Memórias

Um dia desses, pediram sugestões de livros de memórias no Facebook. Fiquei pensando nos meus preferidos para recomendar para o conhecido e acabei me dando conta de uma curiosidade. Em cada um, alguns lidos há quase vinte anos, há uma passagem que me ficou, bem…, na memória. Um episódio que levei pelo resto da vida, de que me lembrei nos momentos mais improváveis, que contei para amigos – “e daí, quando o fulano era pequeno, o pai dele…” – esse tipo de coisa.

Nesse espírito, fiz uma lista de alguns livros de memórias e dos trechos que me marcaram. Os que estão por perto, até tirei da estante para dar uma olhada, outros já se foram em algumas das muitas mudanças. É provável que os detalhes não sejam os mais exatos, mas a ideia é justamente ver o que ficou. A eles:

1) O afeto que se encerra – Paulo Francis.

Neste primeiro volume de suas memórias, Francis conta como acabou entrando meio de carona numa trupe de teatro que ia fazer uma turnê pelo
“Nordeste profundo”, no fim dos anos 50 ou começo dos 60 (mais ou menos como o grupo “La Barraca”, com Lorca, havia feito na Espanha trinta anos antes). O ponto que me marcou foi a descrição que o jovem jornalista e intelectual faz da experiência de estar em cima de um palco pela primeira vez, diante de uma platéia. Segundo ele, trata-se de uma coisa tão inebriante, uma sensação de se sentir tão superior aos mortais que o assistem de um patamar inferior, que ele entendeu hora como um ser humano normal se transforma numa diva, numa Norma Desmond, em alguém completamente desajustado para a vida num estágio inferior àquele do palco. Esse trecho foi uma revelação para mim e me ajudou a entender muitas coisas ao longo dos anos.

2) An Autobiographical Essay – Jorge Luís Borges.

Esse texto, escrito diretamente em inglês para sua primeira coletânea de contos publicada na Inglaterra, tem várias passagens excelentes, narradas naquele estilo “understated” do Borges. A passagem que ficou comigo ao longo dos anos (faz tempo que li isso pela primeira vez), no entanto, está em um curto parágrafo, que cheguei a pensar em traduzir aqui, mas não tive coragem. Fiquem com o inglês criollo de JLB.

Another pleasure came to me the very next year, when I was named to the professorship of English and American Literature at the University of Buenos Aires. Other candidates had sent in painstaking lists of the translations, papers, lectures, and other achievements. I limited myself to the following statement: “Quite unwittingly, I have been qualifying myself for this position throughout my life.” My plain approach gained the day. I was hired, and spent 10 or 12 happy years at the University.

Não importa que na época ele já fosse famoso, que o país fosse governado por uma ditadura militar que ele apoiava, essas ninharias idiotas que possivelmente ajudaram-no a conseguir o emprego. A questão é que a frase Quite unwittingly, I have been qualifying myself for this position throughout my life. não saiu da minha cabeça por um só dia nos vinte anos desde que a li. E faz faz vinte anos que levo pensando: “para o que eu mesmo venho me preparando ao longo da vida?”.

3) Errata, an examined life – George Steiner.

Este livro tem uma passagem que me marcou tanto quanto a anterior. Criado numa família de judeus eruditos como só os judeus do começo do século XX podiam ser, Steiner aprendeu grego aos 5 anos de idade. O que, em si, é menos impressionante do que maneira como isso aconteceu. Àquela altura, o menino já era trilíngue, e seu pai, depois de ter lhe contado em linhas gerais a história da Ilíada, resolveu ler para ele o livro 21 em alemão, na tradução de Johann Heinrich Voss. Em uma passagem cheia de tensão, Licáone se humilha perante Aquiles, que, em surto destrói, os exércitos troianos vingando-se pela morte de Pátroclo. Ao chegar nos versos que Licáone pronuncia agarrado em súplica às pernas de Aquiles – “[não] me mates; não sou de Hector irmão uterino; foi ele que abateu o caro e forte Pátroclo.” (trad. Haroldo de Campos) -, o pai de George Steiner se transforma no modelo de todos os pais do mundo (eu li o livro em uma bela edição espanhola da Siruela, mas na internet só encontrei a passagem em inglês):

At which line, my father stopped with an air of considered helplessness. What, in God’s name, happens next? I must have been shaking with excited frustration, shaking. Ah, said Papa, there was a gap in Voss’s translation, indeed in all available translations. To be sure, there was the original, Homers’ Greek, which lay open on the table, together with the lexicon and introductory grammar. Should we try and decipher the burning passage for ourselves? It was not, my father said, difficult Greek. Perhaps we could manage Achilles’ reply. And he took my finger, placing it on the appropriate Greek words. (…)

Whereupon, Achilles slaughters the kneeling Lycaon. My father read the Greek several times over he made me mouth the syllables after him. Dictionary and grammar flew open. Like the lineaments of a brightly colored mosaic lying under sand when you pour water on it, the words, the formulaic phrases, took on form and meaning for me. Word by sung word, verse by verse. (…)

Tapping my excitement (it would be sometime before I discovered that translations of Homer did not omit the most thrilling bits), Papa made a further proposal, as in passing: “shall we learn some lines from this episode by heart?”

4) Autobiographical Reflections – Eric Voegelin

Você vai lendo capítulo após capítulo da típica autobiografia de um intelectual centro-europeu do começo do século XX: o estudo, a disciplina, as aulas e amizades com pessoas cujos livros temos na estante, a capacidade ilimitada de absorver e processar conhecimento. Depois, a guerra, o medo, a tragédia do exílio, o recomeço nos EUA numa posição ridiculamente inferior aos seus méritos. Ou seja, uma biografia como centenas de outras. Aí, de repente, o sujeito, já nos casa dos cinquenta anos, dando aulas numa cidadezinha no sul profundo dos EUA, vai procurar o rabino da sinagoga local para “aperfeiçoar o seu hebraico” porque o domínio da língua é fundamental no seu grande projeto “Ordem e História”. É nesse momento que você se dá conta de que a vida do cara acontece em dois planos, esse mesmo que você leu acima e outro, superior, que você só vislumbra.

5) The Memory Chalet – Tony Judt.

O livro recolhe uma série de ensaios escritos para a New York Review of Books no período em que o historiador já tinha sido diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica. Todos são bons, bem-escritos e valem a pena. Há um, no entanto, que está em outro nível. Uma crise de meia idade leva o autor – contra os conselhos de todos os seus conhecidos – a aprender tcheco. Uma coisa leva a outra, e quando Tony Judt se dá conta, ele está envolvido com a dissidência na Tchecoeslováquia que levou à queda do comunismo e à Revolução de Veludo. A partir daí, uma porta inesperada se abre em sua carreira quando ele passa a poder estudar a história da Europa Central a partir de outro ponto de vista e, de acadêmico especializado na história das ideias francesas, Judt se transforma num superstar ao publicar “Postwar”, um dos primeiros livros que abarcam a história da Europa a partir de uma perspectiva genuinamente continental. Muito impressionante.

6) Una vida presente – Julián Marías.

O primeiro volume da trilogia do Marías talvez seja o melhor livro de memórias que já li. Há tanta coisa naqueles vinte e poucos, talvez trinta, anos. A passagem que me marcou, no entanto foi a seguinte: fim da Guerra Civil Espanhola. Madri, que resistiu até o fim, com uma bravura de arrepiar a despeito das atrocidades e baixezas que se cometeram na capital, estava prestes a cair perante o exército “nacional”. Sendo políticos, todos os políticos do primeiro escalão – covardes, canalhas, ladrões e filhos da mãe – já tinham fugido fazia um bom tempo, primeiro para Valencia, depois para Paris e para a Cidade do México. Apenas uma figura de destaque escolheu ficar, o que, naquela circunstância, era uma sentença de morte. Esse senhor se chamava Julián Besteiro – professor, político socialista e, tudo indica, um dos poucos homens honrados em toda a República. Marías era seu assessor direto, e as páginas cheias de admiração e assombro diante daquele ato de hombridade e dignidade são emocionantes. Valeriam o livro, se ele todo não fosse uma obra-prima.

7) O tabuleiro de damas – Fernando Sabino.

Eu gosto muito de andar, de dar longas caminhadas, principalmente de manhã cedo e à noite. Mas quando eu era jovem, com tempo para essas caminhadas, não tinha Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino para atravessar Curitiba ao meu lado conversando (eles cruzavam Belo Horizonte, mas ok) até amanhecer. Gostaria de ter tido, e sinto inveja do Fernando Sabino.

Curiosidades sobre diários

· O líder comunista Luís Carlos Prestes merece o título de diarista mais burro da história. A despeito de todas a precauções recomendadas pela vida na clandestinidade, Prestes insistiu ao longo da vida em manter um diário, que foi capturado duas vezes (pela polícia getulista e pelos militares na década de 60), implicando diversos militantes e operações secretas. Exasperado, Jacob Gorender, historiador e companheiro de partido de Prestes, deixou por escrito a queixa de que este possuía “vocação de arquivista”.

· Quando soube do golpe de 64, Paulo Francis entrou em pânico. Pensando que seria preso de imediato, ele fugiu às pressas e levou apenas dois livros para o seu esconderijo, um deles, a edição completa dos icônicos diários de Samuel Pepys.

· Alguns dos mais detalhados registros contemporâneos das peças de Shakespeare, tal como encenadas durante a vida do bardo, encontram-se nos diários de um sujeito chamado Simon Forman. Além de sua importância histórica – e da curiosidade de Forman ter entendido de maneira confusa o enredo de algumas peças (como Cymbeline) – o mais interessante é notar que o autor foi um conhecido médico e astrólogo que, de acordo com o depoimento da esposa, previu com exatidão o dia e horário da própria morte.

· Apesar de ter mantido um diário praticamente da adolescência até sua vida adulta, Evelyn Waugh fez questão de destruir os cadernos referentes a seus anos universitários em Oxford. A razão, supõe-se, teria sido a vida dissoluta que o escritor – posteriormente convertido ao catolicismo – teria levado, entre festas, comportamentos bizarros e notórios casos homossexuais. Tais experiências serviriam para compor o retrato da passagem por Oxford de Sebastian Flyte, personagem de sua obra maior, “Brideshead Revisited”.

· Antes de se suicidar, o escritor italiano Cesare Pavese ordenou cuidadosamente seus diários e deixou-os preparados para publicação em uma pasta endereçada a seu editor.

· A publicação de “diários” de personagens é um recurso consagrado entre autores de ficção. Um de meus exemplos favoritos é a abertura do livro Los Detectives Salvajes, de Roberto Bolaño:

2 de noviembre – He sido cordialmente invitado a formar parte del realismo visceral. Por supuesto, he aceptado. No hubo ceremonia de iniciación. Mejor así. 3 de noviembre – No sé muy bien en que consiste el realismo visceral. Tengo diecisiete años, me llamo Juan García Madero, estoy en el primer semestre de la carrera de derecho.

Larguem livros pela metade, saiam de filmes ruins. Vão por mim, funciona

Ontem à noite minha mulher e eu fomos ao cinema. O filme era tão ruim, mas tão ruim, que, passada meia hora, levantamos e fomos embora. Sairmos os dois juntos não é tão comum, mas acontece. Eu, por outro lado, só entro num cinema carregando um livro. Se o filme não engatar, levanto e vou esperá-la num café. Já li muito assim.

O mesmo com livros. Ficção, faço como cinema: se não engatar, largo sem dó. Se me parecer que o santo não está batendo naquele momento, ainda deixo o marcador de página no lugar em que parei. Se não, nem isso. No caso da não-ficção, leitura não-linear para livros aborrecidos. Sem peso na consciência, salto capítulos, vou direto aos pontos que me interessam no momento, volto anos depois e leio o resto.

O mesmo vale para qualquer outro tipo de espetáculo: já saí de peças de teatro, apresentações de música clássica e até de uma ópera (um “Don Giovanni” pavoroso; fui para casa, estava passando UFC e vi o Anderson Silva lutar).

Até os trinta e poucos, se alguém me dissesse que um dia eu seria assim, receberia uma risada na cara. Quem me converteu foi o Tyler Cowen. Seu argumento pode ser resumido na frase “you’ve already lost your money, why waste your time?”.

Não sei se essa é a melhor maneira de consumir livros, cinema, espetáculos, etc, e, dada minha condição de diletante, francamente não há como saber. O Taleb provavelmente diria que as ciências humanas possuem pouco skin in the game e eu, em particular, estou no negativo nesse quesito (*). Se o output não pode ser avaliado com um mínimo de objetividade, como julgar a qualidade do input?

Uma saída seria apelar para aquilo que o mesmo Taleb chama de Lindy effect: ficar apenas com as obras consagradas pelo tempo, num programa de leitura e releitura dos clássicos. É difícil argumentar contra essa abordagem, exceto pelo lado da curiosidade. E se numa quinta-feira perdida eu entrar num cinema e topar com um filme maravilhoso? E se o romance daquele espanhol de trinta e dois anos for uma pérola? Acho que o método do Tyler Cowen dá a tênue esperança de um equilíbrio entre cânone e serendipity. Para mim, com zero skin in the game, tem funcionado.

(*) Ok, eu escrevi um romance em que meio que entrou tudo que li, assisti, ouvi na vida. Mas como julgá-lo? Crítica? Vendas? Prêmios? De novo, acho que o Taleb diria: Lindy. Vou pedir para meus filhos ficarem atentos às reações da posteridade.

Governo não é literatura

Lembro de ver, nos anos 1990, Gustavo Dahl falando da “importância estratégica” do cinema. Para ele, Hollywood era quase o ministério da Cultura americano – e os EUA, numa frase imortal de Olavo de Carvalho, “uma espécie de União Soviética de direita”. Sem querer discutir todas as acepções do termo, nem o que isso pode significar em tempos de NSA, devo dizer que é dessa cena que me lembro quando penso no que Paulo Coelho tem dito a respeito da delegação brasileira presente na Feira de Frankfurt.

Como a imprensa tem divulgado, Paulo Coelho, o autor brasileiro mais vendido de todos os tempos (sobretudo por causa de O alquimista), recusou-se a participar da delegação por achar que outros autores com força comercial deveriam ter sido convidados.

Colocando à parte as minhas próprias inclinações pessoais, e tentando raciocinar em termos – olha a farofa na boca! – “geopolíticos”, não é difícil imaginar que, se o objetivo do governo brasileiro é aumentar a projeção da cultura brasileira, então parece boa ideia investir em autores que vendam bem. Nesse ponto, parece ter razão o coordenador da programaçao brasileira ao dizer à Folha, na matéria já linkada:

“Em sua maioria, são autores que estão despertando amplo interesse em editores internacionais, […] que vêm se abrindo para as mais diferentes vertentes da nossa literatura contemporânea, para além da literatura mais palátavel ao gosto comum.”

Se isso é verdade, é preciso dizer que Paulo Coelho se equivoca duplamente ao dizer:

“Eu duvido que sejam todos escritores profissionais. Dos 70 escritores convidados (LISTA AQUI), eu conheço apenas 20, então os outros 50 nunca ouvi falar. Presumo que sejam amigos de amigos de amigos. Nepotismo.”

São todos escritores. Na pior das hipóteses, era só colocar o nome deles no Google. E, se há escritores comerciais que ele não conhece, então talvez seja ele que esteja defendendo seus próprios amigos. O pior é que eu até simpatizo com essa atitude; com meu temperamento intempestivo, teria feito a mesma coisa.

O argumento contrário ao pró-comercial diria que autores que vendem bem não “precisam” de apoio do governo. Acho que existe um equívoco aí. Qual é o propósito da delegação? Como o governo vai medir o sucesso ou o fracasso de seu investimento? E, por favor, não venham falar que literatura não é mercadoria na feira de Frankfurt. A feira de Frankfurt é como uma Bienal do Livro (só que anual) em que agentes e editoras do mundo inteiro vão negociar direitos autorais. Não venham falar que feira não deve ter mercadoria.

Feira, mercadoria, mercado. Vejam, agora trazendo as minhas convicções pessoais, eu não vejo nada de errado com o que essas palavras indicam. O dinheiro do governo não é criado pelas musas, mas pela atividade econômica das pessoas. A minha pergunta é: se você está tirando dinheiro das pessoas para realizar um investimento, não é razoável (nem que seja como atenuante) ser prudente com o investimento? Ou o objetivo do governo não é aumentar a projeção do Brasil no exterior?

Agora, fosse eu jornalista, nem precisaria ir a Frankfurt para investigar o seguinte. Quanto dinheiro o governo gastou? E as editoras privadas, gastaram quanto? Quantos negócios foram fechados por interferência do governo, quantos por esforços privados, quais os valores? Os critérios, pois é, não são literários. São econômicos. Governo não é literatura. Talvez verifiquemos que o governo não deveria apoiar quem vende pouco porque os resultados seriam pífios, nem deveria apoiar quem vende muito porque essas pessoas realmente não precisam de ajuda…

Até o mesmo livro em Kindle é mais caro no Brasil

Em função de uma investigação pessoal sobre o duplo angélico, decido comprar O alquimista, de Paulo Coelho. Como sempre dou preferência ao formato digital, vou até a Amazon procurar o livro em formato Kindle. Eis que descubro que o mesmo livro, ou o mesmíssimo arquivo, no mesmo formato, no mesmo idioma, é vendido pela mesma Amazon a preços diferentes em países diferentes. Não sei a razão disso, não deixo de ser fã da Amazon, mas gostaria de saber de onde vem esse preço. Sei que, no Brasil, o acordo das editoras com a Amazon permitiu que elas tivessem mais controle sobre os preços dos livros – é importante dizer isso antes de botarmos a culpa de tudo no “custo Brasil”.

A versão Kindle de O alquimista custa, na loja brasileira, R$14,99:

"O Alquimista" na Amazon brasileira

Se você for até a Amazon americana, O alquimista sai a US$3,98, ou neste sábado, 18 de maio, R$8,09 – um tiquinho a mais do que a metade do preço na Amazon brasileira.

"O Alquimista" na Amazon americana

Porém, a minha conta Kindle na Amazon é francesa. Passei um tempo na França, quis adquirir títulos digitais em francês e coloquei meu endereço francês na loja. Por querer manter na França a minha conta Kindle, paguei R$12,90 – mais aqueles tantos reais que virão de imposto pelo uso do cartão de crédito internacional etc.

"O Alquimista" na Amazon francesa

Agora, por quê? É o mesmo arquivo digital, provavelmente enviado do mesmo servidor no mesmo lugar. Não precisa passar no porto, não precisa passar pelo correio. Foi o acordo com as editoras brasileiras que elevou esse preço? Ou tem questões jurídicas aí que desconhecemos?

Bolsa-Empresário Editorial

Hoje leio no Globo sobre o programa Livro Popular (o texto só aparece na edição impressa). O governo vai encomendar edições populares às editoras, que vão vender os livros “para livrarias e afins”, e estas repassarão os livros às bibliotecas. O objetivo é estimular a leitura.

Mais uma intenção nobre com resultados provavelmente adversos? Vejamos.

1. O governo jamais vai “estimular a leitura” desse jeito. O governo não tem prestígio para estimular diretamente esse tipo de coisa.

Uma medida do desinteresse por livros é o seguinte. Assim como nos tumultos recentes de Londres as livrarias foram poupadas, o mesmo já aconteceu no Brasil. Tenho muitos amigos no mercado, que sempre recordam o arrastão que passou pela na Rua Francisco Sá, aqui em Copacabana, poupando integralmente os livros que o sebo Mar de Histórias colocara na rua. Creio que a maioria das pessoas no Brasil preferiria beber um copo de detergente a ler 100 páginas. Agora contrate a melhor agência de publicidade do mundo para ver se alguém sabe como mudar essa situação.

E aqui vai, de graça, que eu tenho espírito cívico, uma pequena ideia. Se o objetivo fosse mesmo fazer uma campanha que funciona, o ideal seria fazer uma operação totalmente por baixo dos panos. Personagens de novela, atores, jogadores etc. falariam de romances e de poemas. Afinal, um jogador com um corte de cabelo ridículo tem mais chance de estimular as pessoas a mudar esse tipo de comportamento do que o governo.

Agora, eu não sei quanto ao público, mas eu mesmo tenho uma aversão instintiva a tudo que é ou que parece campanha para qualquer coisa. Sempre que dizem: “vou te convencer”, já me armo para não ser convencido.

2. Quero só ver que livros serão escolhidos pelo governo. Nosso grande agente de demanda vai enriquecer muita gente. Mas assim é o Brasil: rentista até nos livros. Não competimos pela atenção do público, competimos pela atenção e pelo dinheiro do governo. Hoje, aliás, eu tendo a crer que essa bomba só pode ser desarmada desde dentro. Mesmo que os títulos escolhidos sejam de domínio público, os editores vão ganhar rios de dinheiro. Você pode achar isso ruim, mas lembre-se de que se o governo fosse ele mesmo cuidar da impressão dos livros eles sairiam 100 vezes mais caros.

3. Por que os intermediários? Ah, sim, isso me faz voltar ao que acabo de dizer. Pagamos impostos e o governo redistribui. Para os intermediários. Amigos do rei, agora escolhidos por licitação e edital; eis a suposta diferença que dá ares de democracia a uma “aristocracia” burocrático-burguesa.

Não sei se é ilegal no Brasil as editoras tratarem diretamente com as bibliotecas (não ficaria surpreso). Mas essa escolha de intermediários para um negócio que realmente não precisa deles tem todo o cheiro do tipo favorito de redistribuição de renda praticado pelo nosso governo. Creio que esse é o sentido profundo do que disse o presidente Lula no início de seu primeiro mandato: “Neste país, a direita está no poder há 500 anos.” E ele, é claro, não foi bobo de mexer em algo tão tradicional.

É importante eu fazer um aparte aqui para aqueles que acham que estou assumindo uma postura de “neutralidade” ou sei lá o quê. Estou questionando uma estrutura, não um grupo de favorecidos. Uma estrutura perversa movida numa certa direção não deixa de ser perversa. Favorecimento de empresários do ramo editorial não é diferente de privilégios para grupos minoritários ou majoritários.

4. Se é inevitável que o governo faça alguma coisa, prefiro que dê iPads para todo mundo. Pelo menos assim as pessoas poderão vender os iPads e comprar algo que efetivamente querem.

Quando o Brasil mal chega a um arbusto

Complementando o post de ontem, vou trazer um pequeno dado para o leitor.

O blog da PublishNews vem hoje dizer que os 100 livros mais vendidos do Brasil nas primeiras 21 semanas de 2011 somaram quase 1,450 milhão de exemplares.

Já nos EUA, nas últimas 7 semanas de 2010, somente o livro Decision Points, de George W. Bush, lançado em 9 de novembro daquele ano, vendeu 2,653 milhões de exemplares (o dado está mais abaixo na página, na lista de não-ficção).

Em 7 semanas, só o ex-presidente americano vendeu nos EUA quase o dobro dos 100 títulos mais comprados pelos brasileiros no Brasil em 21 semanas.

Nada mais a declarar.

Ministério da Educação, Kulturkampf fracassado

Mais uma vez, reflexões de orelhada, quiçá uma sugestão de pauta para um artigo que não escreverei porque estou muito ocupado com coisas fantasticamente interessantes.

Semana passada surgiu a gritaria do livro com erro de concordância — “nós pega” — recomendado pelo Ministério da Educação. Tendo a crer que a ofensa nasce daquele sentimento que todo brasileiro com diploma tem de que é superior a seu porteiro porque não comete erros básicos de ortografia, de regência e de concordância. É seu tesouro de semiletrado distinguir-se dos iletrados. Os barbarismos e a prolixidade são considerações para pessoas malignas como eu, mais metidas ainda, e por isso sumamente odiadas (os porteiros são desprezados, o que é diferente).

Agora, antes de tudo, recuso terminantemente a discussão da gramaticalidade da forma “nós pega”. É gramatical em sentido linguístico, descritivo, e agramatical em sentido prescritivo, normativo. Eis o fim da discussão. Aceitar que o critério linguístico se sobreponha a outro é tão arbitrário quanto defender que se ande sem roupa nenhuma em dias de muito calor. Ou melhor: aceitá-lo é atribuir a um suposto consenso científico o papel de guia da sociedade. Os hierofantes de jaleco. Para quem curte o STF babando sobre afetividade numa questão pública, até entendo. Ao ver a figura de autoridade sancionando aquilo que até então distinguia os santos dos pecadores, você pode sentir o que eu sinto quando vejo uma bateria dentro de uma igreja. Mas o fato é que ninguém realmente recusa padres, só muda de padres, ou finge que não os tem, mas tem de qualquer jeito.

Não que não haja razão para escândalo. Mas mesmo assim, vejamos. Que é um Ministério da Educação? É Kulturkampf, projeto de unificação nacional por meio da uniformização. E hoje queremos ser democráticos e inclusivos etc, fazendo uma paradoxal uniformização pluralista. Não é a sociedade que é plural e que encontra um terreno comum numa norma gramatical, é o governo que usa a força física para acirrar essa pluralidade, para balcanizar mesmo. Mas esse projeto não nasce com o politicamente correto recente, e sim com o projeto modernista encampado por Vargas. Palhacitos mil ficam a bradar embriagados o verso em que Mário de Andrade fala da “contribuição bilionária de todos os erros”. Kulturkampf modernista é isso aí. O livro com erro do MEC é sintoma, não é a doença. Mas assim caminhamos, querendo uma tirania light (ou nem tanto), da qual só reclamamos quando ela não está a nosso favor.

Eu creio que podemos ter uma bela ideia de qual foi a contribuição bilionária de todos os erros. O Brasil tem coisa de 190 milhões de pessoas, não é mesmo? Dixit Censo 2010. Não consegui encontrar o número de pessoas com nível superior, mas diz o Guia do Estudante que em 2010 tínhamos 5,8 milhões de pessoas matriculadas na universidade. As universidades particulares proliferam, aumentam seus corpos discentes. E ainda teríamos de ver quantas pessoas completaram o segundo grau, ou ensino médio, ou o que for o nome atual daquilo que nos EUA há bastante tempo se chama high school. Diante dessas brevíssimas considerações, qual o resultado do Kulturkampf de décadas do nosso Ministério? Que o brasileiro nunca jamais se habituou a procurar livros como fontes de entretenimento ou de informação. Se você estiver disposto a ficar deprimido, convido-o a conhecer o mercado editorial brasileiro visitando a lista semanal de mais vendidos da Publishnews, que nem traz números de livros para concursos, religiosos cristãos, e espíritas. É verdade que, na lista mais recente, o primeiríssimo lugar é um livro religioso, do Pe. Marcelo Rossi, mas na verdade é um livro de uma celebridade, cuja fama vai muito além do mercado editorial, e que o volume é vendido fora de livrarias. Veja a diferença para o segundo lugar. Agora vou contar uma coisa: eu já vi uma semana em que o livro mais vendido do Brasil ficou em 853 exemplares. Isso, não faltou nenhum zero não. 853. Medite: 190 milhões de pessoas, 5,8 milhões de universitários, 853 livros.

Agora eu vou recomendar vivamente que você feche a janela e chame alguém para ficar por perto, com um leque, com um copo d’água. Os Estados Unidos têm 309 milhões de pessoas, pouco mais do que um Brasil e meio. Os universitários matriculados eram 14,3 milhões segundo o censo americano de 2009, ou pouco menos do que 2,5 vezes o número de universitários brasileiros. Vamos ver os números do mercado editorial? Tudo bem, eles vão assustar também porque vêm em dados anuais, mas veja só o quanto venderam em 2010 os livros de capa dura, os livros de capa mole, os e-books e os livros infantis. Eu nem vou colocar os dados aqui, porque comentá-los demandaria muito tempo.

Depois dessa, boa tarde.

O poder, de Bertrand de Jouvenel

Foi publicada a tradução brasileira de Du Pouvoir, e eu mesmo adoraria de ter tempo de lê-la e de comparar suas teses com as de Achever Clausewitz, que traduzi recentemente.

Apesar de correr o risco de ser pessimamente interpretado por causa da brevidade, arrisco dizer que o subtítulo da obra de Jouvenel, que fala na história “natural” do crescimento do poder, me é deveras simpático. Vezes muitas tenho a impressão de que mesmo nós liberais concordamos sem perceber com premissas que levam inevitavelmente ao crescimento do Estado. Mas isso é só uma hipótese com que venho trabalhando.

Propriedade intelectual: uma pequena meditação

Quando leio que uma empresa de informática como a Apple ou a Microsoft têm trocentas mil patentes, e que elas vivem a processar-se entre si por violações de patentes, sempre penso no seguinte. O livro que você lê é uma invenção relativamente moderna e está repleto de — olha só que termo bonito, vou encher a boca para falar — tecnologias da informação. Graças à contribuição de diversos (não sei se anônimos; os livros que me diriam isso estão guardados há alguns anos…) arquitetos da informação você pode contar com várias invenções que considera naturais, como números de páginas, um índice de conteúdo, notas de rodapé, índice analítico, índice onomástico, tipografia de fácil leitura, tamanho portátil e outras coisas que você ainda pode imaginar. Tente pensar num livro medieval: imenso, tinha de ser lido de pé; as letras eram trabalhadíssimas e por isso não facilitavam a leitura; e, pior, muitas vezes o latim vinha abreviado, como se os copistas escrevessem “vc” no lugar de “você” e “bjs” no lugar de “beijos”.

Pagar royalties para aquela gente toda, já pensou?