Sobre o financiamento da cultura pelo Estado

Esta reunião de exemplos e de perguntas, publicada originalmente em O Estado da Arte, mal chega a roçar a questão, mas, diante das acusações disparatadas que fazem as vezes de “debate público”, não parece fazer mal. A questão maior, histórica, é que, de maneira muito ampla, uma parte significativa da produção artística passou do mecenato de nobres (portanto, de representantes do Estado), que patrocinavam segundo seu gosto pessoal, seu desejo de competir com outros nobres, etc., para o mecenato estatal das democracias de massas. Dentro dessa questão, há a questão dos critérios: os Estados, para não dar a entender que favorecem alguém em particular, fazem questão de tornar os critérios para a obtenção de mecenato o mais “técnicos” possível, o que, é claro, levanta seus próprios questionamentos. (Para bagunçar a questão, aproveito para acrescentar: este liberal de direita aqui já recebeu uma bolsa do governo francês para traduzir um romance, O amor de olhos fechados, que é um libelo contra a “balbúrdia universitária”, nas palavras do ministro Weintraub; e este liberal de direita também fez doutorado como bolsista da CAPES.) Porém, vale observar, já passando ao tom informal da croniqueta abaixo: nunca vi um brasileiro protestar contra a espoliação do pagador de impostos inglês que são as séries da BBC e os documentários de David Attenborough, nem escandalizar-se com a possibilidade de ver Molière representado pela Comédie Française em Paris.

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Uma das grandes oportunidades trazidas por uma nova direita que questiona tudo está exatamente nisto: questionar tudo. Porém, estou falando de questionar de verdade, levantar prós e contras, retardar conclusões, e não apenas de questionar no sentido de recusar.

E um dos temas perenes da nova direita é o financiamento da cultura pelo Estado. É muito fácil tomar posições absolutamente teóricas, sendo contra ou a favor. Eu mesmo conheço a minha posição: como liberal, penso que, quanto menos o Estado financiar a cultura, melhor.

Mas isso, é claro, é uma tomada de posição, não um questionamento. O questionamento começa com perguntas: muito bem, o Estado não deve financiar a cultura; vamos então fechar a Biblioteca Nacional? Vamos fechar o Museu Nacional de Belas Artes? O que aconteceria? Sinto-me um pouco como na questão das drogas. Em teoria, sou a favor de sua descriminalização, mas, na prática, o que acontece? Os traficantes viram empresários? As gangues simplesmente tiram um CNPJ?

Voltando às artes, a questão se torna um pouco mais complicada quando adotamos uma perspectiva histórica. O teatro clássico grego era uma parceria público-privada; os ricos orgulhavam-se de patrocinar os coros das peças, bancando por exemplo os figurinos, e torciam para que “suas” peças tirassem boas colocações nos festivais. (O leitor que se aventurar por algum texto de Ésquilo, de Sófocles, ou de Eurípides certamente encontrará um prefácio que dirá algo como “esta peça ficou em segundo lugar…”)

Shakespeare, sempre apresentado como autor dinheirista que vivia de olho na bilheteria, também viveu de patrocínios de nobres, e de montar apresentações exclusivas de suas peças para nobres. Isso não fez com que Shakespeare se tornasse o Steven Spielberg dos palcos elisabetanos; até onde se sabe, ele manteve um apartamento em Londres e uma propriedade em sua Stratford natal, e só não aproveitou a aposentadoria por ter morrido cedo.

Montar uma peça de teatro custa muito dinheiro. Assim como custa fazer um filme, montar um balé, uma ópera. O leitor pode pensar que o cinema americano, tão capitalista quanto a Coca-Cola, é o grande contra-exemplo que mostrará o triunfo da visão liberal: mas o cinema americano, assim como as montadoras de automóveis, também depende muito de… incentivos fiscais. Não existe uma lei Rouanet americana; mas a lei Rouanet é nada menos do que um incentivo fiscal.

A única arte que, até hoje, sempre manteve alguma independência do patrocínio estatal foi a literatura. Mas também, para escrever bastam papel e caneta; e mesmo um MacBook de mais de 10 mil reais não contribuirá mais para a qualidade do texto do que um laptop Positivo. Ainda, voltando no tempo, podemos lembrar que Dostoiévski, um pobretão viciado em jogo, não tinha a fortuna do latifundiário Turguêniev; e, no entanto ambos estão lado a lado no cânone dos autores russos.

Não digo isso tudo para oferecer uma defesa definitiva do patrocínio estatal das artes, seja direto, por meio de financiamentos, ou indireto, por meio de incentivos fiscais, mas para dizer que a firme tomada de posição contra esse financiamento teria varrido do mapa uma parte mais do que significativa de todo o cânone ocidental, e também da chamada “indústria cultural”.

O que não significa que não devamos discutir os problemas reais desses financiamentos. Por exemplo, graças a eles, uma obra pode ser feita sem risco comercial; ela pode fracassar, mas a produção foi garantida.

Mais ainda, no caso da lei Rouanet, temos o problema de ela reduzir o público das produções aos diretores de marketing de empresas. Porque público, afinal, é quem paga; e o diretor de marketing usa o dinheiro da empresa, e não o seu próprio, para financiar produções aprovadas na lei Rouanet. Assim, o “público” que de fato assiste às produções torna-se quase um detalhe, e, artisticamente, temos um problema: como saber que há comunicação entre o artista e o público se o público não se sente motivado a pagar pela arte?

Agora, aquilo que parece mais doer em muita gente é que, se o Estado financia produções culturais, fica fácil dizer que a orientação dos ocupantes do Estado se refletirá nas obras patrocinadas. Quando gostarmos delas, diremos que elas são legítimas; quando não gostarmos, diremos que são ilegítimas.

E nesse ponto, infelizmente, a direita – porque eu sou “de direita”, enfim – sai perdendo. As aprovações de projetos culturais sempre foram técnicas, mesmo nos governos do PT. A direita simplesmente não apresentou projetos.

Dizer que era tudo “ideológico” pode soar perfeitamente verossímil, mas eu realmente gostaria de conhecer o produtor cultural que pudesse mostrar que seu projeto foi recusado por motivos ideológicos. Se esse produtor preferiu nem arriscar apresentar um projeto, é outra coisa. Aí podemos discutir se não havia clima ideológico, ou se estávamos vivendo a fábula da raposa que desdenha das uvas que não consegue alcançar, mas ainda assim resta o fato: quem apresentou projetos, teve projetos aprovados.

Se agora a direita começa a apresentar projetos e a ocupar espaços, tanto melhor, sobretudo para os esquerdistas que julgam que sua visão de mundo é uma espécie de neutralidade, ou a água em que nadam todos os peixes. Mas o melhor de tudo, como eu dizia, é aproveitar a oportunidade para um questionamento sério do que significa o financiamento estatal da cultura, que não se resuma a um contraste entre um ideal e a realidade, e que, acima de tudo, não ignore essa realidade.

O fanatismo é a impotência para crer

George Bernanos, La France contre les robots, cap. 2 (grifos meus). No link acima, você pode comprar a tradução brasileira, feita por Lara Christina de Malimpensa, deste livro fundamental.

Em Mallorca, durante a Semana Santa de 1936, enquanto as gangues encarregadas do expurgo percorriam as aldeias para liquidar os mal-pensantes, à média de dez vítimas por dia, vi a população aterrorizada apertar-se contra as santas mesas, a fim de obter o precioso certificado de comunhão pascal. Entendo perfeitamente que um incréu coloque essas horrendas empreitadas sacrílegas na conta de um catolicismo exaltado. Ainda jovem, eu mesmo, na inocência de minha idade, teria tomado seus autores por fanáticos que o zelo levava além do bom senso. A experiência da vida desde então me convenceu de que o fanatismo, neles, é apenas a marca de sua impotência para crer em qualquer coisa, para crer em qualquer coisa com um coração simples e sincero, com um coração viril. Em vez de pedir a Deus a fé que lhes falta, preferem vingar-se contra os incréus pelas angústias cuja humilde aceitação os teria salvo, e, quando sonham em reacender as fogueiras, é com a esperança de poder reaquecer ao pé delas sua mornidão — aquela mornidão que o Senhor vomita. Não! A opinião clerical que justificou e glorificou a sangrenta farsa do franquismo nada tinha de exaltada. Era covarde e servil. Empenhados numa aventura abominável, aqueles bispos, aqueles padres, aqueles milhões de imbecis, só teriam podido sair dela prestando homenagem à liberdade; porém, a verdade lhes colocava mais medo do que o crime.

O coração & o coração das trevas

Leio no Público “É proibido compreender!”, artigo em que M. José Bonifácio (que torna proparoxítono o petismo com a grafia “Pêtismo”) toca em questões cruciais. Bonifácio cita (corrigindo o português) a entrevista em que António Araújo fala de “pessoas que, a pretexto de compreenderem, acabaram por apoiar”.

O leitor de Adam Smith se lembra de sua teoria da simpatia. A simpatia de Smith é basicamente aquilo que hoje se chama de “empatia”, neologismo do século XX. Apesar das raízes gregas, os dicionários Bailly e Liddell-Scott não registram o verbete empatheía. A simpatia consiste basicamente em colocar-se no lugar do outro, seja para tentar entendê-lo, seja para compadecer-se, seja para poder emocionar-se ao ler um romance ou ao ver um filme.

Daí surge a pergunta: é possível entender alguma motivação propriamente humana sem simpatia? Lembremos do agente fictício Will Graham, do FBI, que desvenda crimes por conseguir colocar-se no lugar dos criminosos. Pode a esquerda entender a direita sem colocar-se no lugar dela? Pode a direita etc.?

A simpatia, porém, parece suspeita. Tentar entender os famosos “eleitores de Bolsonaro” (entra música sinistra) exige alguma simpatia por eles. Por isso uma pessoa que não tenta compreender pode ter a impressão de que outra, “a pretexto de compreender, acaba por apoiar”. Logo começo a escutar os termos da novilíngua: vão dizer que assim se está “normalizando” a maioria dos eleitores.

Entre as várias novidades da nossa época, que me parece a época do delírio das certezas, está essa recusa da simpatia. Esperamos que um antropólogo viva com os selvagens que estuda; respeitamos seu trabalho e ouvimos suas críticas a nossas noções de civilização exatamente porque ele viveu com os selvagens. Mas, quando se trata de “eleitores de Bolsonaro”, tentar compreender já é apoiar; tentar compreender é já ser visto como Kurtz em pleno Coração das trevas.

As palavras e as coisas

No entanto, esses termos fazem perfeito sentido para quem os utiliza. Neoliberalismo são as políticas econômicas derivadas do consenso de Washington: por exemplo, certa austeridade fiscal, privatizações. Só é verdade que ninguém no movimento liberal se autodenomina “neoliberal”. Nem os defensores do consenso de Washington se autodenominam neoliberais. O termo é sempre usado com reprovação, e diz no mínimo tanto sobre quem o utiliza quanto sobre a coisa supostamente referida.

Marxismo cultural seria, para quem usa o termo, a estratégia de dominação cultural derivada principalmente dos autores da escola de Frankfurt e de Antonio Gramsci. A estratégia consistiria em primeiro criar uma cultura dócil aos ideais comunistas, para que a chegada da revolução fosse suave. Estou longe de ser conhecedor dos autores da escola, mas é divertido pensar que muitas páginas de Walter Benjamin ou mesmo de Erich Fromm facilmente seriam lidas com lágrimas de aprovação por vários conservadores atuais; ou que certas análises de Gramsci do Estado burguês italiano poderiam ser lidas pelos liberais brasileiros talvez quase sem ressalvas.

Por fim, ideologia de gênero seria uma espécie de resultado do marxismo cultural, ou algo surgido no rescaldo deste. Quem usa o termo suspeita enxerga nele o pressuposto de que os gêneros são puras construções sociais, sem relação com o sexo biológico; também enxerga burocratas que desejam introduzir esses questionamentos no mundo infantil.

(Essa, aliás, é a mesma questão por trás do “nazismo de esquerda”: basta que você defina como “esquerda” toda intervenção estatal e pronto. É por isso que certos liberais também chamam os conservadores e até os monarquistas de “socialistas” – porque estão enfatizando a primazia do governo sobre a sociedade civil.)

O problema real desses termos é que eles servem apenas para pessoas que já concordam com os pressupostos embutidos neles. Não vou negar o direito de um grupo ao seu dialeto, mas também não vou abandonar a empreitada que me parece mais interessante: tentar entender os pressupostos de cada um, tentar falar e escrever de um jeito que faça sentido para o maior número de pessoas.

Recordações da Gávea dos que não estão mortos

Vinte e um anos atrás, quando ainda não existia o Dia de Zumbi, ou existia e não era feriado, os fundadores deste site, ainda um jornal de papel, sofreram uma tentativa de linchamento por parte de seus colegas da PUC-Rio. O leitor que acaba de chegar pode vasculhar os arquivos ou procurar *O Imbecil Coletivo II*, de Olavo de Carvalho.

Todo ano costumo escrever algo pensando no episódio, mas a verdade é que este ano… Já tenho escrito bastante coisa. Inclusive a respeito do episódio. Espero conseguir terminar tudo em breve.

Mas tenho sentido certa vontade de voltar a escrever no blog.

«Liberdade, para quê?»

Georges Bernanos, La France contre les robots. A tradução do trecho abaixo, que encerra o cap. IV, é minha. Você pode comprar este livro em português, traduzido por Lara Christina de Malimpensa, na edição da É Realizações: A França contra os Robôs.

… a frase atroz, a frase sanguinária de Lênin: “Liberdade? Liberdade para quê?…” Para quê? Isto é, para que ela serve? Para que serve ser livre? E, de fato, não serve para grande coisa, nem a liberdade nem a honra poderiam justificar os imensos sacrifícios feitos em seu nome, e daí?! É fácil convencer os ingênuos de que somos apegados à liberdade por aquele tipo de orgulho expresso pelo non serviam do Anjo, e pobres padres vão repetindo essa tolice que agrada a sua estupidez. Ora, precisamente, um filho de nossas velhas raças laboriosas e fiéis sabe que a dignidade do homem é servir. “Não existem privilégios, só existem serviços”, essa era uma das máximas fundamentais do nosso Direito antigo. Porém, só um homem livre é capaz de servir, o serviço é por sua própria natureza um ato voluntário, a homenagem que um homem livre faz de sua liberdade a quem ele quiser, a quem ele julga estar acima dele, àquilo que ele ama. Se os padres de que acabo de falar não fossem impostores ou imbecis, saberiam que o non serviam não é uma recusa de servir, mas de amar.

Ensinar e praticar fake news

O jornal O Globo, que carinhosamente chamo há anos de Diário do Balneário, nos explica como uma peça de fake news — manterei o inglês e o anglicismo “uma peça de” propositalmente — é fabricada ao comentar as falsidades espalhadas a respeito da vereadora Marielle. Entre as várias receitas possíveis, o Diário do Balneário dá a entender que, se você colocar uma mera declaração como título de uma matéria, as pessoas pensarão que a declaração é verdadeira:

O Ceticismo Político usou como base uma reportagem da colunista Mônica Bergamo, do jornal “Folha de S. Paulo”, sobre um comentário de uma desembargadora publicado no Facebook a respeito de boatos que circulavam no WhatsApp. O texto publicado pela “Folha” citava o que havia sido escrito pela desembargadora e informava que um grupo de advogados tinha se mobilizado para que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se pronunciasse sobre o caso. O Ceticismo Político, no entanto, subverteu o texto original e deu um novo título: “Desembargadora quebra narrativa do PSOL e diz que Marielle se envolvia com bandidos e é ‘cadáver comum’”.

O Diário do Balneário ainda usa muito bem a palavra “subverter” para descrever o ardil. Eu não leio o “Ceticismo Político”, do qual só tinha ouvido falar, mas não o lia justamente por saber que a nossa direita infelizmente especializou-se nesse tipo de “subversão”.

Mas… Com quem eles aprenderam?

Lendo o mesmo Diário do Balneário, encontro um subtítulo que dá a entender que todos os alunos da PUC-Rio são contra o jornal “O Universitário”.

Você pode, é claro, comparar o título com a matéria, e ver que o texto vai afinando o todos para “uma parte”, e descobrir até que os alunos estão divididos!

Imagine só encontrarmos dois funcionários das organizações Globo que seriam eleitores de Bolsonaro e noticiarmos: “Funcionários da Globo querem Bolsonaro”.

Mas que digo eu? Todo mundo já está cansado de saber disso, e eu mesmo encerro este texto com certo tédio.

Estoicismo diante da guerra cultural

Uma das vantagens da língua inglesa é a facilidade com que qualquer substantivo vira verbo, e o verbo inglês que tem andado na minha cabeça é o (horrendo) to weaponize, “transformar em arma”, weapon.

Tenho pensado nisso porque hoje em dia a nossa direita (à qual pertenço: não sou limpinho nem puro) fala muito em guerra cultural. Que é uma guerra travada aparentemente na esfera da cultura. Com argumentos ou com proposições que parecem argumentos.

Isso me incomoda porque nunca gostei da ideia de que “todo ato, até acordar de manhã, é político”, isto é, todo ato indica uma preferência numa disputa, quer o sujeito que o pratica queira ou não. Não gostar de uma ideia, é claro, não é provar sua falsidade. Porém, meu não gostar baseia-se apenas em esperar que todos possamos participar de um mesmo debate, e disso depende, por exemplo, que algumas regras sejam pacíficas. As regras da gramática, para começar.

Porém, uma das lições que se pode tirar de Rematar Clausewitz, de René Girard e Benoît Chantre, é que, para quem está de fora, toda paz parece suspeita; quem busca a guerra quer instaurar uma nova paz, a verdadeira paz. Uma guerra cultural seria então o esforço de fazer as ideias certas e verdadeiras ocuparem o lugar das ideias erradas e falsas — e, ainda por cima, usurpadoras. Afinal, nenhuma violência é gratuita na cabeça do violento; a violência é sempre uma reação.

(Um dos efeitos mais curiosos disso é que você sempre declara guerra por causa de uma violência efetiva ou presumida; o outro reage, e a declaração de guerra vira uma profecia autorrealizável. Já estamos na milionésima fase dessa profecia.)

Toda guerra também tem suas baixas. Na “guerra cultural”, a primeira baixa é o próprio esforço intelectual de descoberta. Não é o caso de fazer o elogio da liberdade intelectual contra os dogs of war, mas de fazer uma distinção importante.

Não sou eu que farei a distinção. Vou resumi-la, um tanto grosseiramente, a partir do árido artigo “Sobre o sentido e a referência”, de Gottlob Frege, contando o que nela há de intuitivo. A palavra “carro” tem um sentido, tem ideias associadas a ela etc. Mas ela também se refere a carros específicos, individuais. Carro é o que o dicionário diz que é (sentido), mas também é aquilo que está parado na rua, na frente da casa onde agora escrevo este texto, em Buenos Aires.

Quando você tem um questionamento, você estuda o sentido, mas o que você realmente quer captar é a referência. A vida inteira tive momentos assim: “ah, então era disto que Fulano estava falando”.

Pode ser mais fácil explicar isso em termos de experiências práticas, como ler sobre dirigir um carro, ser capaz de explicar o movimento do carro, e efetivamente dirigir o carro. (E a primeira coisa a observar é que é impossível dirigir um carro e ao mesmo tempo tentar captar intelectualmente cada gesto realizado ao dirigi-lo. Ou você dirige, ou você pensa a respeito de dirigir.)

É preciso transpor essa experiência para a vida intelectual. Por exemplo: São Tomás de Aquino fala que a acídia é o desespero (a falta de esperança, que pode ser tranquila) de obter os bens celestes. Você consegue identificar isso em você mesmo? Como algo que motiva seus atos? Consegue captar essa motivação nos outros? Já tentou usar a acídia como instrumento para explicar algo, viu que deu errado, e tentou outro instrumento?

Isto é um esforço intelectual que não envolve apenas o intelecto, mas um senso moral, e até uma certa capacidade estética. “Guerra cultural”, na melhor das hipóteses, é uma comparação de sentidos, em que se presume que a incompatibilidade vale por uma refutação. Fulano disse X, mas o autor de que gosto diz Y, portanto X é falso.

Como a guerra cultural existe, mesmo que seja na forma de uma profecia autorrealizável, é preciso escapar dela, e realizar investigações apesar e a despeito dessa guerra cultural. Uns dirão que você é um idiota útil ou inútil; mas esses são os que não param de weaponize todas as ideias.

Outros ainda entenderão que a sua investigação é uma batalha da guerra, tomando as suas conclusões como armas, mesmo que seu objetivo nunca tenha sido obliterar ninguém. Esses outros também ficam weaponizando tudo, mesmo que façam questão de deixar claro que acordar de manhã não é um ato político.

Porém, a única coisa a fazer é seguir em frente — torcendo para não levar uma bala perdida, isto é, para não ser contagiado pela guerra cultural.

Explicando a direita para a esquerda (e vice-versa)

Outro dia no Twitter apareceu-me uma dessas distinções mordazes de que revelam uma verdade com um clarão: “história cultural” é estudar o que outras pessoas pensavam; “história intelectual” é você mesmo tentar discutir com outros pensadores do passado. Esses dois tipos de história nascem de duas atitudes diferentes, claro. A primeira cataloga e guarda pensadores, sem deixar de lado a possibilidade de eventual consumo. A segunda se deixa questionar pelos pensadores. É a banalíssima distinção entre tratar alguém como objeto e tratar alguém como sujeito.

Essa é a questão que reaparece em todo o debate em torno de Jordan Peterson*, dessa vez de maneira mais clara do que da vez em que apareceu na eleição de Trump.

A New York Magazine vem com um artigo que tenta explicar “Por que eles dão ouvidos a Jordan Peterson”, que ainda aparece na deliciosa tag “O que a direita está lendo”. E pronto: o artigo segue pela mesma linha, admitindo que Peterson é um homem razoável quando diz algo com que o autor concorda, e simplesmente descartando as partes que desagradam ao autor.

Sim, é claro, a direita faz a mesma coisa, e trata seus adversários como objetos a serem explicados. E então a esquerda — atualmente desnorteada — redobra o ataque com novos rótulos, sendo “direita xucra” a etiqueta du jour.

No entanto, como falei, é essencialmente a esquerda quem passa por um momento de perplexidade. (A direita não deve se enganar: ela ascenderá e decairá, e ficará igualmente tonta.) Essa perplexidade nasce dessa atitude que já foi institucionalizada: reduzir o outro lado a um objeto a ser explicado. O catálogo de rótulos da esquerda é infinitamente mais variado e complexo que o da direita, que recentemente apenas conseguiu passar de “comunista” para “neo-marxista”, mas sua própria complexidade só faz aumentar o assombro impotente diante daqueles que, numa abominável demonstração de vontade própria, não seguiram o plano que lhes tinha sido traçado.

Fazer história cultural pode ser uma conveniência, e reduzir pode ser muitas vezes tão inevitável quanto necessário. Porém, nesse momento de crise, a atitude de descartar por meio de rótulos nunca me pareceu uma estratégia tão suicida.

* Se admiro o estoicismo e a capacidade argumentativa de Jordan Peterson, especialmente em pessoa, meu interesse por René Girard me impede de acompanhá-lo em suas considerações junguianas sobre mitos como “mapas de sentido”. Isto mereceria um post à parte, talvez no blog Miméticos, mas por ora limito-me a admitir que tomar mitos arcaicos como chaves para o entendimento da própria vida pode até surtir efeitos positivos, ou trazer uma sensação de bem-estar, mas a interpretação dos mitos utilizada para esse fim é simplesmente falsa.

Vinte anos esta manhã

Vinte anos atrás, em 19 de novembro de 1997, O Indivíduo foi publicado em papel na PUC do Rio de Janeiro, provocando uma tentativa de linchamento imediata por parte dos alunos. Eu, Sergio de Biasi, e Alvaro Velloso fomos salvos pela rápida intervenção da segurança, que não conseguiu conter algumas cusparadas e um soco no lado direito do meu rosto — nunca sequer vi quem foi o autor. Fizemos boletim de ocorrência contra os alunos, que foram investigados; e a justiça brasileira proibiu a PUC de tomar qualquer medida contra nós. O motivo de tudo pode ser consultado pelo menu; deixo ao leitor o trabalho de informar-se.

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Passei a dizer que O Indivíduo foi nossa banda de rock. A vida intelectual brasileira dos anos 1990 era um tédio infinito. Sem a publicação de O Imbecil Coletivo ou dos livros de Bruno Tolentino, teria sido necessário abandonar o país e fazer do português a segunda língua. Ou você entrava no movimento punk da época, ou ficava comendo sanduíches de pepino. Ao menos se você fosse carioca e esquentado.

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A confusão na PUC aconteceu na verdade por causa do texto de Cláudio Lévi’s Lee (eu) sobre o “Coletivo Cultural” (vinte anos depois, ainda é muito difícil não rir do nome “Coletivo Cultural”), mas o motivo alegado foi o texto sobre a Semana de Consciência Negra. Vinte anos depois, colorir uma consciência ainda me parece altamente sospechoso, mas admito que o movimento liberal do qual vim a fazer parte deveria ter tratado o assunto com mais seriedade.

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Talvez eu tenha tido a ilusão de que, nesses vinte anos, uma bolha foi estourada, o mainstream se tornou mais amplo. De um lado, sim. De outro, não. As affirmative actions copiadas dos EUA foram apenas uma das modas que passaram a vir mais rápido, e com mais força, graças à internet. A grande imprensa pode ter-se aberto para algumas vozes conservadoras e liberais, mas nesses vinte anos ainda não vi um debate começar: o debate é sempre abortado pelas acusações.

O efeito é um tanto deprimente. Se você quer escrever, está condenado a só falar para quem já concorda com você, para pavonear sua capacidade de expressar melhor aquilo que as pessoas nem sabem que pensam, ou pode dialogar com pessoas que realmente discordam de você?

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Em 1997, eu, Sergio, e Alvaro brincávamos: há mais discordâncias entre nós do que entre nós e nossos linchadores.

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Desde criança, uma atitude sempre me causou repulsa e me pareceu um sinal inequívoco de que o desejo de segurança psicológica era maior do que a curiosidade: o pavoneamento do menoscabo, aquela dismissive attitude de quem enfia um sanduíche de pepino na goela, te dá um tapinha nas costas e diz que não precisamos ouvir os bárbaros. Uma espécie de predestinação intelectual: se uma ideia é mainstream, então é porque é boa; se é marginal, como ousa ter se aproximado da margem? Vamos varrê-la de uma vez.

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Outro equívoco meu foi ter achado que, nesses vinte anos, a bolha tivesse sido estourada por pessoas como nós de O Indivíduo — mas parece que a bolha diminuiu, recuou, enrijeceu. O menoscabo hoje não consegue nem mais parecer um menoscabo, mas já se tornou um desespero histérico, martelado todos os dias, com o estudo de novas poses, de novas expressões.

No entanto, é apenas uma bolha.

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Ou quem dera fosse apenas uma bolha. Algumas linhas atrás falei do dilema: vou agora escrever só para quem pensa como eu? É o caso de desesperar da possibilidade de contato com os famosos outros lados e desistir?

Claro que não. É apenas uma bolha.