Aposta #01

Pedro Sette Câmara, também conhecido como eu mesmo, convidado pelo pessoal do Apostos: Márcio Guilherme, Antonio Fernando Borges e Igor Barbosa. Nesse vídeo, basicamente eu tento convencê-los da importância da dicção. E, claro, falamos de Rebecca Hall.

Sorriso interior


Sorriso interior
Cruz e Sousa

O ser que é ser e que jamais vacila
nas guerras imortais entra sem susto,
leva consigo esse brasão augusto
do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
canta por entre as águas do Dilúvio!

Este foi um dos meus poemas favoritos na adolescência. Hoje, considero-o tão paradoxal, com tantas qualidades e defeitos evidentes, que não consigo nem amá-lo mais tanto, nem tirá-lo da galeria dos favoritos.

A primeira qualidade evidente do poema é sua fluência. Nenhuma frase é convoluta, antinatural, incluindo as complexidades mais comuns da escrita e até da fala. O primeiro verso da primeira estrofe é um longo sujeito seguido de duas orações. Já a segunda estrofe começa com uma estrutura de tipo tópico-comentário (“meu irmão, ele arrumou um emprego”). As pausas sintáticas e os fins dos versos coincidem amigavelmente. Sob esse aspecto, o poema é uma pequena jóia.

Todavia, começamos a olhar os adjetivos e a ver problemas. “Guerras imortais”? Você pode querer dizer que a guerra é infinita, mas a existência de guerras infinitas supõe um cosmos perpétuo e perpetuamente em guerra. Nem o dono do sorriso interior pode vencer e portanto “matar” essas “guerras imortais”? E o “sorriso justo”? O próprio ato de sorrir supõe algo além da justiça, que é a mera retribuição. Sorrir supõe generosidade, abundância. Por isso é até difícil imaginar um sorriso que demonstrasse justiça. Os “abismos carnais” também ficariam melhor sem a redundância da “triste argila”.

Esses problemas com os adjetivos denotam escolhas apressadas, guiadas pela sonoridade (essa, impecável) e pela “aura” que as palavras e expressões apresentam. Impossível não pensar em Augusto dos Anjos, que também escreveu diversos poemas ritmicamente impressionantes e que não significam rigorosamente nada. Existe a tentação de dizer que esse é um defeito brasileiro, apaixonar-se por um vocabulário sem compreendê-lo, mas me parece que essa nossa especificidade já foi imitada por outros povos. O talento acaba prejudicado pela falta de rigor do ambiente. Como costumo dizer, falta repressão. Assim como é óbvio que ninguém nunca ridicularizou muitos “poetas” de hoje, o que lhes faria um grande bem, também parece provável que ninguém tenha chamado Cruz e Sousa num canto e perguntado: “O que você quer dizer com isso, rapaz?”

Ainda assim, o que há de tão adorável neste poema? Certamente uma lembrança da adolescência, em que algumas pessoas – como eu, e normalmente homens – sonham com uma espécie de existência metafísica punk, vendo-se supremamente bons, supremamente bem-resolvidos, supremamente pacíficos, supremamente sábios, “cantando por entre as águas do Dilúvio”. Talvez não haja época da vida em que esteja mais marcada a diferença (completamente imaginária) entre “eu”, essa coisa pura e incorruptível, essa promessa de esperança, e “eles”, que já demonstraram tão abundantemente seus fracassos. Ou seja: o poema “Sorriso interior” é adolescente na medida em que é a projeção tosca de uma auto-imagem perfeita. Os adjetivos desajeitados e pedantes são redimidos pela beleza sonora – exatamente, também, como um adolescente pode ser encantador apesar (ou até por causa) de toda sua arrogância.

Crônicas da Província do Brasil

Ontem à noite fui ver o Quadro Cervantes, conjunto brasileiro de música antiga, no Centro Cultural da Justiça Eleitoral aqui no Rio. Será que eu preferia pagar um ingresso para assisti-los numa sala privada? Claro. Mas talvez essa oportunidade custe a surgir. Deixemos pois essa questão. Não tinha idéia nem de que existia um Centro Cultural da Justiça Eleitoral. Entrando no prédio, logo fiquei com a impressão de que estava no Supremo Tribunal Federal, que as grandes questões jurídicas do Brasil eram resolvidas ali. Talvez no passado; hoje, certamente não. Mas é um prédio muito bonito, que está sendo restaurado.

Subindo as escadas para o local do concerto, descubro que ele acontece numa sala de audiências, exatamente como a desta foto, só que com a pintura das paredes toda descascada. Um lado da sala tem TVs de plasma enfileiradas; placas mostram elas são os restos de alguma exposição. Do outro lado, urnas. Isso mesmo, urnas. A sala tinha janelas imensas que davam para a rua; essas ficam fechadas, porque mesmo assim o barulho já estava prejudicando a audição. Outras janelas davam para o vão do prédio e para outra sala em estado igualmente decrépito. A acústica era tão ruim que mesmo com um espaço pequeno e 30 pessoas era preciso usar microfones. O resultado é que você ouvia um conjunto à sua frente e tinha a sensação de que havia um CD daquela apresentação sendo tocado logo atrás.

Imaginem a cena. Um excelente grupo de música antiga, com aqueles instrumentos medievais, na sala de audiência de um tribunal, com restos de eleições e exposições jogados nos cantos, num prédio que só não parecia abandonado porque estava em obras. Parecia que o mundo tinha acabado e que aquela poderia ser a última vez que se ouviria Machaut.

É por isso que há anos eu digo: o realismo fantástico é uma bobagem, porque basta simplesmente descrever a realidade latino-americana para ver que ela já é surreal e absurda. E esse absurdo vem da falta de senso histórico. O abandono daquele prédio mostra o desprezo pelo passado e ecoa no presente. Parece, na verdade, que aqui o mundo nunca acaba de acabar.

O que, é claro, é desmentido por indivíduos que buscam fazer o bem –fazer bem aquilo que é bom – sem se deixar abater pelo ambiente, como os membros do Quadro Cervantes.

Amor concedeu-me um prêmio (Antonio da Silva Leite)

Lundú (Anônimo)

Now Is the Month of May (Thomas Morley)