As palavras e as coisas

No entanto, esses termos fazem perfeito sentido para quem os utiliza. Neoliberalismo são as políticas econômicas derivadas do consenso de Washington: por exemplo, certa austeridade fiscal, privatizações. Só é verdade que ninguém no movimento liberal se autodenomina “neoliberal”. Nem os defensores do consenso de Washington se autodenominam neoliberais. O termo é sempre usado com reprovação, e diz no mínimo tanto sobre quem o utiliza quanto sobre a coisa supostamente referida.

Marxismo cultural seria, para quem usa o termo, a estratégia de dominação cultural derivada principalmente dos autores da escola de Frankfurt e de Antonio Gramsci. A estratégia consistiria em primeiro criar uma cultura dócil aos ideais comunistas, para que a chegada da revolução fosse suave. Estou longe de ser conhecedor dos autores da escola, mas é divertido pensar que muitas páginas de Walter Benjamin ou mesmo de Erich Fromm facilmente seriam lidas com lágrimas de aprovação por vários conservadores atuais; ou que certas análises de Gramsci do Estado burguês italiano poderiam ser lidas pelos liberais brasileiros talvez quase sem ressalvas.

Por fim, ideologia de gênero seria uma espécie de resultado do marxismo cultural, ou algo surgido no rescaldo deste. Quem usa o termo suspeita enxerga nele o pressuposto de que os gêneros são puras construções sociais, sem relação com o sexo biológico; também enxerga burocratas que desejam introduzir esses questionamentos no mundo infantil.

(Essa, aliás, é a mesma questão por trás do “nazismo de esquerda”: basta que você defina como “esquerda” toda intervenção estatal e pronto. É por isso que certos liberais também chamam os conservadores e até os monarquistas de “socialistas” – porque estão enfatizando a primazia do governo sobre a sociedade civil.)

O problema real desses termos é que eles servem apenas para pessoas que já concordam com os pressupostos embutidos neles. Não vou negar o direito de um grupo ao seu dialeto, mas também não vou abandonar a empreitada que me parece mais interessante: tentar entender os pressupostos de cada um, tentar falar e escrever de um jeito que faça sentido para o maior número de pessoas.

Sobre novidades de gênero no português

Até onde me lembro, não existe neutro em português. Você pode acrescentar um X no lugar da desinência, outra letra, um emoji de elefante, vá lá; porém, se você trabalha com o idioma, pensa numa escala de séculos, entende que o neutro do latim foi absorvido pelo masculino do português, e sabe que isso não tem nada a ver com língua politicamente correta, porque em latim (ou em grego) não se formava plural unissex tascando um neutro.

Em latim, por exemplo, homem, ser do sexo masculino, não é homo, mas vir; homo é o “humano”. O mesmo vale em grego para anthropos (o humano) e o andros (o homem do sexo masculino).

Ao contrário do outrora famoso cantor Chico César, eu nunca fui mulher, mas entendo perfeitamente que se possa ter uma bronca porque o plural de homens e mulheres é masculino. (Quer dizer, eu acho que teria, se fosse mulher.) Como tradutor, sempre tentei minimizar isso, e sempre foi fácil, porque o português conta com gêneros diferentes para designar os sexos: a criança, a pessoa, o indivíduo – os pronomes referentes vão seguindo os nomes que antecedem.

Por outro lado, principalmente em inglês, está difícil achar um livro contemporâneo que não nos surpreenda com um gênero feminino que designe os dois sexos. Traduzindo, isso é chato, porque o autor pode falar, por exemplo, “the student”, “the student”, “the student”por páginas e páginas, e depois tascar um“she”. Vejam que no caso do inglês nós só ficamos sabendo da opção pelo feminino “sem sexo” depois; em português, essa opção teria de ficar clara desde o começo, com “a estudante”, e o risco de criar, para o leitor, um mal-entendido.

Vejam ainda que eu escrevi a frase anterior de propósito. Se eu dissesse que há um risco de criar para a leitora um mal-entendido, uma leitora poderia pensar que estou menosprezando sua capacidade de leitura.

Daí eu concluo recordando que na maior parte das vezes escrever é uma atividade conservadora. Uma linguagem que fere algumas sensibilidades mas que funciona é preferível a uma linguagem que não fere essas sensibilidades mas que começa a criar confusões. Isso não é exatamente uma opinião minha; é uma decorrência da noção de padrão. Que vantagem existe num padrão além de poder ser usado pelo maior número de pessoas, na maior escala de tempo? A cada vez que tentamos incorporar quaisquer novidades ao idioma, fazemos o passado parecer um pouco mais datado, fazemos os demais falantes ficarem um pouco mais antiquados, ou pouco mais distantes.

Blog não é textão

Tenho pensado sobre gêneros textuais. Deus sabe o que a diversidade vem ensinando nas escolas, mas gêneros textuais são diferentes de gêneros literários, ainda que sejam parecidos com estes. Gêneros textuais são uma das partes mais dolorosas daquilo que você não sabe quando aprende uma língua estrangeira: a carta comercial, a redação de escola, o artigo de jornal. Não pense o leitor que esses gêneros não variam de idioma para idioma…

Nos últimos anos internéticos (dois, três, cinco, sei lá; tudo na internet parece que foi ontem e que foi no século retrasado) surgiu um novo gênero textual: o textão, que parece viver entre o Facebook e o Medium. Nunca o entendi bem. Meu lado autista-psicótico-literalista me sugere que é apenas um texto comprido, o que provoca a ladainha automática de que “ninguém mais lê, ó, meu Deus etc.” Por outro lado, a experiência mostra que o textão é uma espécie de lição de moral sem a menor graça retórica ou narrativa. Esopo escrevia fábulas, La Fontaine deu seu pitaco, e padres e pregadores empenharam-se em falar bonito. Se mantivermos a frieza classificatória, o padre Antonio Vieira foi o grande clássico do textão em língua portuguesa — e veja o leitor que alguns de seus sermões são tão compridos que é o caso de realmente perguntar-se se ele os fazia mesmo nas igrejas.

Além da polarização ideológica, parece existir ainda outra polarização: aquela entre o textão e a zoeira. De fato, muitas vezes pode ser difícil até mesmo distinguir um do outro. Mesmo assim, e para aquém ou além das 28 razões pelas quais você nunca mais precisará acompanhar um argumento de cabo a rabo, o impulso moralizante aparece o tempo todo. Dá saudade de quando era possível simplesmente falar e ouvir sem demonstrar ser virtuoso ou (virtuosamente) engraçadinho.

No fundo, a ideia é essa. Os anos passam, a água corre debaixo da ponte Mirabeau, e o formato do post de blog me parece mais adaptado a um tom de conversa, à fala relaxada de quem no entanto preza um certo rigor (mesmo que esteja sinceramente equivocado). Ouso dizer que isso, hoje, soa até ligeiramente subversivo: escrever porque sim, por puro gosto da conversa, por puro gosto do idioma. Diletantismo? É provável. Não me importa, ou talvez me importa muito: parece um diletantismo urgente.

O meio é a mensagem. O blog é anárquico, antiquado; guarda alguma coisa do mundo impresso, presta-se a mil atualizações diárias e a duas atualizações mensais.

Vejamos quanto tempo dura está encarnação de O Indivíduo.

Notas para um conservadorismo linguístico (III)

Ça suffit.

Após dois meses deveras intensos, volto ao blog e admito duas coisas:

1. Comecei a escrever sobre “conservadorismo linguístico” pensando em usar um tom conciliador etc. Realmente é necessário que haja alguma ideia clara de conservadorismo linguístico, uma ideia que possa ser transmitida. E, mesmo que não seja transmitida uma ideia, que ao menos seja transmitida uma atitude conservadora.

2. O que me motivou a escrever tudo isso foi um texto de Marcos Bagno. Um texto em que Bagno, pela enésima vez, dizia que toda reclamação contra o uso de “presidenta” seria um disfarce para “a reação de determinados setores da sociedade, do lado conservador do espectro ideológico, à ascensão ao cargo máximo do poder de uma mulher e, não só, de uma mulher vinculada a um projeto político que se identifica com as forças convencionalmente chamadas de esquerda”. Senhor doutor Bagno, não venha fingir que esses setores conservadores não adoram Margaret Thatcher. O problema com a “presidenta” é que o uso é incomum e assim abre caminho para a serventa, a gerenta etc.

Bagno, no texto, lembra – como eu mesmo já lembrei – que sim, o dicionário lista “presidenta”. Mas é aquilo: nem tudo que é bom é conveniente, ou nem toda coisa boa é convenienta. Fica o dilema: se você vai adotar o uso de “presidenta”, então depois só poderá condenar o de “gerenta” se apelar ao dicionário. E eu mesmo não teria problema nenhum em relação a isso, aliás.

O problema com Bagno – o problema, aquilo que realmente me motivou a começar a escrever, foi a seguinte frase: “o recurso aos dicionários não autoriza nem desautoriza ninguém a dizer ou a não dizer o que quer que seja”. Que Bagno diga isso logo após ter recorrido a três dicionários para justificar o uso de “presidenta” faz com que eu me indague se ele está usando um truque neurolinguístico para afirmar sua própria autoridade de gramático formado e certificado, ou se é burro mesmo.

Posso admitir sem problemas que toda autoridade é concedida e que numa certa medida essa concessão é arbitrária. (Essa admissão é terrível – estou ciente.) Só que a afirmação de que “o dicionário não autoriza nem desautoriza ninguém etc.” é simplesmente falsa na medida em que é exatamente o dicionário que mantém uma certa estabilidade lexical. Se você traduz, como eu, recorre ao dicionário para ter certeza de que não está inventando um novo sentido para uma palavra. Porque é melhor que você use um sentido que está só no dicionário, mas que pode ser acessado pelo leitor, do que usar um sentido que está só na sua cabeça. Isso não é óbvio? Realmente não é? Se o sr. Bagno gosta de dizer que toda relação é política, sou eu, que sou de direita, católico, conservador em moral e liberal em economia a não mais poder que tenho de insistir na cortesia com o leitor. Porque o homem de esquerda está fazendo o que os comunistas sempre fizeram: acredite em mim porque sou eu que estou falando, não repare na minha prestidigitação argumentativa, e se você discordar, bom, você é um reacionário burguês que… não gosta da esquerda.

Vejam, tudo isso é muito abaixo da crítica. Acho também que demorei dois meses porque eu queria encontrar algum jeito delicado de observar isso. Mas não há.

Essa cortesia de que falei é a base do conservadorismo linguístico. É o desejo de ser entendido por outras pessoas, da maneira mais clara, mais direta possível. Quem quer afirmar a autonomia de cada falante é a serpente do Paraíso. “Vai lá, janotinha, fale como quiser, escreva como quiser, bote aí umas arrobinhas no lugar dos artigos, se ninguém te entender, é que eles estão te oprimindo.” Ora, chispe já daqui, sua serpente ridícula, vou esmagar sua cabeça com o Houaiss e usar seu couro para forrar meu Caldas Aulete.

Notas para um conservadorismo linguístico: parêntese para comédia

A comédia do preconceito linguístico é a seguinte. De um lado, há os que gritam contra os preconceituosos, que só têm um domínio superficial do idioma. De outro, estão os conservadores linguísticos, que estão dispostos a dirigir todos os recursos necessários para que as pessoas possam dominar a mesma norma dos preconceituosos.

Imagine esta situação: fulano tem uma coisa preciosa e eu denuncio fulano porque fulano fala mal de mim só por eu não ter essa coisa. Aí vem um terceiro e diz: “Olha aqui, vou te dar a coisa preciosa.” E então eu respondo: “Eu não quero isso, eu quero que fulano diga que a coisa preciosa não tem valor nenhum e que a que eu tenho vale tanto quanto a dele!”

Depois a gente fica com um pé atrás em relação ao discurso público e ainda é chamado de cínico.

Notas para um conservadorismo linguístico (II)

No texto anterior, falei de como o preconceito linguístico existe entre semiletrados. São as pessoas que dominam a ortografia e uma gramática básica e que aproveitam para gozar de quem não as domina – como se falar “nós vamos” em vez de “nóis vai” fosse um grande mérito. Mas, francamente, não vejo nada de especial nisso. Cada um exibe o que tem. O único problema é que isso acaba sendo confundido com a própria ideia de dominar bem o português. E, pior ainda, isso acaba sendo combatido por pessoas que querem que “dominar bem o português” seja simplesmente o contrário de não dominar essas regras básicas.

Existe nisso uma tremenda vulgarização da sensibilidade. Você pode observar um erro, com ou sem aspas, e ter razão nisso. Só que, com isso, acaba chamando a atenção para o erro. Em um de meus poemas favoritos, “The Quest”, Auden fala em “testar a resolução dos jovens falando das pequenas falhas dos grandes homens”. Lembro, por exemplo, de encontrar erros de ortografia em originais manuscritos de Bruno Tolentino. Você pode apreciar ou não apreciar a poesia dele, mas teria mesmo a empáfia de sequer citar, numa crítica, esse erro ortográfico?

No entanto, a noção de erro precisa ser rediscutida e, de certo modo, restaurada. Quando o linguista fala em “desvio da norma padrão”, ele está usando um termo técnico. Não creio que nenhum termo técnico tenha direitos especiais sobre a linguagem corrente. Acho engraçado que o linguista goste de dizer que num ambiente informal você não vai seguir a norma culta – e é verdade que nem os mais cultos falam de maneira tão límpida quanto escrevem, e que no Brasil a distância entre a fala e a escrita, mesmo das classes cultas, é impressionante – , argumentando a partir da ideia de adequação, e ele mesmo não se pergunte se é adequado que leigos sejam submetidos a conceitos linguísticos descontextualizados. Para um leigo, é muito mais vantajoso pensar que existe erro de português do que ter de compreender todo um arcabouço linguístico dentro do qual a frase “não existe erro” pode fazer algum sentido.

Dito isso, é verdade também que muitas críticas ao ensino tradicional são justas. Não consigo acreditar que crianças de doze anos possam se beneficiar da classificação das orações subordinas – a menos, talvez, que estudem latim e/ou grego ao mesmo tempo. Lembro de quando eu estudava, pela enésima vez, a colocação dos pronomes átonos, no terceiro ano do segundo grau. Meu professor era Sergio Nogueira. Enquanto estudávamos aquilo, eu lia, sem ser para a escola, Memórias Póstumas de Brás Cubas (essa é a melhor edição). Qual não foi a minha surpresa em ver que em diversas ocasiões Machado de Assis “desrespeitava” as regras de colocação pronominal propostas nas gramáticas. Levei o caso ao professor, que teve de concordar. E desde então eu coloquei as gramáticas entre parênteses.

De um lado, um ensino que privilegiasse a leitura, a interpretação de textos e a redação evitaria o mal de ter alunos que sabem que a palavra negativa atrai o pronome átono mas acham Machado de Assis um completo estranho. Também, se os alunos fossem capazes de escrever um pouquinho de nada como Machado de Assis, não seria nem necessário, nem razoável, ser capaz de enunciar essas regras todas.

De outro lado, a ideia de uma norma padrão está associada ao Estado e é francamente indispensável para ele. Não é possível manter um Estado funcional com documentos com redação ambígua. Imagine desde editais incompreensíveis até petições e decisões judiciais que ninguém consegue entender. Um pequeno exemplo: você defende o “nóis vai” porque o português já marca a primeira pessoa do plural no pronome, tornando o verbo redundante. Porém, essa redundância permite a omissão do pronome em incontáveis ocasiões. Se a marcação da pessoa ficasse a cargo do pronome, ou o português teria de ficar mais parecido com o inglês, para evitar ambiguidades, com pronomes aparecendo o tempo inteiro, e assim perderia um traço seu bastante distintivo, ou simplesmente passaríamos ao caos – a uma Babel não de idiomas, mas a Babel de “normas”.

Ao dizer isso não pretendo defender o Estado. Só me surpreende que aqueles que defendem a relativização da norma culta sejam os mesmos que defendem sempre mais intervenção estatal, mais soluções estatais, na forma de leis e de políticas públicas.

Curioso ainda que não percebam que a ideia de uma norma padrão é profundamente igualitária. Aliás, ela sim poderia ser um instrumento de equalização. O político mais poderoso, o milionário mais rico, o intelectual de maior prestígio e qualquer pé-rapado submetem-se às mesmas regras. Claro que isso não acontece hoje: o político mais poderoso fala de qualquer jeito e entende quem tem juízo; o milionário mais rico pode balbuciar qualquer coisa que os interessados perderão horas para entendê-lo; o intelectual de maior prestígio pode inflar seus discursos até ultrapassar todos os limites do tédio; o pé-rapado poderia falar melhorzinho mas a escola considerou que isso seria opressão.

Só que aqui já estamos numa questão plenamente política, e não mais linguística.

Notas para um conservadorismo linguístico (I)

Em nome do combate ao “preconceito linguístico”, vai-se jogando fora uma noção que, na verdade, talvez nunca tenha nem sido muito bem compreendida: a noção de falar bem, de escrever bem, de expressar-se bem. Não é difícil imaginar que é melhor ler um texto e entendê-lo de maneira imediata e com o mínimo de ambiguidades do que ter de penar para entendê-lo. O mesmo, é claro, vale para um discurso falado.

No Brasil, ao menos na minha experiência, escrever e falar mal costumam significar duas coisas. Se a pessoa tem algum diploma (é difícil dizer “formação”), ela fala e escreve de um jeito empolado, cheio de circunlóquios, realmente caricatural. Os textos acadêmicos trazem exemplos abundantes: meu favorito ainda é “um argumento cujo desdobramento subsequente se dirige no sentido de conceber”, cujo autor terá sua identidade preservada. Se você também for a um congresso qualquer, e sobretudo se você for lá para trabalhar como intérprete, vai sofrer na hora das perguntas. Os brasileiros nunca completam uma frase, ficam dando voltas, colocam um aposto atrás do outro, o verbo da oração principal nunca chega… Por outro lado, se vamos ver o discurso daqueles que seriam o alvo do famoso “preconceito linguístico”, temos as mesmas frases que não terminam, e, na escrita, a quase total ausência de pontuação. Você diz que eu sou um opressor que tem fetiche pela norma culta, e eu digo que, só para ficar num critério bem utilitário e nada empolado, preferia não ter de decifrar cada discurso que me chega. Essa é a vantagem da norma “padrão”.

A solução desse problema, a meu ver, é a seguinte: acabar com o ensino que privilegia a gramática e botar a molecada para ler e escrever muito. A língua é um hábito. Você não vai aprender a escrever bem lendo gramáticas, mas lendo Machado de Assis, Camões etc. É até fácil ver como essa estrutura do ensino está refletida nos dois principais tipos de mau português. O aluno só conhece dois registros: o coloquial mais básico e outro, abstrato, que parece não se referir a nada, mas que ele precisa macaquear para passar de ano e que ele acaba associando a uma impressão de respeitabilidade. Sem contar que o português é exigido pelos concursos públicos. Nesse caso, o concurseiro, em primeiro lugar, volta a estudar um monte de gramática, e depois fica lendo um monte de textos horrorosamente escritos, empoladíssimos, o que reforça a perversa ideia de que a “gramática” e a “norma culta” não passam de um monte de idiossincrasias que um bando de gente recalcada usa para oprimir os outros.

Existe o preconceito linguístico? Existe, claro. Mas eu só o vejo sendo praticado por pessoas semiletradas contra pessoas iletradas. Aqueles que conseguiram imitar trejeitos gramaticais rudimentares fazem pouco daqueles que não conseguiram. É o empolado que fala mal do roto, e os gramáticos “progressistas”, como o sr. Marcos Bagno, vêm defender o roto na base da carteirada: “sou gramático – e progressista!”. Fica tudo num universo nebuloso: o coitado que não enxerga a norma padrão, o que enxerga as aparências dela e o gramático que abusa da sua autoridade.

Cuspido e escarrado

Sem querer dar uma de filólogo, que certamente não sou, devo dizer que fico um tanto perplexo com a segurança com que ouço dizer que a expressão portuguesa “cuspido e escarrado” – usada em frases como “ele é o retrato cuspido e escarrado do outro”, no sentido de que ele é igualzinho ao outro – teria vindo de “esculpido em Carrara”. Carrara é uma cidade italiana de onde vem um tipo de mármore, conhecido justamente como “mármore de Carrara”.

A ideia de que o “esculpido em Carrara” deu “cuspido e escarrado” parece fazer sentido por causa da semelhança sonora. E também porque costumamos pensar que o povo interpreta mal aquilo que lhe parece exótico. Esse pensamento não é todo equivocado: quem mora no Rio sabe que a praça Saens Peña também é chamada de Saens Pena, e que o bairro de Realengo veio a receber esse nome porque era indicado em placas como Real Engo. Nesse caso, o interpretar mal significa interpretar uma regra desconhecida segundo uma regra conhecida. Aqui, é claro, haveria uma deixa para discutir o objetivo da educação: ensinar novas regras, ampliar o leque de regras conhecidas, ou ficar só “falando de coisas próximas da realidade do aluno”?

Mas, tornando à expressão, já procurei fontes autorizadas que digam que a origem de “cuspido e escarrado” é “esculpido em Carrara” e não achei nenhuma. O que sei é que, em inglês, existe, com sentido idêntico ao nosso “cuspido e escarrado”, a expressão spitting image, que por sua vez é sim uma “corruptela” fonética de spit and image, “cuspe e imagem”, expressão que vem da ideia bíblica de que Deus, com seu hálito, fez o homem à sua imagem. Em francês, há o portrait craché (“retrato cuspido”), e em italiano você pode dizer que é alguém é sputato (“cuspido”) a outro alguém.

Boa parte dessas informações, aliás, consta do verbete do Houaiss para “cuspido”. O Houaiss é o grande dicionário mais recente da língua portuguesa e creio não haver pedantismo em sugerir que consultá-lo seja obrigatório. Semana passada, vi gente que dizia até que o Brasil não devia fazer Olimpíada porque tinha transformado “esculpido em Carrara” em “cuspido e escarrado”. Não me lembro quem foi, nem importa. O que importa, mesmo, é ver que uns podem falar besteira, mas outros que vão criticá-los nem se dão ao trabalho de ir ao dicionário.

Estilo brasileiro x anglo

Não é bonito citar exemplos dos livros que já traduzi, por isso vou contar com a cultura do leitor ao compartilhar esta pequena observação: se um dos defeitos mais comuns da prosa do português brasileiro, seja na ficção, no ensaio ou no jornalismo, é a pobreza vocabular, muitas vezes associada a uma pobreza de estrutura, uma incompreensão da subordinação e a um tempero de termos pomposos, um dos defeitos mais comuns da prosa de língua inglesa, nos mesmos gêneros, é a transformação da riqueza vocabular num valor em si. Sim, isso dá cor ao texto. Mas isso também serve de sinal para que o leitor perceba que entrou no terreno da ambição literária, e que o autor, mesmo que esteja escrevendo algo essencialmente informativo, está implorando para ser julgado por seu estilo. Sim, é melhor que haja uma preocupação com estilo. Só que, já diziam os romanos, há medida nas coisas. Ir ao dicionário de quando em quando é parte de qualquer leitura vagamente mais séria. Ir ao dicionário o tempo todo já começa a inviabilizar a fluência. Sem contar que começa a se formar uma sensação de barroquismo carnavalesco, de excesso de ornamentação. Auden dizia que na obra de arte (e tudo pode ser obra de arte, é só você fazer com arte) o que vem em primeiro lugar é seu objeto, seu assunto. Um lugar-comum que serve, talvez, como antídoto aos defeitos de brasileiros e de anglos: deixar que o objeto guie o estilo, até porque, no caso específico das artes da palavra, há que lembrar que a linguagem também tem função referencial, e que é preciso perguntar-se se é necessário referir (chamar a atenção para) tantas coisas.

Jogralidade infinita

De Camilo Castelo Branco, “Gracejos que matam”, no começo das Novelas do Minho:

Ordinariamente, chamam-se á franceza — espirituosos — uns sugeitos dotados de genio motejador, applaudidos com a gargalhada, e aborrecidos áquelles mesmos que os applaudem. São os caricaturistas da graciosidade.

O «espirituoso», á moderna, abrange os variados officios que, antes da nacionalisação d’aquelle extrangeirismo, pertenciam parcialmente aos seguintes personagens, uns de caza, outros importados:

Chocarreiro — tregeiteador — arlequim — palhaço — proxinella — polichinello — maninêllo — truão — jogral — goliardo — histrião — farcista — farçola — végete — bobo — pierrot — momo — bufão — folião, etc.

Esta riqueza de synonimia denota que o bobo medieval bracejou na peninsula iberica vergonteas e enxertias em tanta copia que foi preciso dar nome ás especies.

Ora, o «espirituoso» tem de todas. A antiga jogralidade, que era mestér vil, acendrada nos secretos crizoes do progresso social, chegou a nós afidalgada em «espirito», e com o fôro maior de faculdade poderosa, caustica, implacavel.

Ainda assim o estreme espirito portuguez, por mais que o afiem e agucem, é sempre rombo e lerdo: não se emancipa da velha escola das farças: é chalaça.

Ha poucos mezes, falleceu em Lisboa um «espirituoso» que andou trinta ou quarenta annos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rocio. As gazetas, ao mesmo passo que nos inculcavam o defunto como pessoa que vivêra aventurosamente uns setenta annos tingidos com primoroso pincel, descontavam n’estes defeitos a sua immensa graça, e reproduziram nova edição melhorada das suas anecdotas.

Averiguado o «espirito» do homem em coisas burlescas de que fez mercancia na feira politica, liquida-se, quando muito, um folião que desbragava a penna e desembestava asselvajadamente o insulto. Por este, que não deixou nome sobre-vivente para vinte quatro horas—nem o terá aqui—orça a maioria dos jograes que tenho visto, nos ultimos trinta annos, esburgar o osso da facção que lhes alquilla o engenho detrahidor, e acabarem antes da geração que os galardoou com a moeda falsa das rizadas.

O satyrico de sala e botequim é mais funesto e menos trivial que o politico; mais funesto por que vulnéra melindres—coisa que o callôso peito da politica não tem nem finge; menos trivial, porque o chiste de Sterne, de Byron, de Voltaire, do padre Isla, de Heine e Boerne não apégou aqui, nem se adelgaça á feição da nossa indole, bem accentuada nas chocarrices plebeas de Gil Vicente e Antonio José.