X-Trans, porque somos muitos

Seu nome atual é Eva Tiamat Baphomet Medusa. Mas é também a lista das mutações às quais foi submetendo o próprio corpo no desejo de conformar uma identidade hesitante, que primeiro pretendeu-se mulher, depois dragão, depois demônio, e acabou num híbrido monstruoso de tudo isso. Tendo renunciado à condição humana para abraçar “sua mais natural autoconsciência como uma besta mítica” – tal como declara em seu blog – essa “x-trans”, outrora um bancário do Arizona que acudia ao nome de Richard Hernandez, tenta agora romper os limites binários do “gênero” para se realizar numa categoria mais abrangente, que seria a de uma “espécie”.

Aos 55 anos de idade, trinta dos quais vividos como Richard, vinte e um como Eva, e nos últimos quatro – desde que amputou as orelhas e o nariz, tingiu as escleras de verde, bifurcou a língua, tatuou-se de escamas e implantou protuberâncias sob a pele, configurando uma senhora reptiliana – diz ter evoluído de transgênero para trans-espécie, termo que designa uma prática radical de modificação corporal. Aparentemente, há coerência nessa afirmação, pois nem todo praticante de modificação corporal é um transgênero, muito embora todo transgênero seja um praticante de modificação corporal (assim como o são as beldades produzidas à custa de silicone, botox e lipoaspiração). Trata-se, portanto, de uma autopercepção que ultrapassa a sexualidade e envolve um espectro mais amplo de referências, no qual as noções de identidade e alteridade tendem, por vezes, a sucumbir numa confusão monstruosa – reavivando o antiquíssimo fenômeno de indiferenciação que, de Ovídio a Kafka, é representado como uma aflitiva metamorfose.

Todos os escritores que se detiveram nesse tema, independente do contexto, testemunham o mesmo imperativo pertinaz de se forjar uma singularidade, quer seja voluntária ou compulsória, capaz de ressignificar as relações interdividuais num vácuo de indistinção coletiva. Mas é uma singularidade que só funciona como adesão a uma esfera mítica, imantada por uma poderosa carga emocional, da qual se espera o reencontro com algo ou alguém em sua imediaticidade modelar – ou, como diz Girard, algo ou alguém suscetível de resgatar uma transcendência nas mediações.

Reparem que as metamorfoses de Ovídio e Kafka têm em comum a mesma fatalidade extraordinária com a qual seus personagens são vitimados, isolando-os numa anormalidade trans-cendente, desde a qual se faz possível um consenso identitário. Neste sentido, quando os xamãs se travestem de peles e chifres, de penas e garras, numa reconfiguração totêmica dessas entidades anormais, eles estão, precisamente, atualizando esse “significante transcendental”, que se desumaniza para restabelecer uma noção da própria humanidade.

Os monstros de todas as mitologias teriam, portanto, esse encargo de diferenciação gregária. Jorge Luis Borges, no bestiário intitulado Livro dos Seres Imaginários, cita como exemplo um monstro germânico cujo nome, Baldanders, significa “já diferente” ou “já outro”. Enquanto Tolkien, no ensaio intitulado Beowulf: the monsters and the critics, repreende os literatos de sua época por não perceberem que os monstros, Grendel e sua mãe (descendentes de Caim!), não são an inexplicable blunder of taste; they are essential, fundamentally allied to the underlying ideas of the poem, which give it its lofty tone and high seriousness. Para Tolkien, esse poema evidencia o quanto o antagonismo dos monstros lhes confere um prestígio às avessas, que sempre restou despercebido nas narrativas míticas precedentes, mas que, em razão da perspectiva cristianizada de seu autor, adquire ali conotação oposta.

Considerando então esse prestígio às avessas do “já diferente” ou “já outro”, impõe-se a hipótese de que personificar, ou melhor, despersonificar-se numa criatura monstruosa equivale a se retirar do círculo das imitações possíveis, ou seja, inviabilizar, drasticamente, toda forma de mediação, tornando-se o extremo de qualquer coisa. Mas, como ensina Girard, todo ato extremado tende a sabotar a plenitude do modelo, convertendo-o em obstáculo absoluto – no qual cada deformidade cultivada interdita e repele as atenções que até então pretendia concentrar. E o que são essas deformidades senão o conjunto de distintivos, abortados e sobrepostos, onde as individualidades irresolutas tentam se fixar sem jamais obter uma síntese unificadora.

Eva Tiamat Baphomet Medusa, numa entrevista para o canal FOX10 de Phoenix, faz um relato de sua trajetória que parece confirmar tal hipótese. Evocando lembranças de uma juventude difícil (escusas de todos aqueles que se tornam rancorosos depois de terem sido só infelizes), conta do inconformismo precoce com o próprio corpo, que lhe parecia um dado a mais na mais banal das estatísticas. Conta ainda como, na puberdade, o desejo de ser mulher despontou juntamente como o fascínio por répteis, especialmente por cobras (sem nenhuma conotação fálica, faz questão de ressaltar); e, não obstante, tocou a vida como um rapaz, teve um filho (que hoje se mantém distante); até que aos trinta anos, depois de muitas tatuagens e piercings, decidiu apagar o Richard na crossdresser Eva. Decorreram outros vinte anos de progressivas modificações, que, todavia, permaneciam aquém de uma imagem sempre inapreensível. Foi quando, já no limite do desespero, após contrair o HIV e tentar suicídio, aderiu ao satanismo, deixando-se encantar pelo Baphomet. Naquele demônio hermafrodita, ou melhor, naquele compósito de gente, cão, burro, bode, serpente e ave, supunha ter achado enfim um modelo que parecia o ponto convergente para todas as suas imitações malogradas.

O problema é que uma entidade tão marvel, tão freak, como o Baphomet, apenas exterioriza a impossibilidade daquilo que pretende realizar. É o que diz Girard em Shakespeare – Teatro da Inveja (p.129):

Entidades que começam a fundir-se jamais se combinarão verdadeiramente; o resultado é uma maçaroca de pedaços emprestados dos seres que a compõem. Se surge uma ilusão de unidade, ela incluirá fragmentos dos contrários mencionados arranjados num caótico mosaico. Em vez de um deus e um cão encarando-se um ao outro como duas especificidades irredutíveis, haverá misturas e combinações mutantes, um deus com características de bicho, ou um bicho que parece um deus.

Para Girard, essas figuras desconcertantes são os emblemas mais expressivos da própria indiferenciação, que só pode projetar-se como uma “uniformidade conflituosa” e, portanto, irrealizável. Como, aliás, não menos irrealizável é a uniformidade do “X” com qual o se pretende neutralizar os pronomes pessoais e abolir o “sexismo” de artigos e substantivos. Tudo isso seriam sintomas da mesma indiferenciação que subjaz à impostura transcendente que os transformistas arcaicos conseguiam instrumentalizar como um princípio de ordenamento. Mas agora, desprovida de suas máscaras e ritos, esvaziada de sua sacralidade, encontra sobrevida em formas residuais, sem qualquer proveito de ordem grupal, que não o de uma mera evasão. Com efeito, em cada cosplay, em cada human-pups, em cada adicto de implantes ou mutilações desfigurantes, é possível vislumbrar essa indefinição da alma, onde pulsões reativas e compensatórias irrompem como répteis ou felinos assombrosos, símios provocantes, que crescem, encolhem, revoluteiam, no esforço de firmar-se numa individualidade que jamais é satisfatória ou definitiva.

Quando quer consolar-se dessa recorrente insatisfação, Eva Tiamat Baphomet Medusa diz, em seu blog, que costuma cantar Born this Way de Lady Gaga, ou Desperate Cry do Sepultura; ou ainda ler textos satanistas para convencer-se de que sua metamorfose comporta os mesmos adiamentos decepcionantes da metanoia cristã.

Não deixa de ser uma comparação cabível, visto que as dinâmicas miméticas de ambas as operações têm na vaidade a causa genérica para toda e qualquer decepção. Na metanoia há um modelo definido, cuja transcendência se realiza como participação em nossa humanidade, fazendo de sua “imagem e semelhança” a centralidade daquilo que singulariza cada pessoa. Trata-se, portanto, de uma dinâmica mimética retrospectiva, que implica num retorno à condição original – uma conversão. Mas é essa centralidade comum e gratuita que (sem a humildade, e, sobretudo, sem o concurso da Graça) suscita frustrações e adiamentos. Ou, como diz o stárets Zósima ao jovem Aliocha Karamazov, é esse rosto humano, demasiado humano, que nos faz hesitar e recuar diante do Cristo.

Na metamorfose, por sua vez, tem-se uma dinâmica em sentido contrário, onde a renúncia à condição humana, alinhada à carência de um modelo único e centralizador, precipita o desejo em permutações cada vez mais exacerbadas – tentando assim se esquivar à participação na imagem do outro, cuja inadmissível semelhança, só pode ser decomposta pela decomposição de si mesmo. Girard aponta para algo de escatológico (ainda que num nível particular) nesse embate destrutivo entre natural e artificial. Curiosamente, Eva Tiamat Baphomet Medusa parece ter uma intuição similar, visto que, numa de suas páginas do Twitter, após fazer referência ao último livro da Bíblia, deixou a seguinte postagem: My metamorphosis reveals a new persona I am adding to my list of names: Apocalypta, the Ten-Horned Salt Water Dragon (sic).

É de se supor que suas leituras da Bíblia tenham somente o propósito fútil de buscar outro mito para se reinventar. Caberia então especular se essa busca, num livro tão desmistificador, não estaria dando ensejo a uma revelação desestruturante de seu universo fantasioso. Talvez isso explicasse outra postagem que, dias depois, dizia: Depression starting to set in. I must see a Dr. soon (sic). Talvez!… Fato é que estudos psiquiátricos recentes têm correlacionado a prática de modificação corporal a um tipo de conduta suicida. E nas estatísticas que corroboram esse estudo constam os nomes de Stalking Cat e Shannon Larratt, que, além de suicidas, foram amigos íntimos de Eva Tiamat Baphomet Medusa. Coincidência pouco inusitada para uma turma que não aguenta “ser mais do mesmo”, e faz da própria decomposição uma meta. A propósito, em outro de seus perfis no Twitter, Eva Tiamat Baphomet Medusa deixou uma mensagem tão lacônica quanto intrigante: Jesus wept! John 11:35. So did I today while take a shower. Many thoughts, many thoughts, many thoughts… É o versículo do evangelho de São João em que Jesus chora pelo amigo Lázaro, já morto. Que tantos pensamentos esse versículo ter-lhe-ia provocado? Sua comoção decorreria de uma identificação com o Cristo ou com o amigo morto?

Na falta de repostas, resta apenas o palpite de que a leitura da Bíblia estaria propiciando a Eva Tiamat Baphomet Medusa uma constatação de sua ilusão e, maiormente, de seu sofrimento. Considerando então, como propõe Girard, que o apocalipse não prenuncia um fim, mas cria uma esperança, compete rezar para que esta constatação não lhe sobrevenha como um juízo autodestrutivo. Antes, ocasione um reencontro com Aquele que pode, de fato, restaurar-lhe a individualidade; e no Dia do Juízo – lembrando o verso místico de Adélia Prado – pode fazer seu corpo ressurgir com a beleza das coisas que nunca pecaram, exato e digno de amor.

Seminário Internacional René Girard

Sexta e sábado agora, 2 e 3 de setembro, acontece em São Paulo um seminário que comemora os 50 anos do lançamento de Mentira romântica e verdade romanesca, de René Girard.

No evento serão lançados diversos livros, inclusive duas traduções minhas: Rematar Clausewitz, de René Girard, e Violência e modernismo, de William Johnsen.

As inscrições são gratuitas e você pode participar do evento pela internet.

Eu mesmo estarei lá como mediador da primeira mesa.

Fetos mutilados zumbis esquartejando os membros da Planned Parenthood

Cheguei a um ponto em que creio que nem os terroristas islâmicos são fundamentalmente islâmicos. Quer dizer, claro que são islâmicos, mas eu não acredito nem por um segundo que o fato de serem islâmicos seja a causa principal de serem terroristas (como se a o fato de a maioria dos muçulmanos não ser terroristas já não tivesse demonstrado isso, mas bem).

Estou dizendo tudo isso porque hoje cedo tive uma ideia, que pode ser lançada ao cosmos para que alguém a estude, ou talvez eu mesmo, no futuro. Seria preciso reunir uma grande bibliografia e por isso vou falar algumas coisas de orelhada agora. O ideal seria ter um ano ou dois para entregar à pesquisa.

Bem. Já ouvi algumas vezes que até os anos 1960 ou 1970 ninguém no mundo islâmico se lembrava de que as cruzadas existiram. Foi só depois dessa época (não por acaso, a época em que, se não me engano, começou a influência da intelectualidade europeia moderna sobre os países árabes) que surgiu o ressentimento difuso contra o Ocidente por causa das cruzadas. E, claro, há também no mundo islâmico diversos ressentimentos internos. Aqui deste lado do planeta lembramos mais dos atentados de NY, de Madri e de Londres, mas houve muito mais atentados por lá mesmo (do Egito à Índia, sem contar os atentados contra as forças de ocupação americanas).

Foucault e a revolução iraniana

Passemos aos EUA dos anos 1990. De repente, todo mundo sofreu abusos sexuais na infância. E começam as investigações, os processos. Todo homem adulto passa a ser visto como pedófilo em potencial.

Há coisa de uns dois anos, acho, surgiu no Brasil a narrativa do bullying, barbarismo que indica os valentões que intimidam as outras crianças. Isso acontece, claro. Assim como as cruzadas aconteceram, e também os abusos sexuais. Mas a narrativa, a transformação do bullying em problema social diagnosticado, reconhecido e oficial (o jornal O Globo de hoje põe na capa que 84,5% dos alunos das escolas foram “afetados” pelo bullying, metade tendo sofrido e metade conhecendo alguém que sofreu) cria a impressão de um vale de lágrimas e de horrores e alimenta os ressentimentos das vítimas. As quais poderiam estar passando relativamente bem e ter praticamente esquecido o que sofreram.

Eis aonde quero chegar: antes de cada ataque, surgiu uma narrativa que colocava certas pessoas como vítimas de uma violência absurda, e que assim legitimava sua vingança. Eu não estou nem dizendo que essa narrativa seja intrinsecamente falsa. Na verdade, aí é que está o impasse trágico. Contar uma verdade, expor uma narrativa de violência, parece produzir mais violência, e acirrar a disposição para o duelo contra o agressor. Mas por que deveríamos deixar de dizer uma verdade?

citei aqui, vale a pena repetir:

I and the public know
What all schoolchildren learn:
Those to whom evil is done
Do evil in return.

W. H. Auden, September 1, 1939

Isso tudo, creio, é o reino do Anticristo. Como já falei, se Cristo é a vítima que diz: “Pai, perdoa-os”, o Anticristo é a vítima que volta para se vingar. Hoje em dia, todos se vêem como vítimas que julgam ter adquirirido o direito de praticar alguma violência: os gays e os cristãos, as vítimas de bullying e os pobres, os muçulmanos e os judeus. A ênfase está em “que julgam ter adquirido o direito de praticar alguma violência”. E claro que isso é uma generalização, que não se aplica a todos os indivíduos. Na verdade, se você sentir uma profunda indignação ao ler isso, creio que estará demonstrando que a generalização se aplica exatamente a você.

Por isso também me parece fútil procurar as causas dessas atitudes no conteúdo específico de alguma ideologia, ou de uma religião. A estrutura básica é a de uma narrativa que corre paralela à da Paixão de Cristo e que parte de uma situação como aquela descrita no versículo 16 do Salmo 22 (lido ontem, na liturgia do Domingo de Ramos): “Pois cães me rodeiam; um ajuntamento de malfeitores me cerca…”

Estamos diante de um impasse trágico porque as violências sofridas pelos grupos não são imaginárias, mas reais, e o fundo judaico-cristão da nossa cultura é um convite a que violências sejam desenterradas ininterruptamente. Se você quiser ver uma diferença entre a sociedade arcaica e a nossa, pode ler a Odisseia. O grande herói Ulisses pilha cidades e mata um bocado de gente sem que a narrativa (e até nós mesmos!) demonstre a menor reprovação. Hoje seria impossível escrever uma história assim sem que no mínimo algum leitor ou crítico a chamasse de “niilista”. Se o personagem de prestígio da Antiguidade era o herói que matava sem remorsos, o personagem de prestígio da nossa cultura é a vítima inocente, ou percebida como inocente. Mas mesmo nós, após 2000 anos de cristianismo, não estamos prontos a oferecer a outra face. Queremos ver a vítima inocente voltando para se vingar, isso é, para “fazer justiça”.

Neste momento devo dizer que, se eu tivesse interesse pelo género dos filmes de terror, escreveria uma história em que bebês abortados ressuscitariam com metralhadoras e tomariam Nova York. Fetos mutilados zumbis assassinos esquartejando os membros da Planned Parenthood. O subtítulo, seguindo o estilo acadêmico, seria: Retaliar e retalhar. Se você riu ou sentiu algo ao ler isso, foi o desejo de vingança que se movimentou e, quem sabe, começou a ser purgado.

Agora, voltando, o pior disso tudo que estou dizendo é que minha hipótese pode ter comprovação empírica. Quando uma nova narrativa de vitimação adquirir prestígio — por ser, por exemplo, sancionada pela comunidade de psicanalistas — , surgirá um novo grupo de pessoas dispostas à violência vingativa, a qual terá, obviamente, o nome de “justiça”. A extensão do estrago dependerá dos meios disponíveis, e vocês podem tirar daí as piores consequências que conseguirem imaginar. Eu mesmo já estou rezando para não estar por perto quando a primeira dessas vítimas vingativas adquirir uma bomba atômica que caiba numa valise.

*Este texto não foi escrito com a intenção de servir de comercial para o curso de James Alison (chamado justamente “A vítima que perdoa” — nada melhor para a Semana da Paixão), mas, se eu estivesse em SP, tentaria fazê-lo.

Mensagem de Natal

Lembro de quando o Papa João Paulo II começou seus pedidos de desculpas. Achei absurdo. Pensava que a Igreja tinha de manter-se altiva, e botar na mesa suas realizações. Hoje acho o contrário. Alegro-me com o pedido de desculpas e acho que valorizar a religião por “contribuições civilizacionais” é não entender nada, porque “de que adianta a um homem ganhar o mundo se ele perder sua alma?” (Mateus XVI, 26). O mundo precisa de reconciliação, mas não é possível recomendar a reconciliação sem no mínimo dar o exemplo.

Essa reconciliação não pode vir, também, se não houver uma aceitação do próprio mal. Boa parte do catolicismo de internet, em que obviamente me incluo, pode ser resumido a um embate de identidades públicas sob a aparência de um debate. Ou, para lembrar Bruno Tolentino, sob a parecência de um debate. Neste ponto, os grupos opostos e rivais se tornam idênticos: quanto mais agarram-se às suas supostas diferenças, mais parecidos ficam. Foi este o sentido da minha piada de ontem: entre um panfleto católico “ultraconservador” que fale contra o mundo moderno e textos que defendam o feminismo contra o machismo, o ressentimento é igual e só as palavras são diferentes. Com isso, é óbvio que não digo que o conteúdo de um ou de outros sejam invalidados; só digo que cada um dos grupos simplesmente postula a bondade intrínseca da sua própria identidade, identidade essa cada vez mais sutil, e tira daí as consequências.

Hoje em dia tendo a considerar os discursos dos movimentos de minorias como uma ultrassensibilidade à ideia de violência, ultrassensibilidade que decorre da própria ideia cristã. Afinal, o que eles fazem é denunciar formas de violência que nós outros nem sabíamos que existiam, que nem cogitávamos. Seguindo o princípio de que quem decide se houve agressão ou não é o agredido, como dizer que eles estão errados? No entanto, não posso deixar de observar que esse é um dos discursos mais antigos do mundo. Ninguém bota a mão no peito e diz: “eu sou o agressor”. Todos estão sempre reagindo a uma agressão prévia, inserindo-se num ciclo de violência que só não é infinito porque a raça humana é finita.

What huge imago made
A psychopatic god:
I and the public know
What all schoolchildren learn,
Those to whom evil is done
Do evil in return.

W. H. Auden, “September 1, 1939”.

Mesmo que você hoje esteja apenas tomando aquilo que lhe é devido, as consequências disso podem ser nefastas. Talvez até eu mesmo já pareça nefasto por estar dizendo isso, por estar supostamente incitando a um conformismo e a uma perpetuação de uma situação de violência. Mas veja que não estou me dirigindo a movimentos de minorias em particular, mas também aos católicos e demais religiosos, que partilham de idêntico ressentimento. Se não rompermos o ciclo da violência, bom, não romperemos o ciclo da violência. O que é justo para você é uma violência arbitrária aos olhos dos demais.

A melhor coisa do Natal é que nada disso precisa ser assim. “Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas pecadores” (Mateus, IX, 13). Esse sacrifício era o sacrifício ritual, o mesmo que, antropologicamente falando, continuamos a realizar quando nos juntamos com nossos amigos para falar mal daqueles que nos causam repulsa, “sacrificando” essas pessoas para que nos sintamos bem. Se o Natal marca uma nova era, então que seja a era em que, nós, pecadores, abdicamos disso e entregamos nosso ressentimento e nossa falsa concepção de pureza própria àquele que disse: “Meu jugo é suave, e meu fardo é leve” (Mateus XI, 30), e que é o Grande Desmistificador do “deus psicopata” que simplemente gerencia a violência. Nós podemos nos livrar de tudo isso. Se o lobo pode dormir com o cordeiro, o católico também pode abraçar a feminista.

Feliz Natal a todos.

Católicos se defendem da mácula da Inquisição, ou: Mimimi Cósmico

Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. (Mateus VII, 1-2)

Coletei alguns exemplos de textos de católicos tentando deixar claro que a Inquisição foi um abuso que não deve ser considerado na avaliação do catolicismo, e que o verdadeiro católico é um anjo de pureza e de bondade, um agente incorruptível do Bem contra o Mal, e que toda reação contra ele é uma reação do próprio Satanás, cujas exalações de enxofre são sentidas à mais remota distância. Sob a aparência de um debate, esses católicos nada mais fazem do que tentar preservar a pureza de sua própria diferença em relação a este mundo podre e decaído. É Natal! É hora da verdadeira conversão!

…repetindo o erro clássico de querer classificar as mulheres de acordo com seus preconceitos.

Cynthia Semíramis

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…quando homens emitem “opiniões” sobre o feminismo, elas não costumam vir embasadas em bibliografia ou sequer em escuta da experiência das mulheres narrada por elas próprias. Arma-se alguma capenga simetria entre machismo e feminismo, decreta-se que “as” feministas são isso ou aquilo e encerra-se o assunto sob viseiras, em geral acompanhado de algum choramingo contra “elas”, que são “radicais” ou “patrulheiras” (confesso que “barraqueira” eu ouvi pela primeira vez esta semana), sem que nenhum esforço tenha sido despendido na escuta do outro, neste caso na escuta da outra.

Idelber Avelar

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A mim parece que, se se confirma que a Anna Ardin de fato montou esta presepada por má fé, a despeito de sua auto-declaração, não pode ser jamais considerada feminista, pois agir em egoistamente em interesse próprio não é ser feminista.

Barbara O.

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Passei a usar isso como termômetro: só considero progressista, revolucionário, libertário de fato quem não tem atitudes machistas ou, mais ainda, tem atitudes anti-machismo.

Mari Moscou

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Feminismo é a busca por direitos iguais para as mulheres.

Machismo é a dominação do homem sobre a mulher.

Os dois termos não são, nunca serão, não podem ser análogos. É uma falsa simetria. É como reclamar de não haver um Dia da Consciência Branca.

Portanto, falar que “as feministas são tão ruins quanto os machistas” só expõe, mais uma vez, o seu próprio machismo.

A feminista mais radical não tem como ser pior do que o machista mais brando. Por definição, é impossível.

(…)

Feminista radical não existe. Ao reclamar da patrulha das feministas radicais, por mais delicadamente que seja, você está apenas expondo seu machismo. E todo mundo está vendo.

(…)

Se você encontrar um grupo de comunistas que defende o sexo com cavalos, isso não quer dizer que o comunismo seja uma ideologia que defenda o sexo com cavalos. Isso quer dizer apenas que AQUELES comunistas defendem o sexo com cavalos – válida ou não, essa postura não tem nada a ver com o comunismo per se.

Alex Castro

Sófocles explica o caso WikiLeaks

A coisa mais interessante do caso WikiLeaks é a dificuldade de classificá-lo. Seria Julian Assange um militante de direita ou de esquerda? Creio que é possível apresentar argumentos razoáveis para as duas opções. E, como eu mesmo não consigo ver direita e esquerda como substâncias, mas como qualidades meramente circunstanciais, e sempre definidas em função de algum outro, acho perda de tempo discutir isso.

Essa dificuldade de classificá-lo provoca um incômodo semelhante ao provocado pela hybris do teatro grego. Como assim, o rei de Tebas diz que ele é que vai acabar com a peste? Quem ele pensa que é, o Lula? O rei de Argos mata a própria filha e pára de pensar no assunto. Ele acha que vai ficar tudo bem. Então agora estamos liberando o filicídio? Aí vem a tragédia, para dizer que essas coisas não ficam barato. E aqui temos uma pista para começar a entender Julian Assange.

Assange teve hybris duas vezes. Primeiro, achou que podia botar 250 mil telegramas internos da diplomacia americana na boca do povo e que isso ia ficar barato. Depois, como um Berlusconi amador, achou que seu charme neutralizaria o ciúme das groupies. Após a ilusão de onipotência, a hora da verdade vem na forma de payback time. Sem contar que ele acaba de se colocar na formidável posição de bode expiatório de todos os governos. Tudo que der errado em política externa terá sido culpa do Julian Assange. Mesmo que não tenha sido.

Existe hybris também na liberação de 250.000 documentos diplomáticos. Até onde eu sei, Daniel Ellsberg, o famoso “homem mais perigoso dos EUA”, pelo menos liberou documentos porque sabia de atrocidades. Mas Assange e seus asseclas teriam mesmo lido 250.000 documentos? “Liberdade de expressão, êêêêêê!” Realmente não se trata disso. O governo, na sua essência, não presta um serviço no mesmo sentido em que um encanador presta um serviço. O governo estabelece as regras e mantém a segurança. Dizer que a liberação de documentos compromete a segurança é verdadeiro. No entanto, quando o governo americano te obriga a entrar numa máquina de raio-x que te põe pelado na frente de um gordo babado de donuts, você fica ressentido e acha que o sistema precisa tomar um WikiLeaks mesmo. Você tira minha roupa, eu leio a sua correspondência. Bem vindo ao círculo vicioso da tragédia, que já nos deu obras imortais como a trilogia da Orestéia e as peças do ciclo tebano. Haverá resposta a tudo isso, tenha certeza. E não vai ser boa. Para você.

Assim, a liberação dos documentos diplomáticos parece um ato motivado pelo ressentimento contra o sistema. O mesmo ressentimento que vem animando revolucionários desde pelo menos o século XIX e que algumas décadas depois não termina bem. Mas suspeito que não precisaremos mais de décadas. Tudo está acelerado. Vivemos na época da violência aleatória. Não necessariamente haverá uma guerra de uma nação contra outra, mas já estamos vivendo a guerrilha de todos contra todos. Assange, financiado por quem mesmo?, publica documentos. É preso por suas groupies. Mike Huckabee pede sua cabeça. Visa, Mastercard e PayPal, temerosos em relação ao governo dos EUA, congelam seu dinheiro. Hackers anônimos atacam Visa, Mastercard e PayPal. Não existe unanimidade a favor de ninguém, nem contra ninguém. Você vai deixar de usar seu cartão de crédito e débito? Nem eu. E você também sabe que liberar documentos internos dessacraliza, ou tira a credibilidade, do Estado. Agora existem duas opções. Ou você releva porque o Estado é feito de gente como você, ou você fica aí na sua vidinha infantil, achando que o Estado tem de ser feito de gente incorruptível. Eles estão tomando seu dinheiro com impostos, é verdade. Mas foi por isso que você achou que eles teriam de ser lindos, maravilhosos e incorruptíveis? E digo mais: se você acabar com o Estado nacional, não vai vir algo melhor.

Na época da violência aleatória, em que “todo ato é político”, isso é, todo ato é considerado uma espécie de violência por alguém em algum lugar, talvez alguém não goste deste texto, e ache que estou do lado dos hômi, e libere os conteúdos da minha conta de e-mail. Por isso vou até aproveitar para fazer um adendo. Acho que já disse isso. Há alguns anos criei uma lista para discutir liberdade e privacidade na internet. Fechei a lista. Não existe privacidade nem liberdade na internet. Aliás, com câmeras digitais e redes sociais, a própria ideia de privacidade já está amplamente questionada. Tudo que é digital é potencialmente público; basta que alguém com as devidas capacidades queira publicar. Estamos ainda vivendo o período que Marshall McLuhan chamou de incunabula, em que ainda não cristalizamos usos e regras para as mídias digitais, assim como já os cristalizamos para o livro, por exemplo. É o período do salve-se quem puder. Junte a incerteza (ou hybris, produzindo híbridos) tecnológica com os ataques à credibilidade do Estado, mais a própria hybris de governantes e de ativistas, e, como já disse, salve-se quem puder, com a ressalva de que a violência aleatória não respeita a regra de “mulheres e crianças primeiro”. Aviso logo que na minha conta bancária não tem quase nada.

Não existe debate público sobre aborto

Se eu fosse professor, e quisesse ensinar meus alunos a enxergar polaridades, sugeriria que olhassem para a questão do aborto. Não existe a menor possibilidade de os defensores da legalização do aborto se entenderem com os defensores da manutenção de sua ilegalidade. E, para deixar claro de uma vez, e isso porque acho full disclosure um negócio bacana, recordo que eu mesmo faço parte do segundo grupo. Acho que o aborto deve ser ilegal e, veja que escândalo, acho que as mulheres que praticam aborto devem ser penalizadas judicialmente, porque crime sem punição é palhaçada. Acho também que dizer que eu só digo isso porque sou homem é tão legítimo & arguto quanto eu dizer que você não pode estudar matemática porque é mulher. Mas não é isso que me interessa aqui; não quero convencer ninguém, ao menos não nesse momento, da validade da minha posição.

E, por favor, durante este texto, a palavra “aborto” significará “legalização do aborto”. Tenho certeza de que você é grandinho e já aprendeu na escola uma figura de linguagem chamada metonímia. Pelo menos antes de o ministro Paulo Renato inventar seus temas transversais e de Fernando Haddad fazer sabe-se lá o quê, era isso que a gente aprendia.

Considere como os defensores do aborto se rotulam nos EUA: pró-escolha. Os que são contrários, pró-vida. Não são rótulos que se referem ao mesmo objeto. São duas formulações totalmente distintas do problema. Não existe entre elas um debate. Existe só competição retórica. (Claro que você pode achar que o “mercado de ideias” é a solução para tudo, e se você achar isso eu recomendo que recorde que o livro mais vendido de todos os tempos é a Bíblia, que a maior parte das pessoas no Brasil e provavelmente no mundo é contra o aborto etc.) Competição retórica não é debate. O fato de um assunto morrer não significa que um punhado de teses foram refutadas. O fato de alguma crença pegar mal não significa que ela é falsa. Tem gente que acha corajoso e bonito ver que outra pessoa ainda se diz comunista. Ou monarquista. Prestígio social depende do meio social. E prestígio social não é validade intrínseca, nem veracidade. Escolhemos a maioria dos nossos argumentos como quem escolhe roupas. Na melhor das hipóteses, só conseguimos examinar bem mesmo um punhadinho das nossas ideias. Esse ar de “pensamentos idos e vividos” que tentamos dar ao nosso discurso é pura pose.

Um defensor do aborto vai falar em saúde pública, em mulheres que morrem ou que sofrem consequências negativas por terem feito abortos em más condições. Nada disso é falso. Alguém contrário ao aborto vai dizer que desde a concepção existe uma vida humana, o que também não me parece falso, se você considerar que um óvulo fecundado, deixado no útero de uma mulher saudável, virá a ser um bebê.

O lado pró-escolha vai dizer que o lado “pró-vida” negligencia a vida das mulheres adultas. Esse lado pró-vida vai dizer que o lado pró-escolha negligencia a vida dos bebês. Basicamente, um lado está chamando o outro de assassino, seja de bebês ou de mulheres adultas.

Nesse momento, se você defende o aborto e chegou até aqui, talvez tenha ficado indignado porque acha que eu estou chamando uma mera massa celular de “bebê”. Na pior das hipóteses, anunciei qual era meu lado logo no primeiro parágrafo. Na melhor, você poderia ter reparado que estou tentando preservar o vocabulário de cada um dos lados da disputa.

Os dois lados, enfim, veem um ao outro como um bando de assassinos. E existe debate com assassinos? Não, né? Por isso que sempre se vai pedir para “mudar o foco” da questão do aborto. Mas essa mudança de foco é uma petição de princípio. Se a prática do aborto ilegal é ou causa um problema de saúde pública, bem, temos de resolver os problemas de saúde pública, não é mesmo? Quem é que pode dormir à noite com um problema de saúde pública? E o que fazer com essa gente que se nega a resolver um problema de saúde pública? Chicoteá-los? Por outro lado, se aborto é assassinato de bebês, bom, eu não quero que bebês sejam assassinados. Temos de pegar esses assassinos de bebês e botá-los todos na cadeia. É claro. Diga não ao assassinato de bebês parece um slogan óbvio até demais.

É por isso que não existe debate público sobre o aborto. Até as garrafas vazias de vinho na lixeira lá fora já sabem que, quando alguém vem dizer que a sociedade tem de debater o aborto / as drogas / as micaretas (peraí, elas já são legalizadas, tinha esquecido), isso significa: você tem de pensar exatamente como eu penso. De repente é preciso lembrar às pessoas que um debate começa com premissas comuns e supostamente termina com conclusões comuns, não que um debate começa com conclusões repetidas ad nauseam até convencer o outro lado. Até porque nunca vi uma pessoa chamada de assassina subitamente se convencer da posição de seu interlocutor.

Meditação sobre a breguice

Com este texto estreei em Ocidentalismo.org.

Há alguns anos, formulei uma definição pessoal de breguice: é o sinal de que se dá mais atenção ao prestígio das coisas, isso é, ao valor que outras pessoas dão às coisas, do que às coisas mesmas. Ou, em termos mais vulgares, e um pouco mais restritivos, achamos que brega é “o fulano que só gosta disso porque está na moda”. Podemos tirar o aspecto restritivo se entendermos “moda” como as preferências dos amigos.

Assim como ninguém admite que é invejoso, ninguém admite que é brega — exceto, é claro, de mentirinha, como se a charmosa breguice do grande sofisticado que se permite uns prazeres vulgares fosse comparável à tal da “inveja boa” (que a língua portuguesa em priscas eras já chamava de “admiração”). Um sujeito que faz pose de sofisticado como eu pode confessar que ouve Alizée na academia; uns dirão até que isso me “humaniza”, como se fraqueza de gosto fosse definição de humanidade.

O parágrafo anterior pode parecer uma digressão, mas não é. Qualquer um dirá que gostar de Alizée não é brega se você gostar espontaneamente dela, se você tiver um “desejo autêntico”, espontâneo, original. (Espero que ao menos entendam, enfim, que eu não gostaria de Alizée se ela fosse parecida com a Wilza Carla.)

Porém, o desejo espontâneo e autêntico tem tanto prestígio que é a coisa mais fingida desse mundo. Há uma competição universal pela demonstração de autenticidade, que em 1982 levava a mais fake e teatral das criaturas a perguntar a seu interlocutor se estava apenas kissing to be clever. Hoje é o contrário: o clima de hiper-ironia, de meta-meta-meta-meta-meta-ironia é também um clima de not kissing to not look stupid, de preservar a aparência de espontaneidade zen demonstrando não ficar impressionado com nada. Se você conseguir demonstrar que aquilo que está fazendo emana do próprio umbigo, não será brega; se baixar a guarda e entregar-se, já entrou em território perigoso. E não custa observar que prestigiar imensamente o desejo espontâneo e querer aparentar autoconsciência reflexiva não é uma receita para a felicidade.

Uma solução está na Inglaterra mítica da minha fantasia (pois nunca fui à Inglaterra), em que as pessoas demonstram um sentido profundo de adequação às coisas. Lembro de um programa de TV em que a professora inglesa de boas maneiras ensinava à aluna que a maneira certa de comer aspargo era com as mãos, porque o aspargo escorregava dos talheres. Você poderia, como ela, pensar que as gentes chiques do mundo não comem com as mãos, e que a famosa elegância é medida pela capacidade de comer as coisas mais escorregadias com talheres. Nisso se vê o que eu disse no começo: a breguice está em dar tanto prestígio à pose, à aparência, a uma concepção de elegância, que se deixa de prestar atenção às coisas mesmas, como um simples aspargo.

Levando a comparação a outro plano, chegamos ao lema de Edmund Husserl: “rumo às coisas mesmas!” O que seriam as coisas mesmas? Como vou saber que cheguei às “coisas mesmas”? Parece que seriam as coisas para além ou aquém de sua existência, com o perdão da palavra, intersubjetiva. Existe também aí o risco de definir inconscientemente as coisas como aquilo que só você perceberá a respeito delas. É inevitável querermos que as percepções que julgamos exclusivas nossas sirvam para definir nossa identidade — mesmo que isso não passe de uma versão mais abstrata e mais sofisticada de querer ser definido pelas suas roupas. E quando falo em definir identidades, falo em dar prestígio a objetos. Você define que o aspecto de maior prestígio das coisas é aquele aspecto que só você conhece e depois reclama para si, diante das outras pessoas, o prestígio de ter conhecido as coisas mesmas. Se só você conhece, há de ser autêntico; se é autêntico, não é brega.

O leitor pode esperar que eu vá em algum momento lançar uma condenação a alguma dessas atitudes, porque, mesmo que tenha concordado (provisoriamente que seja) com minha definição, afetar autenticidade e vestir opiniões como camisas parecem coisas bregas demais. Mas brega mesmo seria não admitir a natureza obrigatoriamente — olha a palavra de novo — intersubjetiva da breguice. Não existe uma breguice em si, substantiva e subsistente, uma qualidade da qual o ente participe. Você pode passar por sofisticado em qualquer meio de pessoas que não percebam suas estratégias. Por isso é que, em última análise, a única pergunta é quem está olhando.

Paraguai eterno

Eu tinha começado a escrever esse post semana passada, durante o jogo da seleção brasileira, para dizer que não podia nem ir ao cinema, e que isso não acontecia em feriado nenhum, exceto nas noites de Natal e de Ano Novo. Mas não me interessa dizer que isso é um absurdo e uma inversão etc. porque talvez não seja: aquilo que motiva as pessoas a ver um jogo de futebol é bem diferente daquilo que as motiva a festejar o Natal e o Ano-Novo.

Não me lembro se já disse isso aqui, a busca sugeriu que não, mas desenvolvi a hipótese de que a mobilização extrema provocada pelo escrete nacional se deve às saudades da Guerra do Paraguai. Diz a lenda, ou dizem os historiadores, que nada nunca mobilizou tanto o Brasil quanto a Guerra do Paraguai. Girardianamente, vou dizer que foi a nossa oportunidade de praticar uma violência unânime contra alguém e de assim afirmar nossa identidade. “Aqui não é o Paraguai.” Só que, se havia ideais na guerra, não ficaram; não ficou nada que pudesse valer como fundamento de uma identidade. O americano sabe que é americano por causa da Guerra de Independência e da Guerra de Secessão, mas a Guerra do Paraguai não nos legou uma identidade. Para piorar, ainda lemos nos livros de História da escola que Solano López era uma espécie de Elizabeth I que foi massacrada pelos hunos lacaios dos ingleses.

Estou quase fazendo uma digressão. O que quero dizer é que temos saudades dessa violência fundadora que nunca aconteceu. A Copa oferece uma versão suave dela, controlada — e eu mesmo, por favor, jamais sonharia em propor um banho de sangue terapêutico. Mas o fato permanece: enquanto o desfile de Sete de Setembro for ridicularizado e a memória das vitórias políticas e militares brasileiras inexistir, os dias de jogos da seleção nas Copas do Mundo continuarão a ser feriados forçados.