

a lamentar-te à porta da saída,

pois pouco importa a vida como a levas,

que ela te leva a ti, de despedida

em despedida, a uma lição de trevas.