Roberto Campos, a “Nona Lei do Kafka” e a “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”

Cláudio Ribeiro

Na segunda-feira, 17 de abril, o diplomata, economista e espadachim da ironia Roberto de Oliveira Campos teria completado cem anos de vida. A ocasião me fez, a princípio, assistir ao debate (as línguas mais escarnecedoras diriam “atropelo”) que Campos travou em 1985 com o então senador Luís Carlos Prestes, na TVE, no Rio de Janeiro – Quem ainda não viu, veja! Está disponível aqui. Depois, procurei em minhas estantes o livrinho A Técnica e o Riso (Edições APEC, 1966), comprado em um sebo no ano passado, mas do qual ainda não havia lido sequer uma linha. Encontrei-o e comecei a leitura imediatamente.

Todo A Técnica e o Riso é sensacional. Porém, vou dar destaque aqui a dois textos nele contidos: “Uma Reformulação das Leis do Kafka” e “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”, pois um completa o outro. Aliás, do primeiro, meu destaque é ainda mais específico: abordarei apenas a “Nona Lei do Kafka”. A nona, de dez. E que seja logo esclarecido, como o próprio Campos o faz: o Kafka em questão não é Kafka. Não é o Franz, mas o Alexandre, economista austríaco, que fora aluno de Mises, representante do Brasil no FMI e primo não muito distante do autor de A Metamorfose.

Kafka e Campos trabalharam juntos no gabinete de Eugênio Gudin, enquanto este foi ministro da Fazenda do governo de Café Filho, entre agosto de 1954 e abril de 1955, após Getúlio Vargas ter dado cabo da própria vida. Foi durante esse período que Alexandre, cujo espírito jocoso não devia nada ao de Roberto, passou a esboçar “Leis” encharcadas de sarcasmo, as quais permitiriam “compreender” a lógica da economia brasileira – que à época era tão ilógica quanto atualmente.  

Das dez “Leis”, a nona diz respeito à “transferência da culpa”, cujo postulado é o seguinte: “É menos importante encontrar soluções do que ter bodes expiatórios”. A título de complemento, Campos escreve: “As frustrações do subdesenvolvimento criam a necessidade de odiar e de procurar causas externas à nação, no domínio da magia e da conspiração, para explicar a nossa pobreza.” Mais adiante, podemos ler uma citação de Bertrand Russell, trazida a lume para reforçar o fato de que nós, segundo Campos,  sempre “precisamos de um bom e renovado estoque de bodes expiatórios”. Eis o texto do filósofo galês: “Não gostamos de ser privados de nossos inimigos; desejamos odiar alguém quando sofremos. Seria tão deprimente pensar que sofremos porque somos tolos; contudo, tomada a humanidade em seu conjunto, essa é a pura verdade! Por esse motivo, nenhum partido político pode adquirir força motriz exceto através do ódio: precisa expor alguém à execração.”

A necessidade de transferir a culpa a outrem, de “expor alguém à execração”, a fim de purgar problemas que são inerentes a determinada comunidade, é um fenômeno ubíquo ao longo da história. “Malhar o Judas” traz sempre uma catarse. Catarse esta que estabelece uma paz momentânea para os entreveros fratricidas. No caso especial explorado pela dupla Campos-Kafka, a “comunidade dos economicamente subdesenvolvidos” prefere culpar a comunidade das formigas, a icterícia ou o “imperialismo ianque” a reconhecer que ela própria tem parte na crise instalada.

Isto fica claro quando Roberto Campos retoma o tema em “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”.

Vejamos!

Munido da mesma verve que alinhavou a “Reformulação das Leis do Kafka”, Campos diz, logo na abertura de “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”, que após conversa com o embaixador Miguel Álvaro Osório de Almeida, ambos ficaram “preocupados em chegar a uma mensuração realista do crescimento da economia brasileira; do esforço desenvolvimentista, em suma, para usar o jargão corrente.” Esta mensuração realista teve como resultado um  “subproduto inesperado, que interessará tanto ao sociólogo e ao psicólogo, quanto ao economista: a interpretação ‘animista’ do subdesenvolvimento econômico”. Com a pena da galhofa, e em explícita referência à “Nona Lei do Kafka”, o diplomata acentua: “Em matéria de interpretação econômica continuamos nitidamente pré-lógicos. A essência da atitude animista reside em procurar sempre causas externas ao homem e à nação, no domínio da magia e da conspiração, para explicar o subdesenvolvimento.”

De novo aparece a “transferência da culpa”, a necessidade da construção de um “dentro” e um “fora”, qual uma operação xamânica que expurga o objeto/sujeito causador de malefícios ou expulsa os espíritos malignos. “A objurgação”, prossegue Roberto Campos, “é preferida à autocrítica. O ‘exorcismo’ é uma técnica normal de agir e se espera sempre que do fundo da tenda surja a figura messiânica do ‘salvador’. Dessarte, o desenvolvimento econômico é interpretado em parte como um transe e não como uma acumulação de rotinas produtivas; a proeza descontínua e não o incremento miúdo do esforço; a mágica e não a eficiência.”

E, se a economia se desenvolve, junto a ela se desenvolve também o animismo. O primeiro tipo, segundo Campos, teria sido o “animismo totemista”, isto é, “as forças que impediam o desenvolvimento nacional se corporificavam em animais e objetos”. O exemplo dado é o da sentença de Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto: “‘Ou acabamos com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil’. A noite de São Bartolomeu aplicada às formigas seria o dia da emancipação nacional. Hoje ninguém mais pensa em saúvas e continuamos subdesenvolvidos”.

Com a figura do Jeca Tatu, Monteiro Lobato, teria, de acordo com Campos, introduzido “uma nova forma de animismo. Desta vez, o inimigo era o ‘amarelão’, que solapava o esforço do caboclo nacional. Consequentemente, a purificação das tripas deflagraria um processo de desenvolvimento.” Com o avançar das décadas, os “trustes” e as “forças ocultas imperialistas” formaram o terceiro tipo de animismo que, para muitos, ainda hoje necessita de exorcismo.

A torto e a direito, ou, melhor dizendo, à esquerda e à direita, o que sempre buscamos – e não apenas nós, gente brasiliana –, desde a época mais remota até à era da macroeconomia e da globalização, é aquilo que um certo autor francês falecido há não muito tempo esboçou sob o nome de “mecanismo sacrificial da vítima expiatória, ou do bode expiatório”, em livro intitulado A Violência e o Sagrado (tradução de Martha Conceição Gambini; Paz e Terra, 1990), no qual podemos ler as seguintes palavras: “Qualquer comunidade às voltas com a violência, ou oprimida por uma desgraça qualquer, irá se lançar, de bom grado, em uma caça cega do ‘bode expiatório’. Os homens querem se convencer de que todos os seus males provêm de um único responsável, do qual será fácil livrar-se.”

Roberto de Oliveira Campos provavelmente não conheceu a obra desse autor, René Girard, mais intuiu, em seus momentos de descontração com amigos e companheiros de métier, alguns pontos que vão ao encontro do pensamento do francês. Ambos, assim como Bertrand Russell, souberam que o ódio é o mais inflamável dos combustíveis.

Ainda a crise

Há alguns dias, reagi a um texto de Luís Fernando Veríssimo que falava que os liberais não protestavam quando o Estado salvava empresas citando alguns links.

Desde aquele dia, veio o plano do bailout e veio sua (gloriosa) rejeição pelo congresso americano. Mas o festival de besteiras não acabou. Às vezes parece que estou lendo uma revista marxista dos anos 60, dizendo que “o capitalismo se encontra em sua fase final” e denunciando a ganância dos empresários. É verdade, mas falta denunciar a ganância dos políticos também… Na verdade, é justo dizer que a marca distintiva de quem não consegue sequer distinguir os fatos é dizer que essa é uma crise do liberalismo, quando é uma crise do intervencionismo, da promiscuidade entre governo e empresários.

Deixo o leitor com mais links sobre o assunto:

Free Lunch Project

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Free Lunch Project

What the Free Lunch Project is… The Free Lunch Project is an effort to recruit 20,000 dependence-loving people to move to Massachussetts or perhaps California, Venezuela, Illinois or Wisconsin. We are looking for progressive reformers, communitarian activists, and folks from all walks of life, of all ages, creeds, and colors who agree to the political philosophy expressed in our Statement of Intent, that government exists to provide jobs, and should punish those who interfere with the redistribution of wealth.

Método suicida

O método lulista de governar o país, se é que se pode falar em tal coisa, tem consistido em aprofundar as velhas políticas redistributivas, e aplicá-las em escala nacional. É a famosa “redistribuição de renda”, de que a esquerda sempre falou tanto.

Tirem as crianças da sala, porque vou ser mais explícito: com todo o respeito e todas as ressalvas devidas, isso quer dizer, de um lado, que o Governo expropria os cidadãos produtivos para sustentar os improdutivos; e, de outro, que expropria os Estados que produzem (como os do Sul e do Centro-Oeste), para transferir dinheiro para os Estados parasitas (como Norte e Nordeste).

Essa política, naturalmente, é um sucesso de público nos Estados beneficiados, e um fracasso nos Estados expropriados. Mesmo assim, como Norte e Nordeste são muito mais populosos, o fosso cavado entre as regiões do país garante ao Presidente sua significativa vantagem eleitoral.

Os números são da Folha:

“Nos Estados do Nordeste, entre 42,1% e 50% da população vive em famílias atendidas pelo Bolsa Família. Na região, 46% dos trabalhadores e beneficiários da Previdência recebem salário mínimo. Lula teve de 56,1% a 80% dos votos válidos no Nordeste, seus recordes. Na região Norte, onde o Bolsa Família atinge entre 26,1% e 42% da população e o salário mínimo, 31% dos trabalhadores e beneficiários da Previdência, Lula teve entre 44,1% e 68% dos votos válidos. Norte e Nordeste também foram as regiões onde o comércio teve um desempenho superior à média nacional. No Nordeste, cresce quatro vezes mais. Nas demais regiões (Centro-Oeste, Sudeste e Sul), a votação de Lula seguiu a mesma tendência. Nelas, o Bolsa Família atinge entre 10% e 26% dos habitantes e o salário mínimo entre 18% e 23%. Lula teve entre 20% e 44% dos votos válidos. O desempenho de Geraldo Alckmin (PSDB) seguiu exatamente o mesmo padrão, mas de modo inverso. Onde há menos programas sociais e pessoas recebendo salário mínimo, o tucano teve mais votos.”

Acontece que a geração de riquezas depende de produtores, investidores, empreendedores e agricultores sérios. O país não cresce com políticas de esmola estatal, nem com a expansão do MST.

O problema é que ninguém agüenta ser expropriado para sempre.

Assim, o aprofundamento dessa política, por mais que garanta o sucesso do messianismo lulista, vai resultar em margens de crescimento cada vez menores, a ponto de gerar a desindustrialização do país. Os produtores estão sendo desestimulados de produzir, os empreendedores estão sendo desestimulados de crescer, a indústria agrícola está sendo desprestigiada em prol de modelos rudimentares de agricultura.

A política redistributiva é absolutamente insustentável, porque sobrevive de sugar os recursos gerados por aqueles que ela mesma se encarregará de destruir.

Edmund Phelps

Leiam a resenha de David Gordon sobre o livro que o último ganhador do Prêmio Nobel de Economia publicou em 1997 (“Rewarding Work: How To Restore Self-Support to Free Enterprise”).

É fato que Phelps não é nenhum liberal clássico, mas esse seu trabalho foi usado aqui no Brasil para criticar defensores da redução dos encargos trabalhistas, como se fosse um exemplo de defesa intelectual do intervencionismo estatal no mercado de trabalho.

Gordon mostra que não é bem assim. A idéia de Phelps é a seguinte: (i) considerando que, ao contrário do que dizem os liberais, o livre mercado não garante o pleno emprego, é importante garantir que as pessoas menos qualificadas sejam empregadas e remuneradas de forma razoável; (ii) considerando ainda que aumentar o salário mínimo ou implementar programas estatais de qualificação são idéias fadadas ao fracasso, (iii) resta garantir que o Estado forneça subsídios às empresas em troca da contratação de funcionários menos qualificados.

Phelps admite que esses subsídios podem ser dados na forma de redução dos encargos trabalhistas, ou seja, das taxas que o empregador é obrigado a pagar ao Estado “em favor” de seus empregados. Ora, isso é rigorosamente o mesmo que dizer, ainda que forma transversa e quase rocambolesca, que a redução dos encargos trabalhistas implicará a redução do desemprego.

De meu anseio pelo fim da Varig

Por conta de meu trabalho de intérprete, recentemente vi uma autoridade estrangeira dizer que a “a Varig é o Brasil, e o Brasil é a Varig”. Com licença para a breguice, preferia que tivesse dito que o Brasil é a Gol, uma empresa que funciona e dá lucro. O que dói é que a Varig, num certo sentido, é mesmo o Brasil: gigante, administrada como estatal, esperando sua salvação do governo em vez de fazer o dever de casa. Talvez, se a Varig simplesmente falir, tenhamos um salutar efeito no imaginário brasileiro: a entrada da categoria “é preciso ser competente”.

O bem que o mercado faz às artes

Publicado no Instituto Millenium.

Mesmo os anti-brasileiros mais caricaturais não torcem o nariz para toda a nossa música. De alguma coisa gostam – ou admitem o valor de Villa-Lobos, ou, se são menos eruditos, têm suas canções populares de coração. Brasileiros no exterior ficam emocionados ao ouvir suas canções favoritas, porque trazem belas melodias e porque suas letras reproduzem um português vivo, verossímil, muito próximo da linguagem comum. Citamos versos de canções em conversas sem mudar de tom ou registro. A música é parte da nossa cultura, no sentido antropológico do termo. Está por toda parte.

A mesma coisa não acontece com o cinema. Um dia os filmes brasileiros talvez tenham sido mais populares, mas hoje nossos filmes antigos são esotéricos, enquanto filmes antigos estrangeiros costumam ser encontrados com facilidade nas locadoras. Há filmes nacionais contemporâneos que fazem sucesso, mas em cada lista de dez mais assistidos da semana no máximo encontraremos um. Porém, nas listas de músicas mais tocadas nas rádios, a relação é exatamente invertida: para cada nove nacionais, há no máximo uma estrangeira.

Agora vamos pensar. O cinema é subsidiado indiretamente pelo Estado. Para um filme vir a público, o cineasta precisa agradar alguns burocratas do Ministério da Cultura, de governos estaduais e municipais e alguns diretores de empresas – normalmente, de empresas estatais como a Petrobrás, que financia quase todo o cinema nacional. Todo filme pode ser um prejuízo completo: ele já foi pago pelos impostos que as empresas não pagaram. Assim, quem trabalha com cinema pode até ganhar dinheiro e fama se fizer um filme lucrativo, mas quem fizer um filme que ninguém pague para ver não vai perder nada – além de ter ganho o salário para fazê-lo, incluído no orçamento. Depois ainda ganha o direito de posar de gênio incompreendido por ter tido um filme rejeitado por distribuidores (que têm contas a pagar), exibidores e espectadores.

Já os músicos têm uma relação mais direta com o público; quase não há intervalo entre apresentação e aplauso ou vaia. Discos vendem e músicos e gravadora ganham dinheiro. Não vendem, e a gravadora leva prejuízo. É simples assim. O consumidor está endossando ou não o trabalho do artista. Por isso, não só pela genialidade dos artistas, mas também por eles se preocuparem com a platéia, é que temos um mercado de música vigoroso, efetivamente popular, e um cinema que só continua existindo por ser subsidiado.