Contra o pagamento de mensalidades em universidades públicas

Parece ter-se tornado um consenso, até entre parte dos liberais, que os alunos mais abastados das universidades públicas deveriam pagar mensalidades para ajudar a custeá-las. Sou totalmente contrário.

Primeiro, pelo lado prático. Lembro do caso da USP: a folha de pagamento tornou-se maior do que a universidade. Dê a USP uma nova fonte de renda, e essa folha de pagamentos vai crescer mais ainda. Aí serão todos, abastados e não abastados, que vão pagar mensalidades.

Segundo, porque a universidade já é paga com impostos. Poucas coisas são mais abjetas do que ficar falando em serviços “gratuitos” prestados pelo Estado. Eles são gratuitos apenas no momento do recebimento do serviço.

Terceiro, porque é totalmente absurda a ideia de que, se o Estado presta bem algum serviço, nós que pagamos impostos devemos pagar ainda mais só para que esse serviço continue existindo.

Quarto, em 100% dos casos, sou a favor de que qualquer falta de verba do Estado seja resolvida primeiro com o remanejamento da verba para outras áreas. Se a USP aumentar sua própria folha de pagamento além de sua dotação orçamentária, os responsáveis por isso devem saber que vão reduzir os serviços prestados pelo Estado em algum outro setor.

Lembro de ver um ex-presidente do BNDES rir de dois jovens que ele teria visto abraçados numa passeata: o cartaz da menina dizia “mais educação”, e o do menino, “menos impostos”. Para aquela ébria voz de gralha, aquilo era um contrassenso. Infelizmente, o tempo para intervenções da plateia acabou antes que eu pudesse dizer que era só transferir o dinheiro do bolsa-empresário para a educação.

O primeiro passo para a sanidade da discussão política brasileira é cortar as possibilidades de aumento da arrecadação. Depois que o Estado mostrar que consegue lidar muito bem, em todas as suas esferas, com 38% do PIB, aí, quem sabe, talvez, quiçá, o Brasil pode discutir se é mesmo capaz de ser uma social-democracia europeia, como essas que estão implodindo.

Sim. Eu sei que o problema orçamentário esbarra em direitos adquiridos. Sou a favor de que acabem com os direitos adquiridos antes de aumentar em um centavo a arrecadação.

Se não for assim, é como dizem os americanos: throwing money at the problem, jogar dinheiro no problema.

Notas para um conservadorismo linguístico (III)

Ça suffit.

Após dois meses deveras intensos, volto ao blog e admito duas coisas:

1. Comecei a escrever sobre “conservadorismo linguístico” pensando em usar um tom conciliador etc. Realmente é necessário que haja alguma ideia clara de conservadorismo linguístico, uma ideia que possa ser transmitida. E, mesmo que não seja transmitida uma ideia, que ao menos seja transmitida uma atitude conservadora.

2. O que me motivou a escrever tudo isso foi um texto de Marcos Bagno. Um texto em que Bagno, pela enésima vez, dizia que toda reclamação contra o uso de “presidenta” seria um disfarce para “a reação de determinados setores da sociedade, do lado conservador do espectro ideológico, à ascensão ao cargo máximo do poder de uma mulher e, não só, de uma mulher vinculada a um projeto político que se identifica com as forças convencionalmente chamadas de esquerda”. Senhor doutor Bagno, não venha fingir que esses setores conservadores não adoram Margaret Thatcher. O problema com a “presidenta” é que o uso é incomum e assim abre caminho para a serventa, a gerenta etc.

Bagno, no texto, lembra – como eu mesmo já lembrei – que sim, o dicionário lista “presidenta”. Mas é aquilo: nem tudo que é bom é conveniente, ou nem toda coisa boa é convenienta. Fica o dilema: se você vai adotar o uso de “presidenta”, então depois só poderá condenar o de “gerenta” se apelar ao dicionário. E eu mesmo não teria problema nenhum em relação a isso, aliás.

O problema com Bagno – o problema, aquilo que realmente me motivou a começar a escrever, foi a seguinte frase: “o recurso aos dicionários não autoriza nem desautoriza ninguém a dizer ou a não dizer o que quer que seja”. Que Bagno diga isso logo após ter recorrido a três dicionários para justificar o uso de “presidenta” faz com que eu me indague se ele está usando um truque neurolinguístico para afirmar sua própria autoridade de gramático formado e certificado, ou se é burro mesmo.

Posso admitir sem problemas que toda autoridade é concedida e que numa certa medida essa concessão é arbitrária. (Essa admissão é terrível – estou ciente.) Só que a afirmação de que “o dicionário não autoriza nem desautoriza ninguém etc.” é simplesmente falsa na medida em que é exatamente o dicionário que mantém uma certa estabilidade lexical. Se você traduz, como eu, recorre ao dicionário para ter certeza de que não está inventando um novo sentido para uma palavra. Porque é melhor que você use um sentido que está só no dicionário, mas que pode ser acessado pelo leitor, do que usar um sentido que está só na sua cabeça. Isso não é óbvio? Realmente não é? Se o sr. Bagno gosta de dizer que toda relação é política, sou eu, que sou de direita, católico, conservador em moral e liberal em economia a não mais poder que tenho de insistir na cortesia com o leitor. Porque o homem de esquerda está fazendo o que os comunistas sempre fizeram: acredite em mim porque sou eu que estou falando, não repare na minha prestidigitação argumentativa, e se você discordar, bom, você é um reacionário burguês que… não gosta da esquerda.

Vejam, tudo isso é muito abaixo da crítica. Acho também que demorei dois meses porque eu queria encontrar algum jeito delicado de observar isso. Mas não há.

Essa cortesia de que falei é a base do conservadorismo linguístico. É o desejo de ser entendido por outras pessoas, da maneira mais clara, mais direta possível. Quem quer afirmar a autonomia de cada falante é a serpente do Paraíso. “Vai lá, janotinha, fale como quiser, escreva como quiser, bote aí umas arrobinhas no lugar dos artigos, se ninguém te entender, é que eles estão te oprimindo.” Ora, chispe já daqui, sua serpente ridícula, vou esmagar sua cabeça com o Houaiss e usar seu couro para forrar meu Caldas Aulete.

Notas para um conservadorismo linguístico: parêntese para comédia

A comédia do preconceito linguístico é a seguinte. De um lado, há os que gritam contra os preconceituosos, que só têm um domínio superficial do idioma. De outro, estão os conservadores linguísticos, que estão dispostos a dirigir todos os recursos necessários para que as pessoas possam dominar a mesma norma dos preconceituosos.

Imagine esta situação: fulano tem uma coisa preciosa e eu denuncio fulano porque fulano fala mal de mim só por eu não ter essa coisa. Aí vem um terceiro e diz: “Olha aqui, vou te dar a coisa preciosa.” E então eu respondo: “Eu não quero isso, eu quero que fulano diga que a coisa preciosa não tem valor nenhum e que a que eu tenho vale tanto quanto a dele!”

Depois a gente fica com um pé atrás em relação ao discurso público e ainda é chamado de cínico.

Notas para um conservadorismo linguístico (II)

No texto anterior, falei de como o preconceito linguístico existe entre semiletrados. São as pessoas que dominam a ortografia e uma gramática básica e que aproveitam para gozar de quem não as domina – como se falar “nós vamos” em vez de “nóis vai” fosse um grande mérito. Mas, francamente, não vejo nada de especial nisso. Cada um exibe o que tem. O único problema é que isso acaba sendo confundido com a própria ideia de dominar bem o português. E, pior ainda, isso acaba sendo combatido por pessoas que querem que “dominar bem o português” seja simplesmente o contrário de não dominar essas regras básicas.

Existe nisso uma tremenda vulgarização da sensibilidade. Você pode observar um erro, com ou sem aspas, e ter razão nisso. Só que, com isso, acaba chamando a atenção para o erro. Em um de meus poemas favoritos, “The Quest”, Auden fala em “testar a resolução dos jovens falando das pequenas falhas dos grandes homens”. Lembro, por exemplo, de encontrar erros de ortografia em originais manuscritos de Bruno Tolentino. Você pode apreciar ou não apreciar a poesia dele, mas teria mesmo a empáfia de sequer citar, numa crítica, esse erro ortográfico?

No entanto, a noção de erro precisa ser rediscutida e, de certo modo, restaurada. Quando o linguista fala em “desvio da norma padrão”, ele está usando um termo técnico. Não creio que nenhum termo técnico tenha direitos especiais sobre a linguagem corrente. Acho engraçado que o linguista goste de dizer que num ambiente informal você não vai seguir a norma culta – e é verdade que nem os mais cultos falam de maneira tão límpida quanto escrevem, e que no Brasil a distância entre a fala e a escrita, mesmo das classes cultas, é impressionante – , argumentando a partir da ideia de adequação, e ele mesmo não se pergunte se é adequado que leigos sejam submetidos a conceitos linguísticos descontextualizados. Para um leigo, é muito mais vantajoso pensar que existe erro de português do que ter de compreender todo um arcabouço linguístico dentro do qual a frase “não existe erro” pode fazer algum sentido.

Dito isso, é verdade também que muitas críticas ao ensino tradicional são justas. Não consigo acreditar que crianças de doze anos possam se beneficiar da classificação das orações subordinas – a menos, talvez, que estudem latim e/ou grego ao mesmo tempo. Lembro de quando eu estudava, pela enésima vez, a colocação dos pronomes átonos, no terceiro ano do segundo grau. Meu professor era Sergio Nogueira. Enquanto estudávamos aquilo, eu lia, sem ser para a escola, Memórias Póstumas de Brás Cubas (essa é a melhor edição). Qual não foi a minha surpresa em ver que em diversas ocasiões Machado de Assis “desrespeitava” as regras de colocação pronominal propostas nas gramáticas. Levei o caso ao professor, que teve de concordar. E desde então eu coloquei as gramáticas entre parênteses.

De um lado, um ensino que privilegiasse a leitura, a interpretação de textos e a redação evitaria o mal de ter alunos que sabem que a palavra negativa atrai o pronome átono mas acham Machado de Assis um completo estranho. Também, se os alunos fossem capazes de escrever um pouquinho de nada como Machado de Assis, não seria nem necessário, nem razoável, ser capaz de enunciar essas regras todas.

De outro lado, a ideia de uma norma padrão está associada ao Estado e é francamente indispensável para ele. Não é possível manter um Estado funcional com documentos com redação ambígua. Imagine desde editais incompreensíveis até petições e decisões judiciais que ninguém consegue entender. Um pequeno exemplo: você defende o “nóis vai” porque o português já marca a primeira pessoa do plural no pronome, tornando o verbo redundante. Porém, essa redundância permite a omissão do pronome em incontáveis ocasiões. Se a marcação da pessoa ficasse a cargo do pronome, ou o português teria de ficar mais parecido com o inglês, para evitar ambiguidades, com pronomes aparecendo o tempo inteiro, e assim perderia um traço seu bastante distintivo, ou simplesmente passaríamos ao caos – a uma Babel não de idiomas, mas a Babel de “normas”.

Ao dizer isso não pretendo defender o Estado. Só me surpreende que aqueles que defendem a relativização da norma culta sejam os mesmos que defendem sempre mais intervenção estatal, mais soluções estatais, na forma de leis e de políticas públicas.

Curioso ainda que não percebam que a ideia de uma norma padrão é profundamente igualitária. Aliás, ela sim poderia ser um instrumento de equalização. O político mais poderoso, o milionário mais rico, o intelectual de maior prestígio e qualquer pé-rapado submetem-se às mesmas regras. Claro que isso não acontece hoje: o político mais poderoso fala de qualquer jeito e entende quem tem juízo; o milionário mais rico pode balbuciar qualquer coisa que os interessados perderão horas para entendê-lo; o intelectual de maior prestígio pode inflar seus discursos até ultrapassar todos os limites do tédio; o pé-rapado poderia falar melhorzinho mas a escola considerou que isso seria opressão.

Só que aqui já estamos numa questão plenamente política, e não mais linguística.

Notas para um conservadorismo linguístico (I)

Em nome do combate ao “preconceito linguístico”, vai-se jogando fora uma noção que, na verdade, talvez nunca tenha nem sido muito bem compreendida: a noção de falar bem, de escrever bem, de expressar-se bem. Não é difícil imaginar que é melhor ler um texto e entendê-lo de maneira imediata e com o mínimo de ambiguidades do que ter de penar para entendê-lo. O mesmo, é claro, vale para um discurso falado.

No Brasil, ao menos na minha experiência, escrever e falar mal costumam significar duas coisas. Se a pessoa tem algum diploma (é difícil dizer “formação”), ela fala e escreve de um jeito empolado, cheio de circunlóquios, realmente caricatural. Os textos acadêmicos trazem exemplos abundantes: meu favorito ainda é “um argumento cujo desdobramento subsequente se dirige no sentido de conceber”, cujo autor terá sua identidade preservada. Se você também for a um congresso qualquer, e sobretudo se você for lá para trabalhar como intérprete, vai sofrer na hora das perguntas. Os brasileiros nunca completam uma frase, ficam dando voltas, colocam um aposto atrás do outro, o verbo da oração principal nunca chega… Por outro lado, se vamos ver o discurso daqueles que seriam o alvo do famoso “preconceito linguístico”, temos as mesmas frases que não terminam, e, na escrita, a quase total ausência de pontuação. Você diz que eu sou um opressor que tem fetiche pela norma culta, e eu digo que, só para ficar num critério bem utilitário e nada empolado, preferia não ter de decifrar cada discurso que me chega. Essa é a vantagem da norma “padrão”.

A solução desse problema, a meu ver, é a seguinte: acabar com o ensino que privilegia a gramática e botar a molecada para ler e escrever muito. A língua é um hábito. Você não vai aprender a escrever bem lendo gramáticas, mas lendo Machado de Assis, Camões etc. É até fácil ver como essa estrutura do ensino está refletida nos dois principais tipos de mau português. O aluno só conhece dois registros: o coloquial mais básico e outro, abstrato, que parece não se referir a nada, mas que ele precisa macaquear para passar de ano e que ele acaba associando a uma impressão de respeitabilidade. Sem contar que o português é exigido pelos concursos públicos. Nesse caso, o concurseiro, em primeiro lugar, volta a estudar um monte de gramática, e depois fica lendo um monte de textos horrorosamente escritos, empoladíssimos, o que reforça a perversa ideia de que a “gramática” e a “norma culta” não passam de um monte de idiossincrasias que um bando de gente recalcada usa para oprimir os outros.

Existe o preconceito linguístico? Existe, claro. Mas eu só o vejo sendo praticado por pessoas semiletradas contra pessoas iletradas. Aqueles que conseguiram imitar trejeitos gramaticais rudimentares fazem pouco daqueles que não conseguiram. É o empolado que fala mal do roto, e os gramáticos “progressistas”, como o sr. Marcos Bagno, vêm defender o roto na base da carteirada: “sou gramático – e progressista!”. Fica tudo num universo nebuloso: o coitado que não enxerga a norma padrão, o que enxerga as aparências dela e o gramático que abusa da sua autoridade.

Camões não é um iPhone

Se fizerem um show com todas as músicas de Noel Rosa, Tom Jobim ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio de lá sem achar que passei a tarde numa biblioteca. – Bruno Tolentino

Se você olhar a tal da “alta cultura” apenas como um objeto que gente mais esnobe do que você usa para… esnobar você, então realmente a primeira estratégia que o ressentimento lhe ditará será desdenhar da “alta cultura”.

Agora, essa é uma visão inteiramente paranoica. Camões não precisa ser visto como um iPhone, nem como uma bandinha de rock obscura, como algo que vai ajudar você a achar que tem mais bom gosto do que os outros. Não conheço quem fosse ficar ressentido se de repente as pessoas atentassem para a genialidade rítmica de Sete anos de pastor”. É claro que mesmo dentro dos círculos “eruditos” existe esnobismo. Vou até contar para vocês um meu esnobismo. Creio ter feito a primeira tradução de um poema inteiro de Geoffrey Hill para o português; no dia em que o “descobrirem”, vou precisar rezar muito para não fazer cara de “só agora que vocês…?” Mas esse fenômeno é igual ao da pessoa que julga conhecer, digamos, o verdadeiro funk porque vai ao baile menos frequentado numa favela que as UPPs desconhecem. É só esnobismo.

Você pode, se quiser, interpretar o mundo exclusivamente como esse jogo de esnobismo, olha, lá está o Pedro com seu monóculo, lendo Camões e tomando vinho francês, desprezando a brava gente brasileira que sacoleja – e, quer saber, sacolejar também é cultura etc. Aí você pode criar uma pose para me esnobar, chamar o consenso universitário, dizer que o desdém que você me imagina sentindo é cultura do estupro e tal.

Mas você também pode sair desse inferno kafkiano, entender que a porta está aberta e é só entrar. Sim, apreciar certas obras de arte demanda trabalho, apuro. Demanda você acreditar que é você, espectador, consumidor, que precisa estar à altura daquele objeto. Mas peraí, o negócio também não é tão complicado. Veja o soneto Sete anos de pastor. Você se informa sobre a história bíblica tão curtinha em que o poema se baseia, adquire uma noção muito básica de métrica, percebe que aquele soneto é um jeito ritmado de contar a mesma história, e pronto. Em quinze minutos você abriu as portas de preciosas obras a que podemos dar nomes que hoje soam pomposos a nossos ouvidos caipiras, como “quinhentismo português”, “classicismo português” etc.

Agora, se sua escola, em vez de lhe proporcionar isso, preferiu usar o dinheiro dos seus impostos ou da sua mensalidade para dizer que torcer o nariz para quem fala “nós vai” é coisa feia, não apenas ela abusou do seu papel como ainda tentou colocá-lo no perverso jogo do esnobismo universal, como um demônio que pretende arrastar o aluno para o mesmo inferno de onde veio.

E quanto mais bibliotecas gratuitas, mais sites, mais wi-fi nas escolas houver, maior será esse ressentimento, mais disseminada será a interpretação de tudo pelas lentes do esnobismo, porque mais tempo as pessoas preferirão passar vendo vídeos de gatos – e logo vão dizer que isso foi a mesma coisa que passar a tarde lendo Camões.

Obviedades sobre raposas preguiçosas

Nada como ler, já com o dia de trabalho um pouco adiantado, a notícia, destacada na home de um dos maiores portais do Brasil (que não deixa de ser o país dos portais), de que a primeira colocada num mestrado na UFF vai estudar o funk e uma entidade chamada Valesca Popozuda. (Foi só publicar o post que já mudaram para “segunda colocada”.)

Quem tenha feito faculdades na área de Humanas não há de espantar-se. Claro que o portal destaca isso na esperança de gerar escândalo: como assim, estão estudando o vil funk, em vez de Machado de Assis, e com o dinheiro dos nossos impostos? Francamente, até eu partilharia desse escândalo, se já não tivesse passado anos numa faculdade de Letras e não soubesse que esse tipo de trabalho é absolutamente comum.

Mas há algo sim na matéria que merece uma pequena discussão: as declarações da menina de que não existe “hierarquia” entre “alta cultura” e “baixa cultura”, a sugestão de que Valesca Popozuda e José Saramago estão no mesmo patamar.

Isso é sempre muito engraçado. Você pode dizer que Toddy é superior a Nescau, mas não pode dizer que Saramago é superior, enquanto artista, a Valesca Popozuda? Bastaria essa pergunta retórica para encerrar a discussão. O que não me impede de prosseguir, em nome de clareza.

Você pode estudar qualquer coisa e fazer abstração de um juízo de valor. É um princípio metodológico: para entender X, não vamos ficar parando o tempo todo para dizer o que é melhor ou pior. Só que você não pode, no meio do estudo, transformar o seu princípio metodológico em um princípio doutrinal, um princípio em si.

E digo que você “não pode” não como uma proibição externa, mas porque você se contradiz. Então o princípio de que não existe melhor nem pior é em si melhor do que o princípio de que existe melhor e pior? É a mesma coisa de quem diz que a verdade não existe. É verdade que a verdade não existe?

Fica muito fácil entender, assim, o que está em jogo. Você transforma o princípio metodológico em doutrina – se faz isso por má fé ou não, eu sei lá. Depois começa a dizer por aí que não há diferença entre gostar de Saramago e gostar de Valesca Popozuda, e eu só posso imaginar que você se sente esnobado pelos fãs de Saramago e, como uma raposa preguiçosa, diz que a uva da “alta cultura” estava verde.

No fim de tudo, você, com todo o pujante imaginário do cancioneiro funkeiro carioca dos últimos cinco anos (sem dúvida tão rico quanto o da literatura mundial!), ainda vai dizer que eu é que sou o esnobe, conservador, autoritário etc. por dizer essas obviedades.

E, no epílogo dessa história, eu serei apenas obrigado a dizer que a disseminação desse tipo de pensamento, que acha que funk e Saramago são a mesma coisa, está gerando uma elitização fantástica. Nunca os bens culturais estiveram tão acessíveis a qualquer pessoa, e nunca foram tão desprezados. Aliás, para ser mais exato, nunca esteve tão na moda alardear o desprezo por eles.

Esperando o novo acordo ortográfico

Difícil é gostar do acordo ortográfico, e eu nunca vi uma única pessoa que o defendesse além dos gramáticos que o fizeram. É como se esses gramáticos tivessem inventado um imposto que beneficiasse o próprio ego, sabendo que, graças a uma imposição, milhões de pessoas no mundo inteiro agora poderão cometer novos erros ou policiar-se para não cometê-los. A súbita mão do fantasma oculto de Evanildo Bechara quer guiar-nos.

Eu mesmo não gosto do acordo ortográfico porque acho que a estabilidade da língua escrita é um bem que facilita a comunicação entre as gerações. Gostaria de mostrar a meus netos edições facsimilares de Os Lusíadas e deixá-los espantados com o fato de que séculos nos separam de Camões, mas não o idioma. Gostaria de não ter de “transliterar” Camões, ou de transliterar o mínimo. E se eu fosse escolher uma ortografia, seria aquela, a etimológica, que Fernando Pessoa usou para escrever Mensagem.

Também me parece evidente que não serão algumas mudanças ortográficas que vão ajudar a “unificar” o idioma. Não há como não sentir o gosto do português europeu quando lemos que alguém está a fazer alguma coisa, e não fazendo, e isso é só o começo. Há as diferenças de vocabulário – um amigo meu foi morar em Portugal quando criança e nunca se esqueceu da primeira vez que um adulto se referiu a ele como “o putinho”.

Eu trabalho com tradução e tenho de entregar meus textos com o acordo ortográfico. Comprei o corretor da Priberam e tudo bem. Mas só sei enunciar uma regra: não se acentua mais ditongo aberto em posição paroxítona. O resto é o corretor que faz. Ou então consulto o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, vulgo VOLP, vôupi (circunflexo pode?). Não posso deixar de pensar naquele diálogo de Platão (Fédon? Fedro?) em que Sócrates recusa a escrita porque vai acabar com sua memória. Nesse caso específico, eu poderia alegar que, pelo menos no que diz respeito à colocação de hífens, eu nunca jamais soube colocá-los, e não é agora que vou saber.

João Pereira Coutinho vem dizer na Folha que não se muda a língua por decreto. Mas, porém, contudo, todavia, entretanto, digo eu que se muda sim, e eis a experiência a demonstrá-lo amplamente. As editoras adotam o acordo, a imprensa adota o acordo, os concursos públicos adotam o acordo (e o brasileiro que não escreve profissionalmente só escreve em prova de concurso), o ENEM adota o acordo e por isso a escola adota o acordo etc. etc. etc. É duro admitir, mas a maleabilidade da língua portuguesa no Brasil a decretos está intimamente ligada à fraqueza da sociedade civil.

Complemento ainda com o seguinte, que já devo ter dito por aqui. Você entra numa Faculdade de Letras e lá estão os linguistas. Há lá os linguistas que só estudam as estruturas e o uso e tal, e são gente boníssima. Nunca falam da prescrição gramatical e aprendi um bocado com essas pessoas, que me mostraram que o que Chomsky tem de palhaço falando de política, tem de gênio falando de linguagem. Mas há também um bom grupo de professores que passam o dia falando mal da Nomenclatura Gramatical Brasileira, vulga NGB, e do ensino nas escolas. Ora, a NGB foi instituída por uma portaria do então Ministério da Educação e Cultura em 1959. Logo, a questão é de fato jurídica. Claro que alguém pode se perguntar se é função do Estado decidir regras de acentuação ou definir o que é um substantivo, mas isso, enfim, é uma questão de como as coisas deveriam ser, e não de como elas são.

Então, como diriam os paulistas, esses professores que só fazem falar mal da NGB (e eles nem estão errados no que dizem) também fazem outra coisa, que é falar de como as coisas deviam ser. E esse processo já deve ter algumas décadas. O establishment linguístico, digamos assim, não tem defensores ideológicos, não tem seus intelectuais orgânicos. Quem dá aula em cursinho e ensina a língua tal como cobrada em provas também tem lá suas críticas e não fala disso porque, bem, ganha-se por hora, e se o aluno fosse fazer Letras não precisava de cursinho.

Esses professores ainda não estão satisfeitos com o acordo atual. Eu sei que antes de morrer verei novas modificações. Há quem queira acabar com todos os acentos, há de tudo. O mesmo fantasma que há alguns anos subitamente lançou sua mão voltará, apenas com outro nome. Não se trata, como falei, de um fantasma oculto, mas de um espírito de permanente reforma, animado por aquele progressismo ressentido que acha que a “ciência” é a maneira mais elegante de esconder uma sensibilidade pobre e a sensação de estar “excluído”, mesmo que o governo dê escola, professor, lanche e transporte. Só não dá – espero que alguém se eleja prometendo isso! – a vontade de estudar e de passar mais tempo na biblioteca do que na cantina.

O livreiro e o crítico

Quem faz faculdade de Letras descobre que um dos principais problemas do ensino é a perpetuação da confusão entre um princípio metodológico – a abstração do juízo de valor – e uma afirmação de fato – tudo tem o mesmo valor. Isso é, se a a Linguística considera que o português escrito por Machado de Assis e aquele usado nas letras de funk tem o mesmo valor para que se entenda o “sistema” da língua, então a faculdade de Letras conclui que todos os registros têm o mesmo valor, e eu não queria parar a argumentação agora para sugerir que se escreva um livro de Linguística com o português das letras de funk. Analogamente, as obras literárias também são analisadas segundo as suas características estruturais e temáticas, sem que ninguém se pergunte se X é melhor do que Y, e por quê. Isso, em parte, explica a leitura de tanta porcaria contemporânea na gradução. Uma faculdade de Letras deveria formar linguistas ou críticos literários, ou pelo menos desenvolver nos leitores algum potencial crítico; a postura científica de “neutralidade” está formando livreiros teóricos, pessoas que seriam capazes de descrever as obras mas que não se atreveriam a responder a temível pergunta: dado que vamos morrer e que o tempo é curto, em que devo investir meu tempo e minha atenção?

Aqui chegamos no outro extremo. O crítico, quer ele queira, quer não, é uma espécie de corretor do prestígio das obras. O crítico ocupa lugares de prestígio na sociedade e suas palavras serão ouvidas. Adotar a postura “científica” é evitar a pergunta fundamental. Claro que você pode ser até contra essa pergunta fundamental. Você pode achar que cada um deve decidir o que ler, e fazer suas próprias escolhas, sem perceber que isso é uma mentira existencial, porque você pegou essa ideia de uma bibliografia selecionada por alguém de prestígio num lugar de prestígio (um professor na universidade). Sem contar que abdicar desse papel é propor que cada um refaça o percurso coletivo de toda a humanidade. E mesmo que você pegue as pessoas que aparentemente refizeram esse percurso, como Harold Bloom e Umberto Eco, elas não chegaram a conclusões muito diferentes das do cânon “oficial”.

No Brasil, de fato, ficamos divididos entre dois extremos. O jornalismo literário não é exatamente grande coisa. Não me recordo de ter lido muitas resenhas negativas, para começar. Mesmo as resenhas positivas se limitam a mimetizar o estilo acadêmico, falando das características das obras e não de seu possível proveito. A crítica acadêmica é essencialmente ilegível e fala de literatura como um físico falaria a seus pares, sem preocupação com a inteligibilidade extramuros. Sugerir que a literatura se refere a algo no mundo e que vale a pena discutir essa relação é uma espécie de heresia. Mas o leitor está no mundo. Até os outros textos estão no mundo. A faculdade pode achar que um texto se refere a outro texto se refere a outro texto se refere a outro texto, mas estamos todos no mundo, leitores e textos.

Lamento muito tudo isso. Acho que os principais livros da minha vida foram livros de crítica literária, e, destes, os únicos em português foram pequeninas obras de Manuel Bandeira. Hoje em dia diriam tratar-se de impressionismo. Esses livros me levaram a outros, de crítica e de poesia. A crítica poderia servir para isso, para educar o gosto e por meio do gosto a própria pessoa. É preciso possuir certas qualidades para ser tocado por certos livros; o crítico poderia dar dicas de como se tornar capaz de apreciá-los, e isso não seria tão diferente de um crítico de vinhos que sugerisse prestar atenção em certas características. Atenção, aliás, é uma palavra fundamental. Significa tanto olhar numa certa direção quanto olhar por um certo tempo. E ficar parado, concentrado, não é uma coisa má. Depois, pensar na experiência. Fazer com que as ideias fiquem enraizadas na experiência, levando os leitores a entender por que gostam disso ou daquilo. E não simplesmente agir como um livreiro que fosse capaz de organizar todas as estantes sem estabelecer uma relação pessoal com obra nenhuma.

Da pose à piada pronta

Acompanhei por alto as discussões sobre Oswald de Andrade inspiradas pela FLIP. E fico impressionado, mas talvez só porque, desde o fim da faculdade, vivo cá no meu assento etéreo, lendo apenas o que me apetece.

Primeiro, parece que toda a discussão literária no Brasil é uma discussão de pose. Ou, se você preferir, de postura, de atitude. O escritor deve ser assim, deve ser assado. Porque é preciso fazer uma literatura assim, ou assado. Uma literatura que seja nacional, original, espontânea, atenta às influências mas sem perder autonomia, criativa, mágica, insubmissa, inteligente mas sem pedantismos e, é claro, transgressora. Não sei como ninguém percebe que o Ministério da Educação é a síntese suprema da ideia mesma de establishment, e que todos os professores do Brasil elogiam a transgressão. Eu nunca vi um professor elogiar um autor porque ele respeitou o cânone de sua época como ninguém e agradou a todos. Não perceber que a consequência lógica de o establishment elogiar ininterruptamente a transgressão é fazer da ideia de transgressão o centro do conservadorismo é só o começo do problema de uma zelite acadêmica que só conhece as palavras e nunca viu as coisas. Não é à toa que hoje mesmo no suplemento literário do Diário do Balneário as pessoas estão lá discutindo o que é transgressão. Se todo mundo quer transgredir, não há transgressão, ué. E se está todo mundo tentando transgredir, nem dá para ser conservador direito também. Você tem de simplesmente se afastar e buscar suas referências naquele lugar da universidade que só é frequentado pelos concurseiros que nem sequer estão matriculados ali: a biblioteca. Eu acredito, por exemplo, que a melhor poesia feita hoje no Brasil, poesia excelente mesmo, passa totalmente ao largo da discussão literária acadêmica ou jornalística.

Primeiro de novo, é esse o legado de Oswald de Andrade e do Modernismo de 1922. Os melhores poemas modernistas não estão ligados à Semana de Arte Moderna. Aliás, nem os poemas mais conhecidos estão ligados à Semana. A Semana de Arte Moderna Contada nas Escolas é uma narrativa para agradar adolescentes, uma espécie de Cinderela das letras:

Era uma vez uma sociedade conservadora e empolada. Então apareceu um grupo de amigos do barulho, cheio de ideias novas e transgressoras: os modernistas. Os burguesinhos torceram o nariz. Mas foram vencidos pela esterilidade de suas próprias ideias e inevitavelmente deram lugar à novidade e ao vigor da juventude.

E neste momento o aluno adolescente liga as pontas sem perceber: a professora está contando essa história porque eles venceram mesmo, e o bom é ser jovem e transgressor e buscar a novidade.

Primeiro de novo de novo, é uma zelite acadêmica que olha tudo como pose, mas que não considera a própria pose; que acusa os outros de não estar cientes do seu lugar no mundo, sem jamais se considerar culpada dessa acusação. Na minha experiência, porém, o mais comum é sermos nós mesmos culpados daquilo de que mais acusamos os outros. E isso também vale para os nossos conservadores de internet: gente que sequer leu Machado de Assis e cujo monolinguismo funcional melhor seria chamado de meiolinguismo cultural não consegue dormir por causa da decadência das coisas. Você não “combate a ignorância” reclamando na internet. Isso você faz calando a boca e lendo um livro. E fazendo um esforcinho para entender alguma coisa.

O mais irônico é que dois poetas que certamente estão entre os cinco (ou três, ou até dois…) maiores da língua, Camões e Fernando Pessoa, não tentaram ser transgressores. Os dois fizeram o que podiam para atender ao gosto da época e não conseguiram entrar na turma das pessoas chiques. Até poemas elogiando o governo eles escreveram. Isso deve servir para mostrar que buscar a transgressão não garante nadinha, e que para fazer parte do grupo das pessoas chiques é mais importante já ter nascido dentro dele, ou aprender a imitar seus trejeitos, do que se esforçar para escrever boa literatura. Quer dizer, a mera ignorância desse detalhe, que ajudaria a aguçar a autoconsciência, mostra o quanto a ideia da Semana de 1922 impregna a produção crítica e literária.

Ou, resumindo tudo, a Semana de 1922 devia ser entendida como uma espécie de peste mental, que vai transformando os contaminados em piadas prontas involuntárias.