Larguem livros pela metade, saiam de filmes ruins. Vão por mim, funciona

Ontem à noite minha mulher e eu fomos ao cinema. O filme era tão ruim, mas tão ruim, que, passada meia hora, levantamos e fomos embora. Sairmos os dois juntos não é tão comum, mas acontece. Eu, por outro lado, só entro num cinema carregando um livro. Se o filme não engatar, levanto e vou esperá-la num café. Já li muito assim.

O mesmo com livros. Ficção, faço como cinema: se não engatar, largo sem dó. Se me parecer que o santo não está batendo naquele momento, ainda deixo o marcador de página no lugar em que parei. Se não, nem isso. No caso da não-ficção, leitura não-linear para livros aborrecidos. Sem peso na consciência, salto capítulos, vou direto aos pontos que me interessam no momento, volto anos depois e leio o resto.

O mesmo vale para qualquer outro tipo de espetáculo: já saí de peças de teatro, apresentações de música clássica e até de uma ópera (um “Don Giovanni” pavoroso; fui para casa, estava passando UFC e vi o Anderson Silva lutar).

Até os trinta e poucos, se alguém me dissesse que um dia eu seria assim, receberia uma risada na cara. Quem me converteu foi o Tyler Cowen. Seu argumento pode ser resumido na frase “you’ve already lost your money, why waste your time?”.

Não sei se essa é a melhor maneira de consumir livros, cinema, espetáculos, etc, e, dada minha condição de diletante, francamente não há como saber. O Taleb provavelmente diria que as ciências humanas possuem pouco skin in the game e eu, em particular, estou no negativo nesse quesito (*). Se o output não pode ser avaliado com um mínimo de objetividade, como julgar a qualidade do input?

Uma saída seria apelar para aquilo que o mesmo Taleb chama de Lindy effect: ficar apenas com as obras consagradas pelo tempo, num programa de leitura e releitura dos clássicos. É difícil argumentar contra essa abordagem, exceto pelo lado da curiosidade. E se numa quinta-feira perdida eu entrar num cinema e topar com um filme maravilhoso? E se o romance daquele espanhol de trinta e dois anos for uma pérola? Acho que o método do Tyler Cowen dá a tênue esperança de um equilíbrio entre cânone e serendipity. Para mim, com zero skin in the game, tem funcionado.

(*) Ok, eu escrevi um romance em que meio que entrou tudo que li, assisti, ouvi na vida. Mas como julgá-lo? Crítica? Vendas? Prêmios? De novo, acho que o Taleb diria: Lindy. Vou pedir para meus filhos ficarem atentos às reações da posteridade.

E se o Papa Francisco levar uma ovada?

Com o clima atual de animosidades e de promessas de manifestações contra o Papa Francisco, que dispensou o papamóvel com vidro blindado usado após o atentado a João Paulo II, pergunto-me se não vão tentar ao menos lançar alguma coisa contra suas vestes brancas aqui no Rio de Janeiro.

Aí me vem imediatamente uma cena do filme de Rossellini sobre São Francisco, baseada numa página célebre do próprio, em que São Francisco explica onde encontrar “a perfeita alegria”.

O santo dos pobrezinhos

Para o santo, a perfeita alegria não consiste em converter todo o mundo, nem em prever todos os acontecimentos futuros, mas em apanhar em nome de Cristo. Por isso ele convida o irmão Leone a bater na casa de um homem para convidá-lo a servir Cristo, e é escorraçado para fora, jogado na lama, debaixo da neve.

O Papa também virá aqui convidar-nos à mesma coisa. O dono da casa, no filme, manda um “Não perturbe!”. Pois o Papa Francisco vai perturbar bastante a cidade (e eu moro em Copacabana, o bairro que provavelmente será o mais perturbado de todos).

Então, se o Papa levar uma ovada ou qualquer coisa, eu saberei que ele está conhecendo a perfeita alegria. Ou, como vocês podem ver no trecho do filme, logo abaixo, la perfetta letizia (e italiano não é nada difícil de entender).

Fósseis sonâmbulos

Num país que ainda tem uma cultura “de elite” tão uniforme quanto o nosso, pergunto-me quanto tempo vai levar para que a cultura da transgressão finalmente vá embora. Não estou falando da transgressão como estrutura, isso é, como transgressão real, porque nada pode se manter nessas bases. Falo da transgressão como tema, como conteúdo.

Fiquei pensando nisso depois que, na fila do estacionamento de um shopping, ouvi um diretor de teatro e uma atriz de TV conversando sobre A árvore da vida, de Terrence Mallick. E eles só sabiam falar sobre como o garoto do filme tinha um pai “repressor, católico”. Lá vamos nós de novo: a imaginação de quem nasceu a partir de 1950 e trabalha com artes às vezes não consegue sequer conceber, supor, imaginar, devanear que alguma ordem estabelecida e realmente existente possa ter alguma razão de ser.

Eu entendi o filme (para além de gostar ou não gostar, porque acho que no caso de Terrence Mallick já nascemos predispostos a gostar ou a não gostar) como uma narrativa proustiana de recuperação do tempo perdido, a rememoração pessoal que um homem faz dos aspectos da sua vida, de certos acontecimentos, e como isso não só faz dele aquilo que ele é, mas também o liga ao resto da humanidade. Há uma progressão no filme: eu vejo o mal de um lado só, depois reconheço o mal em mim, depois vejo que há o impremeditado e que o mal faz parte dele, e depois relaciono isso com a estrutura mesma da espécie, da ordem do mundo.

Pretensioso, sem dúvida. Mas a imaginação do espectador autístico brasileiro nunca sai da mesma clave: a identificação do mal de um lado só. Mal esse que é vagamente identificado com os aspectos mais duros da ordem estabelecida, ordem essa que portanto merece ser transgredida. E a transgressão nada mais é do que uma reafirmação autoconsciente daquilo que o sujeito transgressor sempre teria desejado. Algo como uma criança que quer comer biscoito, um desejo deveras inofensivo, até que alguém lhe diz que é feio comer biscoito durante a missa. Começa então a slutwalk: “Se eu comer biscoito te ofende, problema seu.” “Tenho direito de comer biscoito sem ser incomodado.” “Como biscoito para mim e não para você.” “No fundo você quer é comer o meu biscoito.” “A culpa não é de quem come biscoito.”

Lá em cima eu falei que era transgressão como tema e não como estrutura. Claro que há nisso um aspecto estrutural, porque pode ser aplicado a qualquer tema, digamos. Mas a estrutura vira tema na medida em que se fecha, em que não há progressão de níveis. Há o transgressor e o transgredido, e nunca há mudança de papéis, nem multiplicidade de aspectos, porque não há consciência trágica. (Naturalmente, não há consciência trágica no espectador brasileiro por causa do Ministério da Educação. Isso poderia ser ensinado em aulas de literatura.)

Se houvesse consciência trágica, as coisas teriam de ser levadas às últimas consequências. O garoto come biscoito durante a missa e é reprimido. Ele reage. Há outra reação. O garoto é expulso da missa e se vinga junto com outros garotos. Eles vencem e toda autoridade é abolida. O que vem depois disso? É só lembrar da Revolução Francesa: eles começam a brigar entre si, e vão matando uns aos outros, até que a história acabe por falta de personagens ou que surja uma força ainda maior que os domine.

Como A árvore da vida é uma narrativa de memória seletiva, a ordenação estética de uma tomada de consciência esparsa e demorada, a consciência trágica aparece como percepção da possibilidade do mal e da violência. É o garoto “oprimido” pelo pai que percebe que ele mesmo não é nenhum anjinho. Mas os meus colegas da fila do estacionamento, aqueles dois artistas famosos, não pareciam enxergar nada além de um menino oprimido pelo sistema representado pelo pai que começa a se revoltar. Não enxergam nada além disso porque provavelmente até hoje creem num sonho geracional sessentista, e, como Arnaldo Jabor, têm a amplitude imaginativa de um fóssil sonâmbulo.

“Larry Crowne”, não vou ver porque já vi, e você também, olha só

Outro dia descobri que existia um filme chamado Larry Crowne, com Tom Hanks e com Julia Roberts, que ainda vai estrear. Ou já estreou. Sei lá. Só de ver as fotos na IMDB, eu já sabia que já tinha visto o filme. Inúmeras vezes. E você também.

Eu sou tão fofinho

Tom Hanks é demitido. Olha só que sujeito adorável. Que boa gente. Que gente como a gente, não é mesmo? Quem poderia demiti-lo? Só as malvadas forças do capitalismo. Mas elas não perdem por esperar. Ele vai transformar essa derrota no início de uma grande jornada!

Eu só estou tentando entender alguma coisa, sinceramente

Tom Hanks vai então para a faculdade. Parece que no filme ele é demitido porque não tem diploma. Então ele vai se se aventurar no conhecimento. Vejam que contraste, um pobre funcionário de loja ao lado de estudantes cheios de energia! Mas quem disse que agora é tarde? Nunca é tarde para começar os estudos!

O olhar de Palas Atena que nos guia para o infinito

Julia Roberts é a professora. Porque, claro, todo mundo já teve uma professora como a Julia Roberts. Essa mulher cheia de amor e de sabedoria. Que sonha com o progresso do ser humano. Que estende a mão aos alunos com dificuldades. Que vê o diamante na pedra bruta.

Que metido!

Tom Hanks fica metidão. Passa a ler livros. “Quem é você? Você acha que é melhor do que a gente! Eu, hein! Só porque agora faiz facurdade tá todo se querendo!”

Eu me relaciono bem com aqueles que não têm medo do NOVO

Mas a juventude entende Tom Hanks. A juventude ainda não se entregou ao automatismo do cotidiano. A juventude tem curiosidade! Tom Hanks só pode se relacionar com aqueles que não têm medo de viver a vida em sua plenitude e que estão abertos para o mundo.

Na garupa da motoca

Isso não significa que Tom Hanks se distanciou dos pequenos prazeres da vida. “Dona Fessôra, a sinhoura conhece esses livro tudo aí, mas precisa sentir o ar batendo no seu rosto quando anda de motoca!”

Ah, moleque!

“Ah, moleque! Se eu soubesse que na faculdade tinha a Julia Roberts, eu ia lá também! Agora eu tô entendendo esse negócio aí de livro!”

Minha lição de vida

“Pois é, galera. Eu entrei aqui e não sabia que seria essa aventura. Que minha mente se abriria e que eu iria encontrar tantas pessoas maravilhosas. Especialmente a Fessôra Julia Roberts. Eu acho que todo mundo deveria fazer faculdade. O que eu aprendi aqui não foi só para ganhar notas. Foi uma verdadeira LIÇÃO DE VIDA.”

Monarcas & velhinhas

Ontem vi um filme, Minhas tardes com Margueritte, que traz uma velhinha absolutamente feminina e encantadora, e isso me fez lembrar de algo que aparentemente não tem nada a ver: os filmes sobre a monarquia (normalmente a britânica). Os filmes sobre a monarquia são sempre estruturados sobre a mesma questão: os monarcas são pessoas normais como eu, como você, mas enfrentam a terrível tarefa de servir de modelo para os outros. E eu venho pensando em como esse dilema é tipicamente… burguês. Certamente não sou um apologista do bem intrínseco de nenhuma classe social, mas não posso deixar de observar que há uma diferença entre admitir que isso é ou deveria ser natural, e recusar essa premissa.

Explico. Sua recusa ou aceitação, para começar, sempre se dá no plano do discurso, e só. Todos querem servir de modelo, no sentido de que todos preferem ser imitados a admitir que imitam, exceto no caso de modelos externos, alheios à experiência imediata. Eu, que escrevo peças, prefiro admitir que imito Shakespeare a dizer que imito o Fulano ao lado; a mulher que quer ser elegante prefere dizer que se inspira em Audrey Hepburn ou em Grace Kelly a admitir que, na verdade, está competindo com suas amigas. Por isso, o que está em jogo é a simples admissão de que os outros existem, e de que devemos respeitá-los, e oferecer-lhes algo de bom, em vez de presumir que os outros, se é que existem mesmo, é que devem admirar-nos simplesmente porque sim, e que se danem se não gostarem. É deveras burguês, no mau sentido (e com isso quero dizer que por outro lado há virtudes burguesas, claro), presumir que zelar pela boa opinião alheia é um fardo, e não algo natural. Aliás, é francamente infernal julgar que a perpétua consideração com os outros, no sentido de querer sempre oferecer algo de bom, é um ônus tão pesado que só pode ser justificado pelos luxos da monarquia. “Elizabeth é rainha; é rica, mas tem de se comportar o tempo todo; melhor ser como nós, que vivemos lambuzados.”

Volto à velhinha. O que ficou claro foi exatamente uma das diferenças entre o inferno e o céu. A personagem exibia a naturalidade da gentileza, a ausência de presunção de que se é merecedor de algo, de que o mundo nos deve algo porque sim. Quem presume isso nunca sentirá gratidão por nada. Mas a velhinha era delicada a todo instante, a ponto de inspirar o personagem que contracenava com ela a agir da mesma maneira. O céu começava ali mesmo, na companhia dela.

Quem lê isso não deve presumir de jeito nenhum que, só porque eu faço essas reflexões, vivo dessa maneira. Quisera eu. Mas não posso deixar de observar que é assim que eu gostaria de viver.

A opinião de Shakespeare sobre o filme da Bruna Surfistinha

Pois é, ontem vi o filme da Bruna Surfistinha. Valor cinematográfico? Os cineastas brasileiros estão conseguindo adaptar o blockbuster americano ao Brasil, o que pode, ainda que com certo atraso, ajudar a viabilizar a famosa indústria nacional. Valor antropológico? Muy grande, sobretudo porque tudo aquilo que se poderia falar contra o blockbuster se aplica a esse filme. Vamos lá.

O filme da Bruna Surfistinha me lembrou da minissérie Alice, da HBO. Vi uns capítulos e parei, porque simplesmente não conseguia me interessar. Mas as duas obras podem ser resumidas assim: servem de duplo angélico da mulher que se considera “moderna” e que me faz pensar em Herbert Marcuse. O negócio é mostrar mulheres que estão além de supostos moralismos e que continuam sendo maravilhosas, mesmo que façam coisas que não tolerariam que fizessem com elas nem por um mísero segundo.

Em Alice, a protagonista epônima (essa palavra sempre dá a impressão de estar falando de boca cheia) sai de Palmas, onde deixou um noivo que espera a sua volta rápida, chega a São Paulo para cuidar do inventário do pai e, se não me engano, em 24 horas já está na cama com um desconhecido. Creio que logo depois ela também conhece biblicamente outro homem. Fica grávida. Seu namorado, desesperado com a namorada que não volta, nem atende ao telefone, vai de Palmas a São Paulo. Descobrindo a gravidez, protagoniza a mais abjeta cena (pelo conteúdo, não pelo valor artístico, digamos) da TV brasileira, oferecendo-se para cuidar do filho como se fosse dele.

Agora, antecipando-me à leitora, será que estou observando isso porque sou um torpe moralista preconceituoso patriarcal falocêntrico? Não, não. Eu me interesso muito (foi a razão de ter começado um blog) por aquilo que em inglês chamam de double standard, o uso de dois pesos e duas medidas. Eu só queria que a leitora examinasse a mesma narrativa trocando o sexo dos personagens. Homem larga a namorada em cidade do interior, dorme com outra em São Paulo logo no primeiro dia, com mais outra logo depois, engravida uma, decide ignorar a mulher que largou nos cafundós, e ainda a dispensa quando ela aparece para dizer que está disposta a perdoar tudo. Preciso falar mais?

O filme da Bruna Surfistinha tem a mesma característica. Ou os homens são toscos porque são grosseiros, rudes, violentos, orgulhosos, ou eles são toscos porque são iguais ao namorado da Alice, sofrendo de bananice tremens.

Entendo que existe um mercado e que é isso que as mulheres querem ver. Que as pessoas buscam obras de arte e discursos para se sentirem legitimadas e confirmadas; afinal, você não lê todo dia o jornal que detesta, não é mesmo? Nem eu. Mas não creio que deva deixar de observar que todas essas obras perpetuam mentiras existenciais. As pessoas não aprendem com a experiência, elas aprendem com as narrativas que lhes são apresentadas. A mulher pode ver no cinema uma protagonista (e devo acrescentar que estou falando do filme, que meu conhecimento da Bruna Surfistinha real tende a zero) que apresenta sua carreira na prostituição como uma jornada de autoconhecimento, mas ela deve estar ciente de que os homens com quem ela gostaria de ficar podem até partilhar dessa visão generosa, ainda que não a ponto de querer casar com ela. Só que é isso que vejo cada vez mais, sobretudo em narrativas escritas por mulheres: a história de uma autolegitimação ilimitada e inverossímil. Junk food para a alma, que também precisa fazer sua academia.

Lembrando os conselhos amorosos da Rosalind disfarçada de Ganymede em As You Like It, as pessoas podem acabar achando que valem muito mais do que valem e perder a oportunidade de fazer um bom negócio. E creia: enquanto narrador, Shakespeare tem mais a ensinar do que os roteiristas de blockbusters. A própria peça tem esse título, Do jeito que vocês gostam, para gozar das inclinações do público, que deveria aprender com as lições dadas por Rosalind ao pastorzinho Sylvius, que está servindo de namorado da Alice à pastora Phoebe:

You are a thousand times a properer man
Than she a woman: ‘tis such fools as you
That makes the world full of ill-favour’d children:
‘Tis not her glass, but you, that flatters her;
And out of you she sees herself more proper
Than any of her lineaments can show her.
But, mistress, know yourself: down on your knees,
And thank heaven, fasting, for a good man’s love:
For I must tell you friendly in your ear,
Sell when you can: you are not for all markets:
Cry the man mercy; love him; take his offer:
Foul is most foul, being foul to be a scoffer.
So take her to thee, shepherd: fare you well.

A cena toda, imperdível e sem qualquer espécie de legenda, está no final do Ato III, começando após os três minutos deste vídeo, que é tirado da maravilhosa versão de Kenneth Brannagh:

Em que chamo Sofia Coppola de anticristo e digo que Transformers é melhor do que seus filmes

Há algum tempo descobri o truque de Sofia Coppola — e por isso perdi toda a vontade de assistir a seu novo filme. Na verdade, não posso mais assistir a seu novo filme, porque o assistiria com um espírito acusatório que, no caso da apreciação de qualquer obra, é uma self-fulfilling prophecy: como você acha que vai ser ruim, vai ser ruim.

Lembro que Lost in Translation tinha me deixado perturbado por ser, enfim, um filme de adultério. Os espectadores não podem ser tão ingênuos a ponto de não perceber isso, mas são. Tente mudar o sexo dos personagens: homem abandonado pela esposa profundamente envolvida com a profissão conhece menina mais nova no mesmo hotel e eles passam a andar pela cidade. Já consegui ouvir as mulheres dizendo “que safado”. A questão que fica é: por quê? Isso é importante para entender como o público se deixa manipular.

Lost in Translation é uma espécie de Brokeback Mountain heterossexual: o adultério é permitido dentro de certas condições. Uma delas é ser negligenciado pelo cônjuge. A outra é ser gay. Os dois filmes, assim como Marie Antoinette, têm a mesma premissa, que é a mais proletária de todas as premissas: como você é chato / repressor / reprimido / não liga para mim, então eu posso fazer o que eu quiser. Não devemos permitir que a busca do prazer seja sufocada por algo tão trivial e ridículo quanto aqueles compromissos que assumimos de livre e espontânea vontade perante os outros. Os outros só podem existir enquanto forem legais. Essa é a consequência nada distante de se levar a sério a piada de Oscar Wilde segundo a qual as pessoas são apenas either charming or tedious. E, se você for tedious, podemos remover o seu ponto de vista da história sem culpa nem remorso.

O truque de Sofia Coppola é o mais básico e mais cristão de todos: dar aos protagonistas os papéis de vítimas. Assim como Cristo na cruz, os pastores gays são vítima da sociedade, a esposa deixada sozinha no quarto de hotel enquanto o marido trabalha (Deus do céu, que coisa repressora e canalha, realmente o patriarcado é assassino), a princesa austríaca que só quer se divertir mas se casou com um sujeito que só pensa em chaves.

O público não percebe o truque porque gosta. Isso é, porque gosta de sentir-se especial, de estar apenas esperando para ser encontrado — everybody wants to be found, mas sem nem se inscrever para participar do Big Brother. Todo mundo se identifica com Cristo na cruz, não com a multidão que pede sua crucifixão (e no entanto somos a multidão). Mas, numa virada anticristã, na própria virada do Anticristo, essa vítima não pede que o Pai perdoe a multidão que não sabe o que faz, nem sonha com uma reconciliação. Essa vítima quer vingança, ou pelo menos sente que, “já que ele me bateu primeiro”, está livre para bater.

Em Lost in Translation, até o tédio é uma violência que justifica uma conduta, digamos, imponderada. Mais uma vez devo pedir à leitora que faça uma inversão de sexos. O que você acha de passar o dia trabalhando enquanto seu marido passeia com a Scarlett Johansson?

De certo modo, tenho a impressão de que há 30, 40 anos esses filmes não seriam possíveis porque o público ainda perceberia o aspecto trágico, isso é, o aspecto de uma disputa real que não pode ter vencedores e que impediria a identificação total com um dos lados. Nenhum desses filmes explora o famoso outro lado: Brokeback Mountain até mostra uma Michelle Williams (o personagem de Michelle Williams) contrariada, mas rústica demais para que possamos sentir simpatia por ela.

Quando o público admite com essa facilidade toda que existe uma dupla moral — a do protagonista e a do resto dos personagens, que não chegam nem mesmo a ser antagonistas, reduzindo-se a mero plano de fundo cujo único papel é agredir primeiro e assim liberar geral, eu só posso observar duas coisas: 1. estamos em apuros, na sociedade; 2. Transformers tem antagonistas reais, com motivações compreensíveis, e com isso é mais complexo do que Lost in Translation e Brokeback Mountain, além de ser mais realista simplesmente por não ter uma mentira existencial tão profunda em seu enredo.

Meu problema com Inception

Não gosto de obras em que a estrutura do enredo é obscura. O problema não é o sentido da obra ser ambíguo, veja bem. René Girard tem duas interpretações da Édipo rei, de Sófocles: uma segue a interpretação tradicional e explora a descoberta da própria culpa pelo sujeito que se julga onipotente; outra diz que Édipo foi convencido da culpa pelas pessoas à sua volta, tornado bode expiatório (essa interpretação se baseia na continuação da peça, Édipo em Colono, e no fato de que o texto mesmo de Édipo rei fala em “assassinos”, no plural, do rei Laio). Nenhuma das duas interpretações sugere que o enredo da peça seja modificado, que Édipo estava sonhando quando ouviu as notícias dadas por Creonte, quando discutiu com Tirésias etc.

Édipo rei é citada por Aristóteles como modelo por, entre outras razões, apresentar peripécias e reconhecimentos de modo inseparável. Peripécia é algo que o personagem faça; reconhecimento é algo que o personagem descubra. Quanto mais Édipo procura, mais acha. E a história vai mudando. Primeiro, é a procura da solução para a peste em Tebas. Depois, é a procura do assassino de Laio. Por fim, é a tentativa de confirmar se o assassino é o próprio protagonista. Mas, como leitor ou espectador, sei que passamos de um estágio a outro e a outro. As informações se acumulam e aumentam a pressão dramática.

Quando Inception termina, não sei a qual história assisti. Não sei quando o protagonista começou a sonhar ou quando não acordou. Não gosto da idéia de ter de assistir a um filme mais de uma vez só para ter certeza de qual foi o enredo. Discutir o sentido de uma obra dramática é excelente; mas ignorar a mera seqüência dos acontecimentos é pertubador num péssimo sentido. Não vejo problema em discutir se a Nora Helmer de Casa de boneca é ou não a primeira feminista, mas ninguém disputa que ela realmente foi ameaçada pelo funcionário do banco em que o marido trabalha.

É por essa mesma razão que não gosto de David Lynch. Todos esses filmes que trazem linhas muito borradas entre o sonho e o estado de vigília acabam soterrados pela vã tentativa do espectador de distinguir um do outro. Você poderia dizer que estou priorizando arbitrariamente o plano da vigília, como se ele fosse a “realidade”, mas estou afirmando, isso sim, que sem algum elemento convencional a inteligibilidade da obra de arte fica prejudicada. Para que uma obra signifique X e não-X, claro que sob aspectos distintos, ela tem de significar essas duas coisas claramente; é o espectador que muda de ponto de vista, não é a obra mesma que muda de natureza.

O cinema contra a felicidade

Há alguns anos, minha professora de italiano me fez ver o filme Pão e tulipas, que trata de uma mulher negligenciada pela família que decide largar tudo e viver em Veneza, sozinha, trabalhando numa floricultura. O filme mostra a mulher redescobrindo a vida, o amor, a felicidade, e realizando tudo aquilo a que todo mundo acha que tem um direito natural, concedido por Rousseau, por Joseph Campbell e pelos colunistas de auto-ajuda.

Um outro filme, um pouco anterior, mostra uma situação semelhante: Beleza americana. Um sujeito tem uma filha adolescente insuportável, uma esposa não menos repulsiva, e, fazendo chantagem com a empresa, ganha um ano de salário e decide “ser feliz”. “Ser feliz”, é claro, assim como no caso de Pão e tulipas, significa “fazer o que eu quero”. Nesse caso, porém, o sujeito é vil, baixo e mesquinho. Claro que o filme mostra que ele é mesmo – mas por que não vamos julgar que ele, o homem, é que foi amesquinhado pelas pessoas à sua volta?

Estou observando isso apenas porque subitamente percebi que um filme como Pão e tulipas que tivesse um protagonista masculino simplesmente não seria aceito pelas platéias. O homem não teria o direito de largar a família e “ser feliz”, mesmo que essa família o negligenciasse. Ele seria visto como culpado, inevitavelmente. Se ele decidisse largar sua esposa chata e seus filhos ingratos para comprar um carro novo e arrumar uma namorada mais nova, seria visto como tolo, imaturo, canalha. O filme seria considerado prova da maldita cultura machista neoliberal opressora em que vivemos.

Agora, não tenho o menor interesse em denunciar feminismos (o feminismo é suficientemente autodestrutivo), e sim em observar double standards e o que eles revelam sobre as escalas de valores e sobre as possíveis recepções de obras dramáticas. Um filme como Pão e tulipas certamente propõe que a felicidade da mulher vem antes da felicidade da família. Nenhum filme ousa sugerir que a felicidade do homem possa vir antes da felicidade da família. O estranhamento que essa premissa causaria impediria a fruição da obra.

Também não me interessa escrever apenas reacionariamente, isso é, reagindo à premissa feminista com uma premissa machista, e certamente não me interessa dar uma de superiorzinho às duas premissas, mas simplesmente observar que ambas se baseiam no dogma moderno de que a felicidade é um direito natural e que ela é obtida fazendo aquilo que se deseja. Quando as pessoas vão ao cinema, querem ver histórias em que os personagens finalmente iniciam aquela parte da vida que será uma sucessão indefinida de momentos perfeitos. Nenhum filme poderia terminar como Tio Vânia, de Chekhov, em que Sônia, jovem e já ciente da longa vida de frustração que terá pela frente, olha para o tio do título, que já tem uma vida de frustração atrás de si, e fala que, quando eles morrerem, verão as vidas tristes das pessoas na terra banhadas numa misericórdia infinita.

Eu mesmo, admito, prefiro que a felicidade comece agora, e não só após a morte. Sei que poderíamos criticar Sônia porque ela mesma não está enfatizando a alegria que se poderia encontrar em dar a vida por outra pessoa, e sim a crença de que sua vida de tristeza será compensada no céu. Mas será que foi já nesse momento, e já num autor como Chekhov, que a idéia de que a felicidade pode estar num serviço a algo ou a alguém foi considerada inadmissível?