Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
“Soneto a Carolina”. Machado de Assis, 1906
Se me fosse pedido para apontar qual dos campos da atividade intelectual se encontra no maior estado de confusão, eu não titubearia em responder imediatamente que se trata da moderna crítica literária. A primeira razão para o pandemônio reinante, quase literal, é que o crítico de hoje é, em geral, uma pessoa que aboliu a priori a diferença entre signo e significado, entre as palavras e as coisas, entre o que as palavras dizem e as palavras mesmas. O crítico é capaz de caminhar por silogismos e não ver mais do que a expressão da psique de alguém, ou uma manifestação cultural; quando ele se depara com algo que parece lhe dizer respeito, este algo sempre lhe dá a medida de sua própria ignorância, e as coisas mais simples acabam mistificadas em abismos. O crítico, em suma, aboliu a verdade e a falsidade de sua mente; nela, só existe o texto. Ou, para tornar as coisas mais exatas, digo que a crítica literária trabalha somente com a lógica formal e com a lógica psicológica, tendo deliberadamente abandonado a lógica ontológica, porque esta é que impõe mais claramente a necessidade da existência de algo exterior ao texto e à mente do leitor.
Em meio a esta loucura toda, tive a oportunidade de estudar, no fim do primeiro grau, com uma exceção, chamada Marta de Senna, a quem devo não só o aprofundamento do meu gosto pela Literatura como também o desejo, ou a necessidade biológica, de investigar os fundamentos da Arte. Estou até hoje dialetizando comigo mesmo as palavras que ouvi naquelas aulas, em busca de definições e de princípios. A lembrança daquelas aulas, em que fui apresentado a Sófocles, Shakespeare, Machado de Assis e Graciliano Ramos, me ajudou bastante a passar pelo tormento de um ano e meio de Faculdade de Letras.
Trago estes dados autobiográficos para apresentar ao leitor a autora do livro que servirá de base para a discussão que pretendo apresentar, e para prestar uma pequena homenagem a uma pessoa a quem eu devo tanto. Pois é ela, Marta, que me dá a deixa para iniciar uma discussão a respeito de Machado de Assis, cuja obra sempre me pareceu largamente incompreendida. Não que eu mesmo a tenha compreendido; aqui, pretendo apenas sugerir bases para uma análise futura, mais profunda, mais fundamentada. Aproveito, inclusive, para convidar a própria Marta a participar desta discussão se lhe aprouver, escrevendo para o jornal.
Não vejo, pois, ponto de partida mais honroso para começar uma discussão sobre Machado do que o livro de Marta, intitulado O Olhar Oblíquo do Bruxo: Ensaios sobre Machado de Assis (São Paulo: Nova Fronteira, 1998). Trata-se de uma obra de literatura comparada que procura paralelos tanto de forma quanto de idéias entre Machado de Assis e Lawrence Sterne, o maior dos “narradores autoconscientes” ingleses.
O livro de Marta de Senna possui várias virtudes, que se tornam ainda mais virtuosas à medida que contemplamos o presente estado do mundo dos estudos literários. Primeiro, o livro não parte de nenhum pressuposto absurdo, como a Estética da Recepção (que só dá as caras mui discretamente em uma nota de pé de página); segundo, ele admite a existência do mundo físico; terceiro, ele é extremamente bem escrito, o que lhe dá ares de oásis em meio à aridez técnica pedante da crítica universitária. Além disso, Marta de Senna é bastante arguta ao demonstrar as relações estruturais que existem entre obras de Sterne como Tristram Shandy (disponível em português como Vida e opiniões do cavalheiro Tristram Shandy) e A Sentimental Journey through France and Italy (também em português como Uma viagem sentimental); coisa, aliás, que o próprio Machado nos avisou que havia. Quanto a isto não creio que ainda haja qualquer coisa a ser dita.
Contudo, se do ponto de vista estritamente literário, isto é, formal, Marta de Senna é impecável, com uma análise concisa, interessante, e de agradável leitura, do ponto de vista das idéias de Machado sua análise ainda não toca nos pontos que me parecem centrais. O que Machado queria dizer com seus escritos? Qual o sentido da obra machadiana? Ela faz sentido mesmo, ou existe apenas a busca de um sentido, ou nem mesmo a pretensão? Uma parte do mundo universitário criou uma figura de Machado como um autor pessimista, leitor de Schopenhauer, kantiano, incrédulo em relação ao intelecto e à felicidade, além de ateu. De outro lado, os seguidores de Roberto Schwarz, mais esotéricos, pressentem em Machado aquela atmosfera de “luta de classes” que para muitas criaturas é suficiente para conferir o status de utilidade pública a uma obra de arte.
Neste ponto, me parece que a melhor estratégia é agir como crítico literário, e dizer que estas análises dizem mais sobre quem as realiza do que sobre o seu objeto. E, bem ou mal, é verdade que o conhecimento dos pressupostos ideológicos ou científicos de muitas análises basta para adivinhar-lhes o alcance. O problema todo são os pressupostos. Se tento ver a pintura medieval com olhos renascentistas, perderei todo o sentido da pintura medieval. Se tento ouvir A Paixão Segundo São João de Bach com ouvidos de bossa-nova e rock’ n’ roll, não ouvirei coisa nenhuma. Mas – eis o ponto mais importante – é preciso ressaltar que estes pressupostos não tem uma equivalência. Há olhares e olhares, é verdade, mas é verdade também que estes olhares não estão quantitativamente, ou horizontalmente nivelados. Podemos simplesmente não ter um olhar suficientemente grande e perspicaz para abarcar um objeto, e pode ser também que um objeto demasiado pequeno para nosso olhar nos pareça mesquinho e tacanho.
Acredito, então, que só podemos contemplar um objeto quando estamos no nível dele ou em um nível acima dele. Além disso, acredito também que precisamos deixar que o objeto nos mostre qual é o modo correto de observá-lo, precisamos deixar que ele nos diga qual é o ponto de vista desde o qual ele se torna mais nítido e brilhante.
Mas, não tendo ainda a intuição direta do sentido da obra de Machado, e nem mesmo sabendo se este sentido está lá ou não, só resta comparar o que dizem dela com o que ela diz.
A primeira coisa que dizem de Machado é que ele é pessimista. Como diz Marta de Senna em sua introdução, “Machado propõe em Quincas Borba uma espécie de filosofia do desencanto e do abandono (a que, todavia, não falta humor), desenhada tanto em termos necessários, ontológicos, como em termos contingentes, existenciais.”
Ora, o pessimismo, na obra de Machado, não é universal, mas é antes um pessimismo quantitativo, ou um pessimismo em relação à matéria, ou seja, ele surge apenas em “termos contingentes, existenciais”. Que isto soe como o pessimismo universal para críticos materialistas como os brasileiros em geral (Antonio Candido, Alfredo Bosi & cia.), é bastante compreensível, pois o materialismo não deixa de ser uma confusão entre essência e existência; no entanto, o leitor que estiver consciente das implicações espirituais de minhas proposições concordará plenamente. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, assim começa o Eclesiastes. “Meu reino não é deste mundo”, diz o próprio Jesus Cristo – e não esqueçamos que a Bíblia começa no Gênesis e termina no Apocalipse. Aliás, nenhuma religião ou pessoa séria acredita que este mundo vá melhorar. É próprio da matéria que se disperse.
O que fazer então com o pessimismo machadiano? Ele certamente está lá, mas se dirige ao leitor e aos personagens, tipos da sociedade da época em cuja composição a caricatura se confunde com a verossimilhança. Machado sabia que aquelas pessoas – aqueles personagens – uma vez reunidas, como na trilogia Memórias Póstumas de Brás Cubas – Quincas Borba – Dom Casmurro, não poderiam fazer nada senão trabalhar para a destruição mútua. Destruição, bem entendida, da alma.
O mais nítido exemplo de dispersão da alma está em Quincas Borba. Rubião, simplório, dotado da simplicidade da pomba mas não da prudência da serpente, se deixa seduzir pelos aspectos mais superficiais da realidade, e acaba arrastado pela força centrífuga do desejo mimético (segundo a teoria de René Girard) até a loucura, ou até a dissolução de seu intelecto. Palha, por sua vez, suga seu dinheiro e assim compra sua passagem para o Nada: as batatas são o prêmio que este mundo dá aqueles que aqui vencem, trocando sua alma por um prato de lentilhas. E Sofia, por fim, só encontra deleite ao ser desejada por todos, como o Bezerro de Ouro que seduz os incautos, incapazes de perceber a importância do que existe bem debaixo de seus narizes. E estes é que são os personagens de Machado: os adoradores do Bezerro de Ouro, ou, em outras palavras, os intelectuais modernos e seus seguidores da nova burguesia. Não há como fingir que a paródia filosófica do humanitismo não seja dirigida aos iluministas e reformadores da sociedade em geral, estas pessoas que alegam as razões mais selvagens para “fazer o bem”. E, como crítico da modernidade, Machado de Assis está alinhado muito mais com os antigos, como Shakespeare e Dante, sendo que o primeiro não poupou condenações às idéias renascentistas em suas peças (ver a respeito Martin Lings: The Sacred Art of Shakespeare, Inner Traditions, 1998; saiu em português A arte sagrada de Shakespeare). O pessimismo de Machado, pois, diz respeito ao destino metafísico dos personagens, que, justamente por serem materialistas, estão condenados ao mundo dispersivo da matéria.
Mas para poder desdenhar de algo é preciso estar em outro patamar. Para poder criticar, é preciso estar acima da coisa criticada. Logo, em nome de que estaria Machado fazendo esta crítica? Eis a pergunta que caberia aos teóricos da literatura explicar. Existe o esquema do autor empírico e do autor-modelo, que na verdade se revezariam na composição da obra, com o autor empírico volta e meia aparecendo em uma brecha, voluntária ou não. Mas a maestria da obra de arte está em esconder, ou pelo menos somente se revelar àqueles que merecerem. Nesse sentido, a trilogia de Machado é o melhor exemplo que há: propositalmente ambígua, cheia de pistas falsas, de frases de duplo sentido, sem jamais se revelar diretamente.
Marta de Senna também aposta nesta qualidade da obra de Machado como reflexo da posição filosófica do autor, que não acreditaria que o intelecto fosse capaz de apreender o real. No livro, a autora chega mesmo a tomar Bentinho (ser ou não ser corno?) como modelo desta incapacidade. A construção que Bentinho faz de Capitu é na verdade uma “piada” machadiana, não a respeito da apreensão do real, mas a respeito da apreensão do real por aquele que não lhe tem amor suficiente para desejá-lo como tal, sem querer mudar-lhe em nada. Bentinho queria Capitu de maneira doente, sem aceitar sua autonomia, e por isto esta lhe escapa. É desta forma que Capitu “trai” Bentinho, isto é, Bentinho é traído pelo desejo de absolutizar o próprio olhar em frente ao mundo, preferindo o que está na sua cabeça às coisas exteriores. Ou, de maneira mais vulgar, Bentinho não passa de um masturbador que se recusa a sair desta situação. Ele teme o real e por isso prefere decidir o que aconteceu e não aconteceu, da mesma maneira que um jovem inexperiente que nunca saiu da barra da saia da mãe morre de medo de cumprimentar a menina que lhe atrai.
Capitu, por sua vez, aparece prefigurada na Guiomar de A Mão e a Luva, como a menina-mulher inteligente e decidida que não veio ao mundo para brincadeiras. Tanto é que dos dois rapazes que a pleiteiam, Estêvão e Luís Alves, ela prefere o segundo justamente pela sua capacidade de resolução. Sobre Estêvão, que fica chorando e imaginando em seu quarto qual um poeta romântico, Machado de Assis nos diz que “é próprio da pusilanimidade iludir-se a si mesma” (Cap. VIII, “Golpe”). Se A Mão e a Luva é a vitória da lucidez, da sinceridade e da resolução sobre os choramingos da paixão indecisa, Dom Casmurro apresenta o lado de Estêvão da história – o lado de quem acha bonito permanecer incapaz de lidar com os outros e com o mundo exterior que independe do sujeito que o observa.
Bentinho pode ser comparado a Hamlet mais do que a Othello, como propõe Marta de Senna. Mas eu devo adicionar que a comparação entre o jovem burguês e o príncipe da Dinamarca só pode se dar no plano da caricatura: Hamlet vai ampliando a sua consciência, vai assumindo os abismos de sua alma, até que está pronto para matar o rei Claudius, e o cumprimento de sua missão completa o sentido de sua vida. Remeto o leitor mais uma vez ao livro de Martin Lings para conferir o ensaio sobre Hamlet, que considero o mais magistral já escrito em toda a história da crítica literária. Se Hamlet vai ampliando a sua consciência e ganhando resolução, acumulando energia vital, Bentinho faz exatamente o contrário. Cada abismo assusta-lhe, cada oportunidade de crescimento é vigorosamente negada, e ele se recolhe até o extremo da casmurrice em sua alma, aceitando ser vilipendiado até por sua própria imaginação. Em suma, Hamlet é o sim e Bentinho é o não.
Se a má disposição da alma Bentinho fosse tomada como modelo da incapacidade do intelecto para apreender o real, estaríamos diante da maior tragédia de todas, presos numa diabólica tragicomédia em que Deus, a essência do real, O que nos criou, não se dá a conhecer. Ora, se Deus não se dá a conhecer de maneira direta, intuitiva (falo de intuição como a percepção de uma evidência direta e inequívoca), então só nos resta o quê? Nossos sentimentos? Mas se os sentimentos é que são valorizados, a vontade schopenhaueriana, acabou-se a filosofia, e entramos na era da moral – o imperativo categórico de Immanuel Kant, que é tão filosófico quanto minha mãe quando me mandava tomar banho porque sim. (E, se continuarmos este raciocínio, veremos que Bentinho é o típico sujeito medíocre que apóia as ditaduras, quaisquer que sejam. Tivesse nascido na Zona Sul do Rio de Janeiro cem anos depois, estaria usando um boné de Che Guevara, acreditando-se justificado pelos conteúdos da sua imaginação.)
Não: a verdadeira tragédia está em fechar as portas do Paraíso, está em, tendo recebido uma Graça, recusá-la… Somente quem conhece os dois lados pode ter compaixão por um deles; somente quem conhece a vida do espírito sabe a que infernos desce o mundo puramente material – e Machado certamente os conhecia. Tanto que se utiliza da eternidade em Brás Cubas, o ponto de partida explicitamente metafísico de uma obra que começa da consciência do nada e termina no nada.
Sem esquecer que agora já nos aproximamos do verdadeiro enigma. Como poderia Machado de Assis ironizar aqueles que desdenham do real se ele mesmo não conhecesse o real? Como inventar um tecido de pistas falsas e ambigüidades com tanta maestria se ele mesmo não conhecesse a saída do labirinto? Seria como dizer que Machado perdeu o controle de sua obra, ou que jamais o teve. A menos que decidíssemos falar de uma confusão premeditada por alguém que também não conhece outra coisa, ou que somente nela crê, e aí estaríamos diante do demônio mais burro do Inferno. Mas Brás Cubas, que nos escreve desde lá, é mais inteligente do que isto. Desde a eternidade se pode falar das coisas tais como elas são justamente porque não há impedimentos à consciência.
Machado, por sua vez, estava plenamente consciente do que fazia, e era certamente pessimista em relação ao intelecto de forma geral, mas de maneira alguma de forma universal. Ainda que sua época se afundasse em vaidades, ele soube guardar o fundo espiritual, perene, que lhe desse a segurança de navegar em águas turbulentas. No entanto, sem este fundo espiritual, só resta ao homem parasitar a matéria como um pernilongo, e desde esta posição essas águas lhe parecem turbulentas – como as que escorrem pelo ralo de um banheiro. O homem que está tomando banho, ainda que envolvido por essas águas, vê os insetos serem levados, mas ele mesmo não sai do lugar.
Como escritor, Machado decidiu dar a esta confusão a expressão mais exata que podia, tomando cuidado para que o sentido de sua obra permanecesse oculto ao leitor que não soubesse lhe dar a atenção devida, apenas a examinando segundo seus aspectos mais materiais – leia-se “econômicos”, “sociológicos”, “psicológicos”. Aqueles que analisam a obra de Machado segundo este viés também são seus personagens, seus leitores – empíricos ou modelo? Nesse sentido, o título do livro de Marta de Senna é extremamente feliz: o olhar de Machado é oblíquo e só poderá entender o que ele diz aquele cuja inteligência voar como uma flecha em direção ao ponto central. Como num koan. Aqueles que tentarem aproximar-se delas somente pelas beiradas ficarão vagando por um labirinto, à espera de um Minotauro qualquer, como o desconstrucionismo, a psicologia lacaniana ou a poesia concreta.
Creio, pois, que a única chave para a compreensão da obra de Machado de Assis é espiritual. Conhecedor da mundanidade, não se tornou mundano, como aliás sua vida recatada atesta. Condescendente com os amigos, que lhe eram muito inferiores como escritores, não teve escrúpulos ao retratar toda a náusea da vida daquela época – que foi desaguar nesta. Privilegiando o contato íntimo com sua esposa ao ruído da vida pública, Machado escolheu para si a melhor parte e deu a seus personagens aquilo que esperavam dele. Sua solidão, aliás, prefigura a maior característica do fim do século XX, que é a quase impossibilidade de encontrar vida espiritual para além da solidão da consciência individual.
Acredito que o próprio Machado nos faz uma quase confissão a este respeito no soneto que dedica a Carolina, sua esposa, por ocasião de sua morte em 1906. A maneira serena como ele encara a situação tem sua raiz nas coisas eternas, capazes de abarcar as coisas passageiras como a vida terrestre:
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
Eis aí representada a paz interior que Machado experimentava, o ponto fixo desde o qual ele podia observar o mundo vão de seus personagens. Seus “pensamentos idos e vividos” eram suficientes para resistir aos modismos bem-pensantes da época e para retratá-los com uma agudez verdadeiramente profética. Digo profética porque este é o termo que se deve usar para quem produz um Simão Bacamarte (terá Machado ouvido falar do Dr. Freud, ou Lacan?), e um filósofo Quincas Borba (símbolo de Giannotti, Chauí, Adauto Novaes e tutti quanti). A caricatura de outrora tornou-se realidade hoje.
Mas bem. Justiça seja feita, pelo menos uma pessoa tentou a análise espiritual das obras de Machado de Assis. Gustavo Corção, na apresentação do volume sobre Machado que fez para a coleção Nossos Clássicos, da editora Agir, também rejeita a perspectiva material-ceticista da obra de Machado e joga em seu lugar luzes metafísicas. A apresentação é todavia muito curta, e desconheço o aprofundamento que Corção fez, segundo me dizem, em O desconcerto do mundo.
Não sei o que Gustavo Corção pensaria do que digo, e ignoro ainda mais o que ele pensaria da proposta que agora farei. No ramo das intertextualidades, tão caro ao meio acadêmico de hoje em dia, sugiro – Corção também sugere – que procuremos os paralelos entre a obra machadiana e o Eclesiastes. São duas obras escritas em linguagem aparentemente paradoxal, e que parecem tratar da utilidade das ações terrenas do homem. De fato, eu chegaria a dizer que todos os romances de Machado me parecem uma longa meditação sobre o livro do Antigo Testamento, uma tentativa de ilustrar modernamente um texto escrito há milhares de anos. Esta possibilidade, aliás, é que vai confirmar a universalidade do texto, e não o contrário. Não se trata de “reler” ou de “reinterpretar” o Eclesiastes à luz da modernidade, mas antes de se deixar interpretar por ele, verificando a perenidade da sabedoria inspirada.