O construtor do labirinto: Machado inconstruído

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

“Soneto a Carolina”. Machado de Assis, 1906

Se me fosse pedido para apontar qual dos campos da atividade intelectual se encontra no maior estado de confusão, eu não titubearia em responder imediatamente que se trata da moderna crítica literária. A primeira razão para o pandemônio reinante, quase literal, é que o crítico de hoje é, em geral, uma pessoa que aboliu a priori a diferença entre signo e significado, entre as palavras e as coisas, entre o que as palavras dizem e as palavras mesmas. O crítico é capaz de caminhar por silogismos e não ver mais do que a expressão da psique de alguém, ou uma manifestação cultural; quando ele se depara com algo que parece lhe dizer respeito, este algo sempre lhe dá a medida de sua própria ignorância, e as coisas mais simples acabam mistificadas em abismos. O crítico, em suma, aboliu a verdade e a falsidade de sua mente; nela, só existe o texto. Ou, para tornar as coisas mais exatas, digo que a crítica literária trabalha somente com a lógica formal e com a lógica psicológica, tendo deliberadamente abandonado a lógica ontológica, porque esta é que impõe mais claramente a necessidade da existência de algo exterior ao texto e à mente do leitor.

Em meio a esta loucura toda, tive a oportunidade de estudar, no fim do primeiro grau, com uma exceção, chamada Marta de Senna, a quem devo não só o aprofundamento do meu gosto pela Literatura como também o desejo, ou a necessidade biológica, de investigar os fundamentos da Arte. Estou até hoje dialetizando comigo mesmo as palavras que ouvi naquelas aulas, em busca de definições e de princípios. A lembrança daquelas aulas, em que fui apresentado a Sófocles, Shakespeare, Machado de Assis e Graciliano Ramos, me ajudou bastante a passar pelo tormento de um ano e meio de Faculdade de Letras.

Trago estes dados autobiográficos para apresentar ao leitor a autora do livro que servirá de base para a discussão que pretendo apresentar, e para prestar uma pequena homenagem a uma pessoa a quem eu devo tanto. Pois é ela, Marta, que me dá a deixa para iniciar uma discussão a respeito de Machado de Assis, cuja obra sempre me pareceu largamente incompreendida. Não que eu mesmo a tenha compreendido; aqui, pretendo apenas sugerir bases para uma análise futura, mais profunda, mais fundamentada. Aproveito, inclusive, para convidar a própria Marta a participar desta discussão se lhe aprouver, escrevendo para o jornal.

Não vejo, pois, ponto de partida mais honroso para começar uma discussão sobre Machado do que o livro de Marta, intitulado O Olhar Oblíquo do Bruxo: Ensaios sobre Machado de Assis (São Paulo: Nova Fronteira, 1998). Trata-se de uma obra de literatura comparada que procura paralelos tanto de forma quanto de idéias entre Machado de Assis e Lawrence Sterne, o maior dos “narradores autoconscientes” ingleses.

O olhar oblquo do bruxo

O livro de Marta de Senna possui várias virtudes, que se tornam ainda mais virtuosas à medida que contemplamos o presente estado do mundo dos estudos literários. Primeiro, o livro não parte de nenhum pressuposto absurdo, como a Estética da Recepção (que só dá as caras mui discretamente em uma nota de pé de página); segundo, ele admite a existência do mundo físico; terceiro, ele é extremamente bem escrito, o que lhe dá ares de oásis em meio à aridez técnica pedante da crítica universitária. Além disso, Marta de Senna é bastante arguta ao demonstrar as relações estruturais que existem entre obras de Sterne como Tristram Shandy (disponível em português como Vida e opiniões do cavalheiro Tristram Shandy) e A Sentimental Journey through France and Italy (também em português como Uma viagem sentimental); coisa, aliás, que o próprio Machado nos avisou que havia. Quanto a isto não creio que ainda haja qualquer coisa a ser dita.

Contudo, se do ponto de vista estritamente literário, isto é, formal, Marta de Senna é impecável, com uma análise concisa, interessante, e de agradável leitura, do ponto de vista das idéias de Machado sua análise ainda não toca nos pontos que me parecem centrais. O que Machado queria dizer com seus escritos? Qual o sentido da obra machadiana? Ela faz sentido mesmo, ou existe apenas a busca de um sentido, ou nem mesmo a pretensão? Uma parte do mundo universitário criou uma figura de Machado como um autor pessimista, leitor de Schopenhauer, kantiano, incrédulo em relação ao intelecto e à felicidade, além de ateu. De outro lado, os seguidores de Roberto Schwarz, mais esotéricos, pressentem em Machado aquela atmosfera de “luta de classes” que para muitas criaturas é suficiente para conferir o status de utilidade pública a uma obra de arte.

Neste ponto, me parece que a melhor estratégia é agir como crítico literário, e dizer que estas análises dizem mais sobre quem as realiza do que sobre o seu objeto. E, bem ou mal, é verdade que o conhecimento dos pressupostos ideológicos ou científicos de muitas análises basta para adivinhar-lhes o alcance. O problema todo são os pressupostos. Se tento ver a pintura medieval com olhos renascentistas, perderei todo o sentido da pintura medieval. Se tento ouvir A Paixão Segundo São João de Bach com ouvidos de bossa-nova e rock’ n’ roll, não ouvirei coisa nenhuma. Mas – eis o ponto mais importante – é preciso ressaltar que estes pressupostos não tem uma equivalência. Há olhares e olhares, é verdade, mas é verdade também que estes olhares não estão quantitativamente, ou horizontalmente nivelados. Podemos simplesmente não ter um olhar suficientemente grande e perspicaz para abarcar um objeto, e pode ser também que um objeto demasiado pequeno para nosso olhar nos pareça mesquinho e tacanho.

Acredito, então, que só podemos contemplar um objeto quando estamos no nível dele ou em um nível acima dele. Além disso, acredito também que precisamos deixar que o objeto nos mostre qual é o modo correto de observá-lo, precisamos deixar que ele nos diga qual é o ponto de vista desde o qual ele se torna mais nítido e brilhante.

Mas, não tendo ainda a intuição direta do sentido da obra de Machado, e nem mesmo sabendo se este sentido está lá ou não, só resta comparar o que dizem dela com o que ela diz.

A primeira coisa que dizem de Machado é que ele é pessimista. Como diz Marta de Senna em sua introdução, “Machado propõe em Quincas Borba uma espécie de filosofia do desencanto e do abandono (a que, todavia, não falta humor), desenhada tanto em termos necessários, ontológicos, como em termos contingentes, existenciais.”

Ora, o pessimismo, na obra de Machado, não é universal, mas é antes um pessimismo quantitativo, ou um pessimismo em relação à matéria, ou seja, ele surge apenas em “termos contingentes, existenciais”. Que isto soe como o pessimismo universal para críticos materialistas como os brasileiros em geral (Antonio Candido, Alfredo Bosi & cia.), é bastante compreensível, pois o materialismo não deixa de ser uma confusão entre essência e existência; no entanto, o leitor que estiver consciente das implicações espirituais de minhas proposições concordará plenamente. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, assim começa o Eclesiastes. “Meu reino não é deste mundo”, diz o próprio Jesus Cristo – e não esqueçamos que a Bíblia começa no Gênesis e termina no Apocalipse. Aliás, nenhuma religião ou pessoa séria acredita que este mundo vá melhorar. É próprio da matéria que se disperse.

O que fazer então com o pessimismo machadiano? Ele certamente está lá, mas se dirige ao leitor e aos personagens, tipos da sociedade da época em cuja composição a caricatura se confunde com a verossimilhança. Machado sabia que aquelas pessoas – aqueles personagens – uma vez reunidas, como na trilogia Memórias Póstumas de Brás CubasQuincas BorbaDom Casmurro, não poderiam fazer nada senão trabalhar para a destruição mútua. Destruição, bem entendida, da alma.

O mais nítido exemplo de dispersão da alma está em Quincas Borba. Rubião, simplório, dotado da simplicidade da pomba mas não da prudência da serpente, se deixa seduzir pelos aspectos mais superficiais da realidade, e acaba arrastado pela força centrífuga do desejo mimético (segundo a teoria de René Girard) até a loucura, ou até a dissolução de seu intelecto. Palha, por sua vez, suga seu dinheiro e assim compra sua passagem para o Nada: as batatas são o prêmio que este mundo dá aqueles que aqui vencem, trocando sua alma por um prato de lentilhas. E Sofia, por fim, só encontra deleite ao ser desejada por todos, como o Bezerro de Ouro que seduz os incautos, incapazes de perceber a importância do que existe bem debaixo de seus narizes. E estes é que são os personagens de Machado: os adoradores do Bezerro de Ouro, ou, em outras palavras, os intelectuais modernos e seus seguidores da nova burguesia. Não há como fingir que a paródia filosófica do humanitismo não seja dirigida aos iluministas e reformadores da sociedade em geral, estas pessoas que alegam as razões mais selvagens para “fazer o bem”. E, como crítico da modernidade, Machado de Assis está alinhado muito mais com os antigos, como Shakespeare e Dante, sendo que o primeiro não poupou condenações às idéias renascentistas em suas peças (ver a respeito Martin Lings: The Sacred Art of Shakespeare, Inner Traditions, 1998; saiu em português A arte sagrada de Shakespeare). O pessimismo de Machado, pois, diz respeito ao destino metafísico dos personagens, que, justamente por serem materialistas, estão condenados ao mundo dispersivo da matéria.

Mas para poder desdenhar de algo é preciso estar em outro patamar. Para poder criticar, é preciso estar acima da coisa criticada. Logo, em nome de que estaria Machado fazendo esta crítica? Eis a pergunta que caberia aos teóricos da literatura explicar. Existe o esquema do autor empírico e do autor-modelo, que na verdade se revezariam na composição da obra, com o autor empírico volta e meia aparecendo em uma brecha, voluntária ou não. Mas a maestria da obra de arte está em esconder, ou pelo menos somente se revelar àqueles que merecerem. Nesse sentido, a trilogia de Machado é o melhor exemplo que há: propositalmente ambígua, cheia de pistas falsas, de frases de duplo sentido, sem jamais se revelar diretamente.

Marta de Senna também aposta nesta qualidade da obra de Machado como reflexo da posição filosófica do autor, que não acreditaria que o intelecto fosse capaz de apreender o real. No livro, a autora chega mesmo a tomar Bentinho (ser ou não ser corno?) como modelo desta incapacidade. A construção que Bentinho faz de Capitu é na verdade uma “piada” machadiana, não a respeito da apreensão do real, mas a respeito da apreensão do real por aquele que não lhe tem amor suficiente para desejá-lo como tal, sem querer mudar-lhe em nada. Bentinho queria Capitu de maneira doente, sem aceitar sua autonomia, e por isto esta lhe escapa. É desta forma que Capitu “trai” Bentinho, isto é, Bentinho é traído pelo desejo de absolutizar o próprio olhar em frente ao mundo, preferindo o que está na sua cabeça às coisas exteriores. Ou, de maneira mais vulgar, Bentinho não passa de um masturbador que se recusa a sair desta situação. Ele teme o real e por isso prefere decidir o que aconteceu e não aconteceu, da mesma maneira que um jovem inexperiente que nunca saiu da barra da saia da mãe morre de medo de cumprimentar a menina que lhe atrai.

Capitu, por sua vez, aparece prefigurada na Guiomar de A Mão e a Luva, como a menina-mulher inteligente e decidida que não veio ao mundo para brincadeiras. Tanto é que dos dois rapazes que a pleiteiam, Estêvão e Luís Alves, ela prefere o segundo justamente pela sua capacidade de resolução. Sobre Estêvão, que fica chorando e imaginando em seu quarto qual um poeta romântico, Machado de Assis nos diz que “é próprio da pusilanimidade iludir-se a si mesma” (Cap. VIII, “Golpe”). Se A Mão e a Luva é a vitória da lucidez, da sinceridade e da resolução sobre os choramingos da paixão indecisa, Dom Casmurro apresenta o lado de Estêvão da história – o lado de quem acha bonito permanecer incapaz de lidar com os outros e com o mundo exterior que independe do sujeito que o observa.

Bentinho pode ser comparado a Hamlet mais do que a Othello, como propõe Marta de Senna. Mas eu devo adicionar que a comparação entre o jovem burguês e o príncipe da Dinamarca só pode se dar no plano da caricatura: Hamlet vai ampliando a sua consciência, vai assumindo os abismos de sua alma, até que está pronto para matar o rei Claudius, e o cumprimento de sua missão completa o sentido de sua vida. Remeto o leitor mais uma vez ao livro de Martin Lings para conferir o ensaio sobre Hamlet, que considero o mais magistral já escrito em toda a história da crítica literária. Se Hamlet vai ampliando a sua consciência e ganhando resolução, acumulando energia vital, Bentinho faz exatamente o contrário. Cada abismo assusta-lhe, cada oportunidade de crescimento é vigorosamente negada, e ele se recolhe até o extremo da casmurrice em sua alma, aceitando ser vilipendiado até por sua própria imaginação. Em suma, Hamlet é o sim e Bentinho é o não.

Se a má disposição da alma Bentinho fosse tomada como modelo da incapacidade do intelecto para apreender o real, estaríamos diante da maior tragédia de todas, presos numa diabólica tragicomédia em que Deus, a essência do real, O que nos criou, não se dá a conhecer. Ora, se Deus não se dá a conhecer de maneira direta, intuitiva (falo de intuição como a percepção de uma evidência direta e inequívoca), então só nos resta o quê? Nossos sentimentos? Mas se os sentimentos é que são valorizados, a vontade schopenhaueriana, acabou-se a filosofia, e entramos na era da moral – o imperativo categórico de Immanuel Kant, que é tão filosófico quanto minha mãe quando me mandava tomar banho porque sim. (E, se continuarmos este raciocínio, veremos que Bentinho é o típico sujeito medíocre que apóia as ditaduras, quaisquer que sejam. Tivesse nascido na Zona Sul do Rio de Janeiro cem anos depois, estaria usando um boné de Che Guevara, acreditando-se justificado pelos conteúdos da sua imaginação.)

Não: a verdadeira tragédia está em fechar as portas do Paraíso, está em, tendo recebido uma Graça, recusá-la… Somente quem conhece os dois lados pode ter compaixão por um deles; somente quem conhece a vida do espírito sabe a que infernos desce o mundo puramente material – e Machado certamente os conhecia. Tanto que se utiliza da eternidade em Brás Cubas, o ponto de partida explicitamente metafísico de uma obra que começa da consciência do nada e termina no nada.

Sem esquecer que agora já nos aproximamos do verdadeiro enigma. Como poderia Machado de Assis ironizar aqueles que desdenham do real se ele mesmo não conhecesse o real? Como inventar um tecido de pistas falsas e ambigüidades com tanta maestria se ele mesmo não conhecesse a saída do labirinto? Seria como dizer que Machado perdeu o controle de sua obra, ou que jamais o teve. A menos que decidíssemos falar de uma confusão premeditada por alguém que também não conhece outra coisa, ou que somente nela crê, e aí estaríamos diante do demônio mais burro do Inferno. Mas Brás Cubas, que nos escreve desde lá, é mais inteligente do que isto. Desde a eternidade se pode falar das coisas tais como elas são justamente porque não há impedimentos à consciência.

Machado, por sua vez, estava plenamente consciente do que fazia, e era certamente pessimista em relação ao intelecto de forma geral, mas de maneira alguma de forma universal. Ainda que sua época se afundasse em vaidades, ele soube guardar o fundo espiritual, perene, que lhe desse a segurança de navegar em águas turbulentas. No entanto, sem este fundo espiritual, só resta ao homem parasitar a matéria como um pernilongo, e desde esta posição essas águas lhe parecem turbulentas – como as que escorrem pelo ralo de um banheiro. O homem que está tomando banho, ainda que envolvido por essas águas, vê os insetos serem levados, mas ele mesmo não sai do lugar.

Como escritor, Machado decidiu dar a esta confusão a expressão mais exata que podia, tomando cuidado para que o sentido de sua obra permanecesse oculto ao leitor que não soubesse lhe dar a atenção devida, apenas a examinando segundo seus aspectos mais materiais – leia-se “econômicos”, “sociológicos”, “psicológicos”. Aqueles que analisam a obra de Machado segundo este viés também são seus personagens, seus leitores – empíricos ou modelo? Nesse sentido, o título do livro de Marta de Senna é extremamente feliz: o olhar de Machado é oblíquo e só poderá entender o que ele diz aquele cuja inteligência voar como uma flecha em direção ao ponto central. Como num koan. Aqueles que tentarem aproximar-se delas somente pelas beiradas ficarão vagando por um labirinto, à espera de um Minotauro qualquer, como o desconstrucionismo, a psicologia lacaniana ou a poesia concreta.

Creio, pois, que a única chave para a compreensão da obra de Machado de Assis é espiritual. Conhecedor da mundanidade, não se tornou mundano, como aliás sua vida recatada atesta. Condescendente com os amigos, que lhe eram muito inferiores como escritores, não teve escrúpulos ao retratar toda a náusea da vida daquela época – que foi desaguar nesta. Privilegiando o contato íntimo com sua esposa ao ruído da vida pública, Machado escolheu para si a melhor parte e deu a seus personagens aquilo que esperavam dele. Sua solidão, aliás, prefigura a maior característica do fim do século XX, que é a quase impossibilidade de encontrar vida espiritual para além da solidão da consciência individual.

Acredito que o próprio Machado nos faz uma quase confissão a este respeito no soneto que dedica a Carolina, sua esposa, por ocasião de sua morte em 1906. A maneira serena como ele encara a situação tem sua raiz nas coisas eternas, capazes de abarcar as coisas passageiras como a vida terrestre:

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores – restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

Eis aí representada a paz interior que Machado experimentava, o ponto fixo desde o qual ele podia observar o mundo vão de seus personagens. Seus “pensamentos idos e vividos” eram suficientes para resistir aos modismos bem-pensantes da época e para retratá-los com uma agudez verdadeiramente profética. Digo profética porque este é o termo que se deve usar para quem produz um Simão Bacamarte (terá Machado ouvido falar do Dr. Freud, ou Lacan?), e um filósofo Quincas Borba (símbolo de Giannotti, Chauí, Adauto Novaes e tutti quanti). A caricatura de outrora tornou-se realidade hoje.

Mas bem. Justiça seja feita, pelo menos uma pessoa tentou a análise espiritual das obras de Machado de Assis. Gustavo Corção, na apresentação do volume sobre Machado que fez para a coleção Nossos Clássicos, da editora Agir, também rejeita a perspectiva material-ceticista da obra de Machado e joga em seu lugar luzes metafísicas. A apresentação é todavia muito curta, e desconheço o aprofundamento que Corção fez, segundo me dizem, em O desconcerto do mundo.

Não sei o que Gustavo Corção pensaria do que digo, e ignoro ainda mais o que ele pensaria da proposta que agora farei. No ramo das intertextualidades, tão caro ao meio acadêmico de hoje em dia, sugiro – Corção também sugere – que procuremos os paralelos entre a obra machadiana e o Eclesiastes. São duas obras escritas em linguagem aparentemente paradoxal, e que parecem tratar da utilidade das ações terrenas do homem. De fato, eu chegaria a dizer que todos os romances de Machado me parecem uma longa meditação sobre o livro do Antigo Testamento, uma tentativa de ilustrar modernamente um texto escrito há milhares de anos. Esta possibilidade, aliás, é que vai confirmar a universalidade do texto, e não o contrário. Não se trata de “reler” ou de “reinterpretar” o Eclesiastes à luz da modernidade, mas antes de se deixar interpretar por ele, verificando a perenidade da sabedoria inspirada.

Lebenswelt

Ahnest du den Schöpfen, Welt?

(Percebes o Criador, ó Mundo?)

– Schiller, “Ode an die Freude”

Todas as pessoas que querem “um mundo melhor” não têm a menor idéia de como seja o mundo real. São pessoas que tomam a essência da realidade por seus aspectos mais exteriores, travestidos de um sentimentalismo fabricado em agências de publicidade, cujos funcionários, por sua vez, têm tendências marxistas ainda que não sejam capazes de citar uma única linha de O Capital ou de qualquer outra obra de Karl Marx. Para demonstrar isto, basta lembrar que o socialismo, apesar de todas as suas dezenas de milhões de vítimas, é identificado com “o Bem”.

O que define o marxismo, assim como seu pai, o epicurismo, é justamente a falta de amor à realidade, ao mundo como tal. Não vá pensar o leitor que a minha coluna se chama “O mundo como mundo” por um desejo de brincar com palavras, mas sim por já declarar guerra a priori a qualquer tentativa de impor um conceito inventado por mim à realidade das coisas, que eram de um jeito quando eu nasci e continuarão sendo deste mesmo jeito quando eu estiver sentado no assento etéreo.

Mas eu não tenho a intenção de, neste artigo em particular, ficar esmiuçando as podridões marxistas. Quero ir muito mais fundo e mostrar que a porcaria inicial está no simples desejo de sobrepor um conceito à realidade, de inverter a ordem e tentar impedir a prática de desmentir a teoria. O desejo de transformação do mundo nasce justamente desta arrogância infantil, da pretensão de entrar na obra de Deus como co-autor, sem perguntar a opinião do autor – e, na maior parte dos casos, dizendo até que Ele não existe – associado à simples incapacidade de perceber o que de fato vem a ser o mundo. Como não se sabe o que é, por que não acreditar que uma invenção da imaginação tem o status de realidade? Afinal, para uma cabeça destas, o mundo é construído, e não dado. E aí o ódio ao burguês ou ao judeu se torna, kantianamente, uma categoria a priori na mente: se o mundo é construído pelo sujeito, e não percebido por ele, então eis justificada qualquer posição a respeito de qualquer coisa. O problema é que o mundo é dado, e não construído. Deus não pediu a ajuda de ninguém para fazer o mundo e muito menos entregou o conserto dele para qualquer pessoa, como se achasse que devia levá-lo à oficina ou algo assim. Então, antes de querer sair alterando tudo por aí, qualquer um que tenha esses surtos deveria se fazer essas perguntas, ao invés de tomar seus simples sentimentos, suas projeções, como explicações globalizantes e imperativos categóricos para tomada de ação.

Especialmente porque Deus não é um sentimento e muito menos um passo dado no escuro, como se a fé fosse um salto cheio de esperança nas trevas, uma aposta contra a gravidade do abismo. Não: a grande marca de Deus é a inteligibilidade. Deus se dá a conhecer a quem quer que tenha sinceridade e humildade para tanto, e eu digo conhecer, ter a certeza de que ele existe e é quem está por trás de tudo. Imagine só: Deus inventou o mundo e tal, e te deu cabeça para pensar pra quê? Ele seria um Deus muito sádico se nos obrigasse a apostar na sua existência e não se desse a conhecer a todo momento.

A realidade inteira aponta para Deus. O Criador deixou a sua marca em tudo o que existe. É claro que em certos momentos o Sentido nos parece mais presente do que em outros, que nem sempre se consegue manter essa tensão contemplativa máxima, mas os poucos momentos em que nos vemos frente à frente com a Beleza e a Verdade da criação divina são suficientes para resgatar todo o mal-estar da existência. Um único momento vale uma vida, e infelizmente há muitas vidas que não tiveram um só destes momentos.

Quem já viveu isto sabe bem do que falo. Não se troca a visão da rosa em meio ao caos pela arrumação arbitrária do caos. Mas, para quem nunca lançou um olhar sincero para o mundo, para quem nunca viu que Deus está no nascer do sol, nos olhos da amada, no suco de amora e nas pedras e tudo o mais, não me admira que só reste a reforma da sociedade. O que, no fundo se reduz a dizer que o reformador é bom e os reformados são maus: uma infantilidade muito da besta.

Não acredito que se possa ter um verdadeiro amor pelas criaturas sem antes amar o Criador. Quem não ama o Criador não é capaz de amar o que há de eterno em uma pessoa, mas somente seus aspectos mais acidentais e transitórios, o que, por sua vez, não configura amor nenhum, mas somente uma paixão, no sentido de pathos. E, não a amando, sendo incapaz de contemplá-la como deve (pois a contemplação está voltada para um objeto muito menor do que ela própria), deseja alterá-la, fazendo-a conformar com um ideal abstrato, que, por definição, é uma bela porcaria e infinitamente pior do que aquilo que Deus mesmo planejou. Por isto mesmo acredito que todo desejo moderno de reforma da sociedade é mal-intencionado.

A compaixão de que Jesus nos fala é justamente a capacidade de perceber o aspecto trágico da queda, o drama do eterno em meio ao transitório. Ao mesmo tempo, é somente amando este mundo na sua totalidade, com todos os seus aspectos transitórios, que se pode perceber a unidade da realidade e a presença de Deus, que, como um maestro, rege esta imensa sinfonia que é o mundo da vida.

O princípio de autoria

Se quem dá coices são os cavalos, e não a cavalidade,

do mesmo modo quem age é o homem concreto, e não a sociedade.

– Olavo de Carvalho (O Jardim das Aflições, Diadorim, pág 222)

Vou logo dizendo que escrevo este artigo porque ele me pareceu o mais urgente de todos. Vou dizer umas coisas que me parecem altamente óbvias, mas que tenho visto sendo negadas por aí com uma certa freqüência. Talvez a situação seja mais alarmante do que eu penso… Mas bem. Vamos lá.

Todo mundo que ainda não atingiu um estado verdadeiramente patológico sabe o que pensa e o que quer. Basta evocar a própria consciência por alguns minutos. Basta pensar a qual fim, efetivamente, visam suas ações. Ainda que sentimentos brotem de você como que do nada, é você, é o sujeito individual concreto quem decide o que fazer com eles. Por exemplo: eu posso ter vontade de matar alguém, mas não o faço. Ao mesmo tempo, eu posso amar alguém, mas posso escolher não demonstrar esse amor, escondê-lo… E não posso culpar o objeto do meu amor por me ignorar, a não ser que ele seja o Thomaz Green Morton (na verdade, não posso culpar ninguém porque não posso obrigar ninguém a gostar de mim). Daí aproveito logo para reiterar que não vejo nenhum problema com “preconceitos ocultos”, desde que permaneçam ocultos – afinal, como diz o autor da minha epígrafe, “preconceito oculto é algo tão letal quanto “porrada implícita”.

Por isso que você só pode ser culpado da intenção que realiza, e não da intenção latente. Quem faz Direito sabe muito bem que as pessoas respondem por seus atos e pela cadeia de fatos em que aqueles se inserem, e não pelas intenções escondidas.

Mais exemplos. Leitora: se estamos namorando, e eu traio você, o que acontece? Pode ser que eu só estivesse com vontade de dar uma saída com aquela menina e mais nada, mas o “dar uma saída com aquela menina” – ainda mais se levado às últimas conseqüências – tem uma implicação da qual eu estou perfeitamente consciente. Se a conseqüência é que você não tolera sua nova posição de corna, então eu devo arcar com ela. Você, leitora, armará um escarcéu, me trairá, dirá para todas as suas amigas que eu não presto etc. E você sabe muito bem o que me diria se eu resolvesse dizer que quem te traiu foi a minha testosterona, não é? A não ser que já exista uma ideologia de corno, sei lá. Se até maconha tem ideologia e deputado, por que não?

Bem, o fato é que as implicações reais dos nossos atos vão, muitas vezes, além da nossa consciência; e não é porque as desconheçamos que elas se tornam inexistentes. Ainda que, te traindo, não me passe pela cabeça (olha, tem pessoas que realmente não pensam. Tratarei delas depois) que você pudesse se sentir ultrajada com isso, você se sente – é uma conseqüência impremeditada. Agora há pouco mesmo eu esbarrei, no mesmo Jardim das Aflições, com uma frase de Max Weber: “a História é o conjunto das conseqüências impremeditadas das ações humanas”. No entanto, o sujeito causador está lá: quem te traiu fui eu porque quem saiu com a outra fui eu. A responsabilidade, ou a possibilidade de responder por algo, o princípio de autoria, está tudo aí.

Admito um contra-argumento: mas e se a pessoa não estiver consciente do que faz? É bem verdade que há pessoas com um coeficiente gigantesco de inconseqüência. Porque tem gente que ou não sabe o que faz ou sabe muito bem e está mal-intencionado. Os socialistas, por exemplo. Após mais de cem milhões de mortos (mais que todas as guerras do século), alguém que se pronuncie a favor disto só pode ser idiota ou canalha. E quem defende alguma posição socialista numa universidade católica e “pontifícia” (o Capeta sabe o que ela tem de pontifícia) só pode ser mais idiota ou mais canalha ainda.

Mas voltando ao nosso conturbado romance, leitora: se eu traio você, só há essas duas possiblidades. Ou eu te traí sabendo o que fazia, e sou canalha, ou eu te traí sem saber, e sou idiota, inconseqüente (aliás, quem aceitar a desculpa de que o outro “não sabia o que estava fazendo” é mais idiota ainda, merece ser traído mesmo). Numa palavra melhor: inconsciente. E não há mal maior do que a falta de consciência.

Que dizer, então, das pessoas que não têm a menor consciência do que fazem? Que se deve ter alguma pena delas, e nunca achar que elas têm algo importante para ensinar (a não ser muito acidentalmente, e mesmo assim é melhor duvidar um pouco). Porque, se a conexão entre autor e ato e inevitável, por outro lado a conexão entre ato e consciência do autor não é tanto. O problema todo é que hoje em dia eu vejo muita gente que prefere fazer a apologia da irresponsabilidade, ou seja, preferem dizer que não são senhores de si mesmos, preferem sempre apelar para causas externas, como se fossem coitados cerceados por intransponíveis limites que o mundo lhes impõem. Ora, quem nega a culpabilidade é coitado, é objeto inerme, fantoche nas garras de forças falsamente superiores que acabam se tornando superiores mesmo. E, amigo, se um pedaço de chocolate é mais forte que você, ah, você está é mal…

Pode até ser que a maioria se enquadre nisto aí: a maior parte das pessoas tem alma de escravo, já dizia o bom Aristóteles. Querem atribuir a outro suas responsabilidades, querem alegar apenas estarem “cumprindo ordens” ou que são “vítimas” de alguma coisa: do tesão irrefreável, da gula, do instinto assassino, do sistema, da família opressora… Essa gente merece um governo totalitário mesmo, merece o código de trânsito. Querem ser apenas animais altamente amestrados mas com a liberdade de serem animais, isto é, de dar vazão a todos os instintos. Tentar chegar a ser humanos, jamais.

Política para quem precisa de política

Quando fui entrevistado por Cláudio Cordovil, um ser (ou talvez um nada, que eu percebi que ele gosta de Sartre) muito estranho do Jornal do Brasil – aquele que suja a mão (e aí você suja as paredes, os pratos, tudo) – , ele me disse que “quando você acorda de manhã, isto já é um ato político”. Na revista República tem um outro sujeito dizendo que, com a vinda do U2, um velho “axioma” estaria sendo “reatualizado”: o que diz que “todo ato é político”.

Examinarei cuidadosamente estas proposições. Primeiro, por axioma deve-se entender uma verdade auto-evidente, de intuição imediata e que prescinde de prova. Por exemplo: a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos. Daí creio que, através de uma comparação, se possa concluir obviamente que a idéia de que “todo ato é político” não é uma verdade indubitável – muito pelo contrário. Além disso, um axioma não precisa ser atualizado, por ser um universal; não importa o que aconteça, ele paira indiferente à História. Há mil anos a linha reta era o caminho mais curto entre dois pontos e o será daqui a mil anos da mesma forma.

Ora, a política pertence ao reino das coisas relativas, e não das absolutas. Política presume uma sociedade com um certo tipo de organização e com um certo grau de complexidade; além do que, se restasse somente um ser humano sobre a terra, ele não precisaria de nenhuma política. No entanto, os axiomas todos restariam incólumes.

Só posso inferir, pois, que a idéia de “todo ato é político” como um axioma é fruto de uma mente que já se desligou de qualquer noção de absoluto, e que colocou um sentido relativo no lugar de um sentido universal. No caso, este é o velho “sentido da História”, noção que passo a examinar.

A História, fruto das ações humanas premeditadas e de suas conseqüências impremeditadas, na verdade nem faz sentido nem não faz sentido; seria como se os gatos latissem. Uma coisa só pode fazer sentido para um indivíduo humano, e nenhum indivíduo humano vive toda a História. Se supuséssemos um indivíduo que vivesse toda a História, ele seria hipotético, e assim o sentido que este ser hipotético daria a História seria igualmente hipotético. E, para piorar, só podemos supor a respeito do passado, já que o presente está continuamente se transformando em passado e o futuro ainda não chegou. Nada impede que o futuro venha e desminta por absoluto a hipótese que se supõe ser o sentido da História.

A História só poderia, então, fazer sentido do ponto de vista daquilo que restará após os tempos, ou seja, Deus. Nesta perspectiva, todo ato que não seja religioso é que não faz sentido. Porém, para uma ideologia atéia, o sentido terá que ser dado por outra coisa; e fora de Deus e dos princípios metafísicos (lembrando que Aristóteles chamava sua Metafísica de Teologia), tudo é relativo. Agora, por que cargas d’água escolheram, entre as coisas relativas, a política e não os pães de mel para dar sentido último à vida humana, é coisa que me escapa (ou não escapa: o desejo mal disfarçado de poder é que leva as pessoas a afirmar as maiores bobagens com a maior pompa e descaramento).

Ou seja: se “todo ato é político”, então a política tem ou deveria ter o estatuto de uma religião, de uma ciência metafísica, portadora de verdades universais que governam nossos atos. Se assim é, o homem pretende ser Deus e enxergar ou mesmo determinar o tal “sentido da História”. A diferença é que as verdades universais são verdade quer se queira quer não: dois mais dois dá sempre quatro, a linha reta é mesmo o caminho mais curto entre dois pontos… Já as “verdades” da política são verdades relativas: só são verdade dadas certas condições que variam segundo o tempo e o espaço.

Por exemplo: a noção de Estado. Nem todas as sociedades humanas tem um Estado; só é possível entender o que seja Estado ao se referir às condições específicas dos povos europeus. Outro exemplo melhor ainda: a noção de direitos. Um direito é na verdade o símbolo de uma negação. Somente quando o indivíduo está privado da possibilidade de fazer algo, ele se

questiona sobre o direito dele a fazer aquilo. Ninguém ainda se questiona sobre o direito de respirar, mas o Estado brasileiro já questiona o direito que o indivíduo tem ao seu cadáver. Veja lá se alguma tribo indígena tem uma palavra da sua língua para direito, ou se existe este termo em alguma sociedade não-européia (ou europeizada). A noção de direito é uma noção inventada por brancos europeus e que só faz sentido dentro desta cultura.

O grande problema, pois, em dizer que “todo ato é político” está no seguinte: a politização de tudo pretende dar um status de absoluto ao relativo e um status de relativo ao absoluto. As leisda aritmética e da geometria e a Metafísica são absolutas; elas são independentes da vontade humana, porque elas sim são o próprio sentido do real. Mais uma vez: dois mais dois dá quatro, Deus existe, a linha reta é o caminho… No entanto, a moderna “ciência” social – dos lados da direita e da esquerda, porque afinal são apenas variations on a theme: uma quer o livre mercado, a outra quer o mercado na mão do Estado – diz que a Metafísica é superstição, um produto da cultura; e diz que todo ser humano tem direito a tudo.

É a confusão entre o essencial e o existencial : todos somos humanos, temos cérebro, fígado, uma alma imortal, a possibilidade da linguagem… Mas, ao contrário do que pretende a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Revolução Francesa, nem todos são iguais perante a lei. Todos sabem, por exemplo, que ter dinheiro no Brasil significa ter uma certa segurança quanto à possibilidade de ser criminalmente condenado. Até porque, na hipótese mais simples, quem tiver mais dinheiro poderá contratar um advogado melhor.

No fundo, este é o fruto do “esquecimento do eterno”(nas palavras do poeta José Enrique Barreiro). Uma vez que se perdeu o Sentido, tudo vai para o brejo. O homem que não acredita em Deus já acredita em tudo, e, perdido o senso da realidade(ou, como querem muitos, na universidade principalmente, a realidade nem existe. É uma desgraça que a realidade seja tão confundida com a nefasta “coisa-em-si” de Kant), cada um quer que a sua ficção pessoal – a ideologia – determine o sentido das coisas. E é justamente deste desejo diabólico de substituir a realidade por uma ficção – “sereis como deuses”, disse a serpente no Éden – que nascem os Hitlers com suas idéias de raça pura e os Lênins e Stálins com a idéia de que tudo deve obedecer ao Estado Revolucionário Socialista, internando como loucos os opositores e tantas atrocidades que o próprio Hitler dizia aprender com ele.

Posso concluir, por fim, que a idéia de que “todo ato é político” é fruto de uma gigantesca patologia cultural, patologia esta que se realiza obviamente na mente de vários indivíduos. Pretender que “tudo é relativo” conduz imediatamente à idéia de que não há Bem ou Mal, e por conseqüência ao desejo de fazer com que alguma idéia – relativa – que não tem preponderância sobre outra, como a verdade tem sobre a mentira, passe a governar os aspectos da existência. Afinal, se não existe verdade, nem um Deus que julgue, nada impede que alguém se sinta infantilmente legitimado – segundo a sua própria moral pessoal, agora elevada ao status de moral universal – a matar, fazer experiências, manipular pessoas através da “educação”, da propaganda… Infelizmente, isso é o que acontece numa época que se crê a mais esclarecida de todas.

Breve relato de um atentado à inteligência

Texto de palestra proferida em Porto Alegre, 05/01/98

Caros senhores, a julgar pelo noticiário dos últimos dois meses da imprensa carioca, este rapaz que se encontra agora à sua frente é um perigoso fomentador do ódio, um perseguidor das minorias oprimidas, uma grave ameaça ao Estado democrático. Parece descabido, ou até mesmo absurdo? Concordo. Mas vejamos os fatos.

Sérgio Coutinho de Biasi, Pedro Sette Câmara e José Roberto de Barros são três amigos meus, que estudavam comigo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Conversávamos muito, os quatro, sobre uma estranha homogeneidade do discurso imperante na universidade. A doutrinação “politicamente correta” parecia ter penetrado a fundo no meio em que estávamos e isso nos parecia preocupante, por razões que exporei mais à frente.

Tanto falamos – nesse e em diversos outros assuntos de filosofia, ciência, poesia, etc. – que resolvemos publicar nossas opiniões. Fizemos um jornal chamado “O Indivíduo”.

E aí vem a primeira pergunta: por que o título?

Em primeiro lugar, devo esclarecer que não se trata de defender o individualismo egocêntrico. Infelizmente, a maioria das pessoas vê o mundo segundo as categorias mais infantis e acha que se falamos em indivíduos é porque somos individualistas e se falamos em coletividades somos altruístas.

Na verdade, a nossa idéia é semelhante à expressa no seguinte trecho de Ortega y Gasset (1):

Nadie puede vivirme mi vida; tengo yo por mi propria y exclusiva cuenta que írmela viviendo, sorbiendo sus alborozos, apurando sus amarguras, aguentando sus dolores, hirviendo en sus entusiasmos.

Ora, cabe ao próprio ser humano a responsabilidade por todos os seus atos, inclusive os atos de consciência. Quando dizemos que a juventude ‘pensa’ de determinado jeito, estamos usando uma metáfora, pois quem pensa é cada jovem, individualmente, não a coletividade. Quem deve se responsabilizar pelo que estou dizendo agora sou eu, não a juventude. Se eu dissesse que falo em nome da juventude, estaria falando em sentido figurado, pois em última análise só posso falar por mim mesmo (2). O todo social não tem consciência, nem responsabilidade moral. A consciência surge no próprio indivíduo, da unidade do corpo biológico.

Por isso falamos em indivíduos: é muito vago falar “para a juventude”, “para a classe social”, “para a comunidade acadêmica”. Falamos, sim, para cada um em particular, conclamando cada membro das coletividades a examinar a própria consciência, a fim de questionar as idéias a que tem aderido. Trata-se de um diálogo de consciência a consciência, entre seres humanos que se reconhecem como portadores de conhecimentos pelos quais têm de se responsabilizar não perante o consenso acadêmico ou perante a juventude, mas perante a própria consciência. Perante aquele fundo insubornável de que falava Ortega y Gasset, onde o homem admite para si mesmo, entre quatro paredes, o que não tem coragem de admitir em público.

O nosso convite é para um exame dessa natureza. Para um questionamento daquilo que é dado como certo e inquestionável pela mídia e pela intelligentzia.

Claro que não se trata de individualismo, mas muito pelo contrário: como querer montar uma coletividade verdadeira se não respeitamos a individualidade de cada um? Como querer falar em coletividades que pensam por si só, como se os indivíduos que as compõem não fossem o mais importante? É só do entrecruzamento de consciências, do emaranhado de vidas psíquicas diversas, que pode surgir a coletividade verdadeira.

O individualismo egocêntrico reduz cada indivíduo a uma entidade auto-suficiente sem maior interesse para o resto do mundo. Não é disso que estamos falando. Estamos falando contra o coletivismo inquisitorial, que pretende que todos sigam uma determinada idéia como se ela fosse um dogma inquestionável. Estamos falando contra a adesão irracional a uma idéia sem o devido exame. Somos, enfim, contra o espírito de rebanho de que falava Nietzsche, tendência natural do ser humano. Não queremos tratar com gado: queremos tratar com indivíduos conscientes.

Que não se tome essa “consciência” no sentido político. Não falamos de indivíduos conscientes da mesma forma que falam as esquerdas. Não se trata de conscientizar ninguém da sua condição social ou coisas desse tipo, mas de levar cada um a admitir para si mesmo aquilo que sabe, a analisar as idéias que diz professar à luz do próprio eu, ou do fundo insubornável de que falei acima.

Mas voltemos aos fatos. Com essa linha editorial, francamente avessa a ideologias e ações políticas, o jornal foi sendo elaborado. Cada um de nós escreveu um artigo sobre o tema que lhe conviesse.

O Sérgio escreveu um ensaio defendendo um estreitamento dos laços entre ciência e filosofia; o José Roberto fez um artigo sobre três projetos de lei da deputada Marta Suplicy; eu fiz um artigo sobre Canudos, que questionava o posicionamento ideológico que nubla a mente dos nossos historiadores; e o Pedro trouxe um artigo humorístico ao estilo Agamenon Mendes Pedreira (3), um poema lírico-intimista e um ensaio sobre a Semana de Consciência Negra realizada na PUC algumas semanas antes do jornal.

Não vi nada de perigoso ou estranho em nenhum dos textos, concordando em geral com suas opiniões, com algumas ressalvas ao texto do Sérgio, que me parece excessivamente cientificista, e outras ao do José Roberto, que apresenta argumentos neo-darwinistas. Apesar das ressalvas, não sugeri qualquer mudança. Não me agrada a idéia de mexer em textos alheios, até pela minha própria defesa da individualidade. O nome do jornal não era “O Indivíduo”? Então, que se respeitasse a individualidade de cada um. Eu jamais me arrogaria o papel de censor.

Mesmo assim, ao ser lançado, o jornal causou escândalo. Muitos pareciam se sentir no direito de se arrogar esse papel…

Duas horas depois do início da distribuição do jornal, no dia 19 de novembro, fomos cercados por mais de cinqüenta pessoas que berravam, enfurecidos: NAZISTAS! FASCISTAS!

Todos negavam o nosso direito de fazer um texto humorístico sobre o movimento artístico de alguns alunos da PUC, a “Cambralha”. Todos diziam que o texto sobre a consciência negra era racista. Chegaram a querer colocar contra nós os seguranças da PUC, que são negros, dizendo para eles que defendíamos a raça pura e o extermínio dos negros. Ainda bem que os seguranças não lhes deram ouvidos, pois foi só graças à ação deles que saímos de lá vivos.

Fomos levados a um representante da vice-reitoria comunitária. Ele fez uma leitura dinâmica do jornal, supervisionada por dois representantes da Cambralha, circulou com pilot fluorescente o editorial, os artigos do Pedro e o artigo do José Roberto. Na capa do jornal escreveu: Recomendo Apreensão.

Dito e feito. Alguns minutos depois a segurança tinha ordens expressas de recolher todos os exemplares de “O Indivíduo”. Enquanto isso, a multidão que berrava contra nós e ameaçava queimar os jornais junto com nossos corpos crescia.

O raciocínio é simples: se um sujeito ameaça te matar, isso é uma bobagem. Agora, se um sujeito armado ameaça te matar, é bom você começar a se preocupar. Assim era a situação: o grupo enraivecido de cem alunos ameaçando matar três. (4)

Num determinado momento, um sujeito cuspiu no rosto do Sérgio. Um pouco mais tarde, duas meninas cuspiram no rosto do Pedro, além de outra pessoa lhe ter acertado um soco no rosto, quando ele estava entrando no táxi para sair da PUC. Vale lembrar que essa saída se deu por caminhos tortuosos, pois os seguranças dividavam da possibilidade de nos manter vivos se continuássemos lá dentro. Saímos eu e o Sérgio num táxi e o Pedro em outro, pois tinha se separado de nós para fazer uma prova.

Pouco antes de irmos embora, eu e o Sérgio fomos chamados para uma conversa com o vice-reitor comunitário. Ele estava visivelmente irritado, confessou que não tinha lido o jornal e saiu-se com a seguinte pérola:

— Parece que vocês falaram mal da semana de consciência negra e isso não pega bem, né? Além disso, estamos numa universidade católica…

Nesse momento quem se irritou fui eu, um sujeito normalmente calmo. Respondi que os católicos éramos nós e não aquela turba que saía pela PUC berrando palavras de ordem marxistas. Nesse momento exato, estavam todos reunidos fazendo para nós a saudação nazista.

O vice-reitor não me respondeu e negou veementemente qualquer possibilidade de termos uma audiência com o reitor:

— Ele está analisando o jornal e vocês serão avisados de qualquer providência administrativa a ser tomada contra vocês.

Depois dessa, só nos restava mesmo tomar um táxi.

Aí é que a história começa na imprensa. Enviei o material para o IEE, pois me disseram que ele seria distribuídos aos senhores. Não sei se isso aconteceu, logo, aí vai um breve resumo:

Quem logo assumiu a nossa defesa foi o professor Olavo de Carvalho, cujo seminário de filosofia eu e o Pedro freqüentamos. Ele logo preparou um artigo e enviou a “O Globo” e à “Folha de S. Paulo”. A resposta do diretor de redação do Globo:

— Ah, é aquele jornalzinho nazista?

Já a “Folha” publicou uma nota do Olavo na sua edição de domingo daquela semana, relatando o caso como perseguição à liberdade de expressão.

Acontece que, antes disso, na quinta-feira, dia 20, o “Jornal do Brasil” publicou uma notinha que falava em ‘cenas de racismo na PUC-Rio’. No dia seguinte, o assunto ganhava chamada na primeira página do JB e uma matéria em que o reitor da PUC dizia o seguinte:

O jornal mostra um individualismo absoluto e um desprezo pelo coletivo, a começar pelo nome. As posições são reflexo do individualismo de hoje, onde o ser humano perde o sentido de solidariedade.

É difícil descrever o meu espanto.

O vice-reitor dizia, na mesma matéria, que a melhor resposta a nós foi “o próprio repúdio dos colegas”.

Mas não foi tudo: no dia seguinte, a reitoria anunciava, no mesmo JB, que ia nos punir:

As vice-reitorias Acadêmica e Comunitária tomarão as medidas necessárias para que tais fatos não se repitam e para que os autores sejam responsabilizados por sua conduta.

Mas não, isso não foi uma declaração a um jornal. Isso é um trecho de uma carta distribuída via correio a toda a comunidade da PUC, na qual o reitor dizia coisas como:

Os redatores se apresentam como campeões do individualismo e atacam tudo que lhes desagrada. Não quero negar a legítima liberdade de expressão e o pluralismo de opiniões. Porém, não posso concordar com o individualismo que ignora a solidariedade humana e o sentido cristão de fraternidade. Além disso, é completamente inadmissível que, com argumentos falaciosos, se veicule o ódio, o desprezo e a injúria direta contra os que pensam ou agem de modo diferente dos autores do panfleto.

Notaram a contradição? Notaram que ele fala em liberdade de expressão e logo depois nega que nós possamos exercer a nossa? Mais adiante, ele nos acusava de ter ultrapassado as fronteiras do delitivo – em português claro, de cometer um crime. Tanta burrice, tanto fanatismo, tanta incompreensão, tanta malícia no reitor de uma das principais universidades do Rio de Janeiro? As coisas andam mal na educação desse país.

Mas voltando à imprensa: no domingo, dia 23/11, o JB, por algum milagre, resolveu respeitar nosso direito de resposta e publicou uma reportagem do repórter Renato Lemos que mostrava, com fidelidade, a nossa posição, além de publicar o artigo do Olavo que havia sido enviado ao Globo no início da confusão.

As coisas estavam em suspenso, até que o articulista Elio Gaspari publicou um artigo, no Globo e na Folha de S. Paulo, em que defendia o nosso direito à liberdade de expressão, ainda que de forma tímida, aproveitando ainda para recordar um caso ocorrido com comunistas expulsos da PUC em 1962.

Esse artigo deu início a uma nova série de reportagens: uma no Globo, em que a repórter distorceu o sentido das frases do Pedro e entrevistou um advogado que estava preparando – só agora! – um manifesto a favor dos comunistas de 62 e dizia categoricamente (sem ter lido O Indivíduo): “esses meninos são racistas mesmo”. Outra, curtinha, na Folha de S. Paulo, em que a repórter relatava com fidelidade os fatos. E uma na Veja-Rio que era um amontoado de absurdos: dizia, entre outras coisas, que o Sérgio tinha escrito uma carta à reitoria se desculpando pelos excessos do jornal e ainda tinha uma declaração de um frei pedindo direito de resposta contra nós. É uma piada: direito de resposta contra um jornaleco de 400 exemplares de distribuição interna na PUC, por um frei que uma semana antes escrevera um artigo enorme na página de Opinião do JB nos esculhambando, com argumentos falaciosos. Enviamos ao JB uma resposta ao artigo do frei, mas quem disse que eles publicaram? Como também não publicaram a carta do escritor Antonio Fernando Borges nos apoiando; como O Globo não publicou a carta do roteirista Leopoldo Serran também nos apoiando.

Mas um detalhe saltou aos olhos: na matéria do Globo, o reitor declarava que a nossa falha não era assim tão grave. Quer dizer, de forma muito canalha, com muita timidez, declarou que estava errado. Afinal, não posso imaginar que o reitor ache que o crime de racismo não é uma falha grave… Só que a acusação foi espalhada para toda a comunidade, mas o desmentido ficou escondido numa declaração no jornal.

Surgiu um alento com o artigo do escritor Carlos Heitor Cony, na Folha de S. Paulo, classificando de ‘prepotente’ a ação do reitor. Na segunda-feira, 01/12, o filósofo e embaixador J. O. de Meira Penna publicava um artigo no Jornal da Tarde também nos apoiando. Uma semana depois, o maior jurista vivo do país, dr. Miguel Reale, também publicava um artigo de apoio a nós no Jornal da Tarde.

Quadro animador? Não. Fomos entrevistados, eu e o Pedro, para o Jornal do Brasil, por um sujeito chamado Cláudio Cordovil. Embora confessasse, durante a entrevista, não estar entendendo nossas declarações e não conhecer nenhum dos autores que citávamos, esse sujeito não hesitou em publicar uma reportagem de página inteira, no suplemento cultural de domingo, 14/12, com o título “A extrema-direita faz escola na PUC”. Não fez isso sozinho: estava acompanhado de um psicanalista, um cientista político e um “filósofo”. A quantidade de besteiras contidas nessa matéria está além do meu poder de síntese e podem ser verificadas na mesma. Olavo de Carvalho elaborou uma resposta, explicitando uma por uma, que acabou sendo publicada no JB do outro domingo, 21/12.

Mas o espírito totalitário (e a vontade de nos crucificar) do JB não podia deixar por menos: na segunda-feira, 22/12, junto com uma carta do Sérgio, saía um artigo do Cordovil dizendo que ‘as maiores revelações sobre o complô na PUC ainda estavam nas fitas, não tinham sido publicadas’, o que foi a coisa mais espantosa que já vi nos jornais: um repórter confessando, no próprio jornal em que escreve, ter sonegado informações. O artigo trazia acusações a nós e ao Olavo.

Na terça, 23/12, saíam as respostas do psicanalista, Joel Birman, e do cientista político, Luís Eduardo Soares, além de uma carta do Pedro. Novas acusações, novas injúrias, novas baboseiras. Pergunta: nós respondemos? Sim. Eu escrevi uma resposta, o Olavo escreveu uma outra, eu e o Pedro escrevemos juntos uma terceira. Estamos até hoje aguardando a publicação. Notem que isso é violação do direito constitucional: quando alguém é difamado, tem o direito de responder. Se o outro voltar a falar, o difamado tem direito de se defender novamente. Direito de resposta tem que ser em número par: A ataca B; B responde a A. Se A volta a atacar B, B tem de novo o direito de responder a A. Do contrário, fica evidente a predileção do órgão de imprensa pelo lado que ataca. Alguém ainda duvida disso?

Mas não foi só a imprensa escrita que entrou na história. O jornal local da Rede Globo, RJ-TV, fez uma matéria que já dava por pressuposto que o jornal era racista, entrevistava alguns dos nossos agressores e terminava com o apresentador dizendo: “os editores do jornal negam a acusação”, que foi a única linha a que tivemos direito. Já a Globo News, do grupo Globosat, promoveu uma entrevista com o Pedro e o Olavo. O reitor também foi chamado para o programa, mas se recusou a ir. Agora, o pior de todos foi o Jornal Nacional: numa reportagem que dizia que o racismo está crescendo no Rio, o Jornal enfocava a prisão de uma pessoa por racismo e dava como outro exemplo a existência do nosso jornal. Não sei se as pessoas perceberam que a reportagem se desmentia a si mesma, ao mostrar que houve um caso em que a lei de racismo pôde ser aplicada com sucesso e nem se perguntar como no nosso caso, se era racismo mesmo, ninguém teve coragem de apresentar a acusação perante os tribunais.

Mas o expediente que eles usaram foi o mais baixo, o mais absurdo possível. No trecho do artigo sobre a Consciência Negra em que o Pedro escreve:

Querer falar de uma consciência negra como se ela fosse essencialmente diferente de uma consciência branca, ou árabe, é realmente estúpido. (5)

O Jornal Nacional mostra ao público:

Querer falar de uma consciência negra é realmente estúpido.

O que era pregação da integração entre as raças vira desprezo por uma delas. O que defendia que não se levasse em consideração o fator raça para nada de súbito aparece como identificação do negro com a estupidez.

É impressionante como se pode inverter totalmente o sentido de um texto simplesmente tirando dele alguns pedaços.

No rádio, O Indivíduo foi noticiado através de um jornalista e cronista chamado Mário Negreiros, que fez quatro crônicas radiofônicas em nosso favor, além de um artigo num jornal português.

O caso deve chegar às livrarias agora em janeiro, como a segunda parte do livro O Imbecil Coletivo II, em que o professor Olavo de Carvalho fará uma coletânea de seus artigos sobre o caso, além de juntar artigos e cartas em nosso favor escritos por outras pessoas, inclusive alguns já citados.

Este é o caso. São muitos os detalhes impressionantes, são muitos os temas a se discutir. Mas o que me parece mais incrível são dois pontos que foram completamente ignorados pela imprensa: como é possível que quatro jovens publiquem um jornalzinho e causem um escândalo tão grande? E mais ainda: como é possível que a reação histérica de um determinado grupo de alunos seja aplaudida e reforçada por uma santa aliança de autoridades universitárias, professores universitários e órgãos de imprensa escrita e televisiva?

Não tenho respostas prontas, mas tenho uma boa hipótese: a dominação esquerdista dos meios de comunicação e das universidades.

Mas como se liga uma coisa a outra? Façamos um breve exame das técnicas que essa dominação usou para chegar a esse estágio avançado.

O expediente que eles usaram contra nós foi lançar um “rótulo odioso”. Esse expediente é descrito por Arthur Schopenhauer da seguinte forma (6):

Um modo de eliminar ou, ao menos, de tornar suspeita uma afirmação do adversário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada, ainda que a relação seja pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança. Por exemplo: “Isso é maniqueísmo”, “É arrianismo”, “É idealismo” (…). Com isto, fazemos duas suposições: 1) que aquela afirmação é efetivamente idêntica a essa categoria ou, ao menos, está compreendida nela e estamos dizendo: “Ah, isto nós já sabemos!”; e 2) que esta categoria já está de todo refutada e não pode conter nenhuma palavra verdadeira.

Tivemos os exemplos mais perfeitos disso, seja das formas mais grosseiras (“nazismo”, “racismo”), como das mais intelectualizadas(“individualismo”, “misticismo”, “conservadorismo”).

Visto isso, pouco importa se as pessoas entenderam o que escrevemos ou não: somos detestáveis de qualquer maneira. Esse modo de proceder para vencer o adversário está tão difundido nos meios intelectuais que qualquer um que pretenda fazer uma argumentação lógica e demonstrar seus argumentos está fadado a receber em troca bocejos. Quando não receber cusparadas e rótulos odiosos, claro.

Mas isso não é tudo. O rótulo odioso é usado pela nossa esquerda em companhia de um outro estratagema: a manipulação semântica. Trata-se de dar a determinados conceitos um sentido único, de forma que não consigamos nem sequer pensar de forma diferente deles, por falta de vocabulário. Um exemplo claro ocorreu hoje, quando tive que explicitar que não falava em conscientização no sentido esquerdista.

Como aponta Olavo de Carvalho (7):

Se o orador sempre fala sozinho para a multidão, sem um oponente que venha equilibrar as coisas invertendo as conotações forçadas que ele dá a certos termos, estas vão aos poucos entrando no uso diário e o povo acaba por tomá-las como definições rigorosas; a ênfase postiça anexa-se de modo definitivo ao significado, e se torna impossível pensar o seu objeto independentemente do valor afirmado ou negado na palavra mesma.

E continua, mais adiante:

O domínio esquerdista do vocabulário é total e irrestrito, o que faz com que cada cidadão brasileiro, ao discordar da esquerda, se veja desprovido de meios de expressão que não estejam sobrecarregados de um temível potencial de malentendidos; aos poucos, a dificuldade de falar vira dificuldade de pensar. Hoje em dia, o debate cultural no Brasil não opõe senão as facções de esquerda umas às outras: o resto é tomado como mero discurso ideológico que não deve ser discutido, apenas explicado pelos interesses objetivos que o produzem e que ele encobre. [grifo meu]

Essa situação foi criada pelo domínio das esquerdas nos meios intelectuais e na mídia, como eu dizia acima. Quando se explicita isso, fica bastante claro por que causamos tanto escândalo: é que falamos coisas que não estão em voga.

No meio daquela multidão enfurecida, dificilmente encontraríamos algum que tivesse lido qualquer coisa que não o discurso esquerdista. Eles são culpados por isso? Claro que são. Ninguém é obrigado a aceitar tudo que o meio em torno lhe transmite. Mas também são vítimas.

Vítimas de seus professores, do meio intelectual, dos jornalistas, do reitor. Foram eles que transformaram a universidade numa escola de adestramento, num circo de aberrações. Foram eles que inculcaram esse discurso e esse modo de agir nesses jovens.

Por isso não é difícil perceber o porquê do apoio que os agressores puquinanos receberam. Eles nada mais são que os agentes mais exaltados dos verdadeiros agressores. É natural que esse tipo de ação política utilize jovens como agentes (8). Na juventude, a necessidade de auto-afirmação é maior, o que faz com que o jovem mais facilmente seja acometido do tal espírito de rebanho: para ser aceito pela comunidade, o jovem adere às idéias que essa comunidade professa. Isso se alia ainda à necessidade de modelos, que faz com que os jovens aceitem sem muito espírito crítico o que seus professores lhes dizem. (9)

A conseqüência psicológica dessa utilização é devastadora: leva os jovens a exagerarem sua própria importância, se sentindo grandes heróis libertadores lutando contra as forças opressores do capitalismo. Claro que indivíduos tão lisonjeados serão incapazes de lidar com as dificuldades e limitações da vida adulta e terão uma tendência à violência.

Em outras palavras, tanto a leitura errada quanto as agressões de que fomos vítimas por parte dos alunos têm uma origem bem definida: foi na PUC que aprenderam a ler assim, foi na PUC que aprenderam a agir assim.

Aprenderam que qualquer discurso que não fale nos excluídos, nos proletários, na eqüidade social, nos males da globalização; que não faça reverência aos santos do meio acadêmico, como Antonio Gramsci, Che Guevara, Michel Foucault, Karl Marx; que não pretenda mudar o mundo, mas apenas conclamar os indivíduos à reflexão ou a tentar compreender o mundo – qualquer discurso assim deve ser desconsiderado e taxado de direitista, logo, de fascista, logo, de nazista. E como nazistas representam um enorme perigo, atacá-los fisicamente torna-se perfeitamente legítimo.

Não é outra senão essa lógica perversa que explica o porquê de um editorial que falava em respeito à individualidade e em diálogo entre consciências ser taxado de individualista; de um artigo que usava argumentos científicos contra uma lei que favorece um determinado grupo da sociedade ser considerado ofensivo a esse grupo; de um ensaio que celebrava a sociedade brasileira por sua pacífica convivência interracial ser chamado de racista.

Este último caso é o mais claro: alguns setores extremados do movimento negro querem ter o monopólio do racismo. Querem que qualquer pessoa que fale contra algumas de suas políticas seja imediatamente considerado racista. Pretendem representar o bem supremo. Se agarram de tal modo a suas causas que quem quer que levante uma única objeção contra elas se torna objeto de ódio e perseguição. Esse o sentido do termo ‘politicamente correto’: é a linha justa, qualquer um que saia dela deve ser imediatamente punido, pois está fora da linha, ou é incorreto, logo, moralmente condenável.

Mas, por ser falaciosa, essa condenação jamais se dará nos tribunais. Dar-se-á na mídia, infestada por repórteres prontos a propagar as idéias politicamente corretas, prontos a contribuir para a caça às bruxas promovida pela intelligentzia esquerdista. A mesma imprensa onde a acusação é estampada em letras garrafais nas manchetes e o desmentido, quando é publicado, é escondido em letras pequenas nas páginas internas.

O episódio provocado pelos arruaceiros da PUC em torno de “O Indivíduo” é uma demonstração deprimente desse estado de coisas. É um alerta sobre a grave ameaça à liberdade de expressão que ronda o nosso país, produto dessa aliança perversa entre reitores inquisitorias, professores esquerdistas desonestos, alunos obedientes e mídia pronta a publicar a versão do fato que mais interessar à intelligentzia.

Pelo que se viu nesse caso, no Brasil, responder a argumentos com socos e cusparadas é louvável; ler maliciosamente e atentar contra a liberdade de expressão do escritor é democrático; inventar conspirações nazificantes é grande jornalismo. O destino de um país que permite que essas coisas aconteçam não me parece ser dos mais animadores…

Rio de Janeiro, 03/04 de janeiro de 1998.

NOTAS:

(1) v. ORTEGA Y GASSET, José. En torno a Galileo, Revista de Occidente en Alianza Editorial, Madrid, 1994.

(2) Mesmo agora, quando falo na primeira pessoa do plural, na verdade estou falando por mim. O que me permite falar em nome dos outros editores é uma aproximação de idéias sobre este determinado ponto, mas com certeza se quem estivesse aqui fosse outro deles, a forma de apresentar os argumentos seria bastante diferente, pois cada um de nós dá um determinado enfoque à questão, embora esses enfoques se assemelhem.

(3) Personagem criado por membros do grupo Casseta & Planeta numa coluna semanal do jornal “O Globo”

(4) O José Roberto não estava na PUC durante a confusão. Após algum tempo, ficamos só eu e o Sérgio, tendo o Pedro ido fazer uma prova – sempre cercado por seguranças.

(5) Jornal “O Indivíduo”, número zero, novembro de 1997, p. 9

(6) v. SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razão; introdução, notas e comentários de Olavo de Carvalho; tradução de Olavo de Carvalho e Daniela Caldas; Topbooks, Rio de Janeiro, 1997.

(7) v. SCHOPENHAUER, Arthur, op. cit.

(8) Excelentes comentários a respeito estão no penúltimo capítulo do livro O Jardim das Aflições, de Olavo de Carvalho; Diadorim, Rio de Janeiro, 1995.

(9) Aliás, uma grande contradição da juventude moderna é a rapidez com que jogam seus pais no descrédito, para posar de rebeldes, enquanto, ao mesmo tempo, são influenciados por tudo à sua volta.

FHC: “Racista” como eu

“Coisa é que admira e consterna”, diz o personagem Brás Cubas, do mulato Machado de Assis. Faço minhas as palavras do Bruxo do Cosme Velho: os eventos que tomaram a PUC na quarta-feira passada são, para dizer o mínimo, notáveis; para dizer o máximo… Bem, cada um saberá o que pensar.

O fato é que eu e mais três amigos publicamos um jornal (O Indivíduo) muito brando, quase anódino, em seu conteúdo – apesar dos temas tratados serem tidos como “polêmicos” – e fomos imediatamente atacados por uma multidão de alunos enfurecidos, que fizeram várias promessas contra a nossa integridade física. Promessas, aliás, que só não foram cumpridas graças à ação da segurança da universidade, que, mesmo assim, achou melhor que fôssemos embora o quanto antes, pois duvidava da possibilidade de nos manter inteiros se continuássemos na PUC.

Além disso, meus amigos foram avisados previamente de que qualquer tentativa de audiência com o reitor seria vetada. No dia seguinte, o reitor enviou uma carta à comunidade acadêmica em que condenava a nós, vítimas de uma agressão por parte dos alunos, como agressores. Cerca de cem pessoas perseguem três, e os agressores somos nós; aritmética muito curiosa, devo dizer.

O que pode haver de tão estarrecedor no jornal realmente me escapa. Há, é verdade, um texto meu que questiona a realização de uma Semana da Consciência Negra na PUC, mas os argumentos, além de perfeitamente legítimos, são rigorosamente os mesmos utilizados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em sua participação em uma séria de documentários sobre os 500 anos de História do Brasil, segundo notícia da página 3 de O Globo de 24/11/97. O presidente e eu seguimos a linha de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro: aqui no Brasil o povo se orgulha de ser miscigenado, e segundo o presidente, foi criada aqui “uma consciência muito especial”. Ou, como digo em meu artigo, o maior valor da cultura brasileira está justamente na desconsideração quanto ao fator raça – que não é mérito nem demérito –, integrando todos os povos que para cá vieram.

Se sou merecedor das acusações que me imputaram, também é o presidente Fernando Henrique Cardoso. E também os dois pilares da nossa ciência social, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Estou até agora completamente estarrecido – e creio que assim permanecerei por muito tempo – por ter sido tão atacado pelos alunos da PUC, filhos da elite carioca, e pela reitoria. Sou uma vítima que mal é capaz de entender o que aconteceu segundo os critérios mais comuns da razão humana, e só posso me arriscar a perigosas conjeturas se desejar uma verdadeira compreensão do assunto.

Parece-me que o que houve na PUC foi uma situação de totalitarismo; isso e mais nada. Totalitarismo da parte dos manifestantes; da parte do reitor, no mínimo imprudência, ao tomar partido dos agressores sem ter sequer ouvido o depoimento das vítimas.

O maior mal que posso me atribuir foi o de ter tido uma opinião contrária à do discurso dominante na PUC. Dominante não numericamente, note-se bem; acredito piamente que nosso jornal reflete a opinião da maioria silenciosa que integra o corpo de alunos da PUC. O discurso a que chamo dominante é dominante em termos de barulho, pois parte de um grupo organizado que se manifesta o tempo inteiro. A maioria mesmo permanece em silêncio, não se organiza e não se faz ouvir, ouvindo a minoria barulhenta sem sequer reclamar. Bater, jamais.

A negra noite da consciência

Às vezes me pergunto em que país eu vivo. Porém, o testemunho da minha consciência me faz ver que a loucura que gera esta questão tem origem nos outros, e não numa possível ilusão geográfica minha. Eu continuo são, e meus olhos não me enganam. A única coisa que persiste é, talvez, a sensação de que eu preferia estar profundamente errado ou meio doido mesmo.

Foi exatamente assim que eu me senti ao descobrir que se realizaria na PUC uma Semana de Consciência Negra, um evento inspirado na idéia norte-americana do “politicamente correto”. Acredito mesmo que isso só possa ser fruto da tal “colonização cultural”, um fenômeno que, em tempos de “globalização”, ficou meio esquecido, mas que, infelizmente, existe sim: basta olhar para os negros brasileiros, que, em termos de aceitação social, têm uma vida muito melhor do que a dos negros americanos – lá nos EUA existe racismo mesmo – querendo

importar os problemas deles.

Se pudéssemos apontar qual o maior exemplo – quiça único – que o Brasil dá à humanidade, ele está na convivência interracial e multicultural. Só aqui, na TV, passa comercial de programa árabe durante o programa judeu. Só aqui todo mundo convive muito bem, sem Ku Klux Klan e sem ódio “étnico”. A única parte que assume isso são os skinheads e todo mundo sabe muito bem que eles são considerados um grupo malévolo à parte que deve ser combatido.

(Alguém pode dizer: “aqui o racismo é sutil”. Eu pergunto: o que é “racismo sutil”? Quem não gosta de uma raça sempre manifesta isso de uma maneira que qualquer espírito, ainda que não muito sutil, percebe.)

O grande racismo, nada sutil, mas que pouca gente percebe, está em eventos como esta Semana de Consciência Negra. Primeiro, porque ninguém acharia bonito se fizéssemos uma Semana da Consciência Branca. Promover uma raça, qualquer que seja, é racismo. E eu não vejo nenhuma razão para tolerar nos outros o que eles pretendem condenar em mim. A única razão que se poderia alegar para que eu tolerasse isso é uma certa infantilidade da parte deles. É em criança que se tolera esse tipo de atitude.

Donde se conclui o óbvio: uma Semana de Consciência Negra depõe contra a própria raça negra, como se esta fosse composta de pessoas que precisassem desesperadamente de auto-afirmação. Auto-afirmação, aliás, equivocada: nenhuma produção de cultura negra será boa ou relevante para a humanidade por ser negra, mas por ser cultura (não no sentido antropológico do termo). O poeta Cruz e Souza não se destaca como um poeta de relevância universal por ter sido negro, mas pelo valor da sua poesia, que teria o mesmo valor se tivesse sido escrita por um viking.

Querer falar de uma consciência negra como se esta fosse essencialmente diferente de uma consciência branca, ou árabe, é realmente estúpido. Porque, sendo diferente, e havendo tamanho esforço para celebrá-la e estimulá-la, só se pode concluir que ela seja ou superior ou inferior às outras. Faz-se tanto pelo consciência negra para ajudar ao mais fraco; ou então celebra-se tanto a consciência negra poe ela ser superior, a base mesmo da nossa civilização. A primeira é um nazismo patético às avessas; a segunda é nazismo mesmo – e com nazista eu não converso.

Um argumento que é utilizado pela comunidade negra (já pensou como soaria comunidade branca?) é o de reparação. Reparação das injustiças que foram cometidas contra os negros, escravizando-os, tirando-os da sua terra, etc. Bem. Os faraós egípcios, que, segundo alguns, eram negros, escravizaram vários povos durante mais de mil anos. A escravidão era prática comum entre as tribos africanas e todos sabemos que os negros das tribos mais fortes foram cúmplices dos europeus no comércio de escravos. Assim sendo, sugiro que os negros que desejam reparação façam árvores genealógicas para ir cobrá-la dos descendentes dos negros escravizadores. E, antes disso, peçam a conta a todos os povos escravizados pelos egípcios.

O pior mesmo é que ninguém atenta para isto. Só quando trouxerem a prática norte-americana (já banida) de “ação afirmativa” é que vão perceber. Houve na PUC, durante a Semana, um seminário sobre o tema. Para quem não sabe, “ação afirmativa” (“affirmative action” mesmo) é uma prática evidentemente racista que consiste em garantir uma porcentagem x de lugares para as minorias em certos meios dos quais elas se sentem excluídas – por exemplo, as universidades. Evidentemente racista porque toda decisão tomada com base em raça é racista. Assim, as universidades são obrigadas por lei a admitir tantos negros, de acordo com uma proporção matemática extraída no número de negros na região. A grande diferença dos EUA para o Brasil, neste sentido, é que lá, na hora de você entrar na universidade – falo por experiência própria – você fundamentalmente manda o seu currículo.

Aqui no Brasil o sistema é de vestibular, e cada universidade tem o seu. Já imaginaram a beleza que vai ser, se a “ação afirmativa” vier para cá, o vestibular? Salas para negros – que ou farão provas bem mais fáceis ou terão critérios mais brandos de avaliação, já que a universidade é obrigada por lei a ter em seus quadros um percentual predeterminado de alunos negros – e salas para brancos? Isto aí é ou não é a explicitação de uma demência completa?

Ninguém vê porque a consciência mesma, seja negra, branca, grega ou troiana, está mergulhada numa noite de preconceitos. E o preconceito é um tipo de cegueira intelectual. São cegos perdidos à noite que só tem outros cegos para os guiarem e que crêem que a cura da cegueira seja mais cegueira. O ruim com o ruim não dá bom: dá pior. Estas práticas, que só aumentaram o racismo nos EUA, produzirão um efeito muito mais nefasto no Brasil, que apesar de não ter valores culturais tão arraigados, têm como maior valor a boa convivência racial. Todo este discurso só vai ter como único resultado a importação de um problema que nós não temos. Vão inventar a consciência de uma contradição que não existe, e o Brasil vai dar mais um passo para longe da realidade.

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O massacre do bom senso

Diante de certas manifestações de total falta de senso que andam invadindo os pilotis, é muito valorosa a advertência do historiador Evaldo Cabral de Melo, em recente entrevista para o caderno “Prosa e Verso”, do jornal “O Globo”.

Dizia ele, com coragem rara em nossos intelectuais, que política retroativa não é História. A História, para que se pretenda ciência, deve ser feita com documentos e elementos verificáveis. Em outras palavras, para estudar a História, não nos cabe impor modelos à realidade ou querer que o passado se adapte às nossas aspirações presentes. É preciso buscar a veracidade, buscar o fato, deixando que a realidade se apresente a nós tal e qual ela foi e não como gostaríamos que ela fosse.

Não digo com isso que a atividade historiográfica vai sempre ser capaz de descrever todos os fatos passados, mas que ela só atinge seu verdadeiro propósito quando se restringe àquilo que é capaz de descrever, e o faz com honestidade. Nada pode ser pior para a descrição histórica do que a contaminação ideológica, que impede os historiadores de enxergar o que não se adequa a sua pobre visão de mundo.

Uma vez descrita a realidade, aí sim é possível emitir sobre ela um juízo valorativo. Não me estenderei aqui sobre a necessidade de emitir esse juízo. Basta dizer que, sem que possamos enxergar a História de um ponto de vista universal e absorver dela algo que nos informe sobre nós mesmos, o estudo histórico deixa de ser necessário. Ora, incorporar à nossa vida verdades que nos tenham sido legadas por atos ou palavras dos homens que nos antecederam requer a emissão de um juízo.

Deste ponto de vista, podemos delinear, como aponta Olavo de Carvalho, três tipos de atuação histórica: aquele que não tem nenhum tipo de significação fora do contexto em que se desenrolou, aquele que deixa para os tempos seguintes um modelo de ação inspirador (e tem importância universal) e aquele que deixa atrás de si uma sombra de pesadelo, espécie de modelo negativo – o que não se deve repetir.

Tudo isso vem bem ao caso nesta época de exaltação ao movimento “revolucionário” de Canudos e ao seu chefe Antônio Conselheiro.

Dar a esse movimento um valor além de suas próprias circunstâncias é uma falsificação enorme, um exemplo perfeito da citada política retroativa. Antônio Conselheiro não foi um visionário e Canudos não foi um Movimento dos Sem-Terra avant la lettre. Foi, simplesmente, uma manifestação de crendices populares, um fenômeno localizado, provocado por um sentimento de impotência ante as novidades republicanas. Não há nenhuma profundidade mística, nem reivindicações progressistas nesse movimento. Há, sim, fanatismo e ignorância, recusa a qualquer autoridade e espírito de desordem.

Quando a nossa esquerda progressista elege como ídolo um sujeito como Conselheiro, é que perdeu completamente a noção dos fatos. Até porque o movimento foi reacionário, anti-progressista. Conselheiro criticava as mudanças introduzidas pela República, pregava a volta do Império e se aproveitava do sentimento religioso popular. A atração que exerceu – e exerce – vem da necessidade de ter algum modelo, de depositar as esperanças em alguma figura pública. Mais ainda, em alguém que se diz investido de poderes divinos.

Citemos a maior autoridade no assunto, Euclides da Cunha, mesmo correndo o risco de destruir doces ilusões: “Canudos ia se tornando o homizio [esconderijo] de famigerados facínoras.” De fato, o que Euclides observa no movimento é o desrespeito ao que quer que seja, aliado a uma devoção fanática a um líder messiânico, a quem foram atribuídos até milagres.

Não pensem que apóio o massacre. Pelo contrário. Tão ou mais selvagens que os sertanejos foram os militares, que não se esforçaram nem um pouco para compreender o movimento e nem refletiram sobre a imprevidência de suas ações.

O próprio Euclides os advertira que o extermínio de Canudos levaria a uma guerra longa e sangrenta. “O sertanejo é antes de tudo um forte” e lutou até o fim de suas forças. Ignorando esse fato, o sucessivo envio de tropas do Exército para a região levou a três conseqüências problemáticas, mutuamente relacionadas: a exaltação dos sertanejos, que culminava com o aumento do prestígio de Conselheiro; a morte (perfeitamente evitável) de milhares de soldados e a dizimação da população de Canudos; e o crescente atrelamento do poder político ao poder militar. A Nova República se tornava refém de seu braço armado.

Esse breve resumo pretende mostrar que não nos cabe dar à revolta de Canudos um status de luta do Bem contra o Mal. Reconheçamos que houve erros de ambas as partes, da mesma forma como ambas tinham suas razões. A terra é uma reivindicação legítima, desde que não se faça disso um instrumento para a instalação do caos – e, vale ressaltar, o discurso de Conselheiro tende mais para o caos do que para a legitimidade. Da mesma forma, a segurança nacional é uma causa legítima, deixando de sê-lo quando o poder armado incorre em abusos – caso no massacre de Canudos. Endeusar qualquer um dos lados é uma imprevidência e uma estupidez. Satanizar o outro, idem.

Mas será que adianta o apelo à razão, quando o público universitário está enceguecido pelas trevas da ideologia, e a ânsia de poder político se sobrepõe a qualquer outra aspiração da alma?

(Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1997)

Ciência versus filosofia?

Iniciamos com este artigo uma coluna cujo assunto será a consideração das relações mútuas entre os desenvolvimentos da ciência e da filosofia.

Vivemos em uma época na qual os filósofos, em sua maioria, estão muito afastados dos cientistas. Historicamente, ciência e filosofia surgiram juntas e durante muito tempo se confundiram; a própria física começou como filosofia natural. À medida em que o tempo passou, e a ciência ganhou uma complexidade cada vez maior, e nossa compreensão do mundo e do universo – pelo menos a nível fenomenológico – se expandiu, porém, uma atividade ficou cada vez mais distinta da outra. À medida em que o território da ciência se expandiu, suas fronteiras – para além das quais está a metafísica e a filosofia – pareceram cada vez mais distantes, para muitos, da quase totalidade da atividade científica. Desse modo, chegamos a uma cisão suspeitíssima na qual acredita-se que é possível produzir ciência de alta qualidade sem nunca gerar qualquer pensamento filosófico novo e que seja possível filosofar sobre a realidade (supondo que exista uma) sem conhecer ou se reportar à ciência.

Ora, em ambos os sentidos estamos cometendo erros crassos, e prejudicando – em certos casos impedindo – tanto o progresso da ciência como o da filosofia. Por um lado, a ciência não pode avançar – ou sequer existir – sem a filosofia. As estruturas filosóficas, conscientes ou não, constituem a ferramenta através da qual tentaremos interpretar a realidade – e isso vale tanto para um bebê recém nascido como para um grupo de pesquisa em física nuclear. Até aí, poderíamos conceber a filosofia como fundamento implícito mas dissociado do objeto da ciência. Só que o conhecimento não consiste apenas em preencher com percepções e experiências uma forma já pronta. Ao contrário, os grandes saltos de compreensão se dão quando reformulamos nossas formas (geralmente ao depararmos com percepções que não sabemos onde encaixar). De fato, o tipo de conhecimento que a ciência pretende obter sobre a realidade está muito mais nas estruturas que descobre serem “adequadas” para interpretá-la do que no acúmulo infinito de percepções. Assim, todo grande avanço na ciência – aquele tipo de avanço que alarga suas fronteiras – não só requer mas consiste em uma mudança nas estruturas filosóficas através das quais pensamos a realidade.

Por outro lado, em particular pelo exposto acima, a filosofia não pode ficar alheia aos avanços da ciência. À medida em que a ciência avança, ela penetra em domínios que antes pertenciam à filosofia. Nossa apreensão da realidade se altera através das eras e, aos poucos, questões que antes pertenciam por excelência ao domínio do debate filosófico puro, e demarcavam até mesmo os limites do cognoscível, passam a poder ser tratadas cientificamente. Dessa forma, questões como “Que são as estrelas ?”, “O que é a luz ?”, “Será o universo infinito ?”, “De onde surgiram os seres humanos ?”, “O tempo passa com a mesma velocidade em todos os lugares ?” que em diferentes épocas já foram – e facilmente esquecemo-nos disso – questões filosóficas, hoje são tratadas pela ciência. Tal mudança de situação não impede incursões da filosofia pura em nenhum desses assuntos – porém é fundamental que quem se disponha a fazê-las considere – e para tanto precisará conhecê-los – os argumentos científicos relevantes. Já outras questões como “O que é o bem ?”, “Por que estamos aqui ?”, “Existe um Deus ?”, “O futuro está predeterminado ?”, ainda hoje são, eminentemente, competência da filosofia. Talvez algum dia se torne possível tratá-las no âmbito da ciência, talvez não; a filosofia é mesmo mais abrangente que a ciência. No entanto, o filósofo deve perceber que as descobertas científicas revolucionárias não apenas apresentam conseqüências filosóficas profundas, mas mais do que isso, consistem em reformulações filosóficas, e muito bem fundamentadas.

A ciência expandiu-se tanto nos últimos séculos que muitas vezes filósofos e cientistas perdem de vista que são atividades com uma fronteira – freqüentemente nebulosa – em comum, e que quanto mais a filosofia fala sobre a realidade concreta, mais próxima ela está da ciência, assim como quanto mais a ciência se universaliza, mais próxima está da filosofia pura. Pretender conhecer a realidade e fazer ciência sem empregar a filosofia é como tentar construir a cobertura de um prédio antes de lançar as fundações. Porém, fazer filosofia ignorando a ciência é como estudar o problema genérico das fundações ignorando os arranha-céus que já estão construídos por aí.

Por mais forte e clara que seja essa ligação, há porém uma forma de sabotá-la, que desfruta de considerável popularidade : negar não só a acessibilidade mas a própria existência de uma realidade objetiva, concreta, suposição básica sem a qual a ciência se torna não só desconectada da filosofia mas completamente inviável. A conseqüência direta dessas concepções subjetivistas e relativistas é um universo no qual todas as opiniões têm o mesmo valor e ninguém está efetivamente “com razão” sobre coisa alguma. Deliciosamente “democrático” ? O que de fato ocorre é que demolida a distinção entre o pensamento/sentimento de cada um e tudo o que está fora de nós, entre o que projetamos nos outros e o que vem de nós mesmos, fica, de fato, impossibilitada a comunicação e compreensão do outro, dado que estamos efetivamente negando seu direito de existir independentemente. E, como nada faz sentido mesmo, estamos isentos de qualquer responsabilidade e só o que pode prevalecer é nossa vontade pessoal. Em uma tal situação, só nos resta submeter (a marretadas) continuamente tudo e todos a nossas ilusões e fantasias (ao invés de, ao contário, adaptar nossas concepções e representações internas ao que vemos),num orgasmo de egocentrismo esquizofrênico.

Felizmente, essa visão de mundo se revela não somente dantesca mas também de pouca consistência. Afastada a possibilidade da unificação de todas as nossas realidades subjetivas em uma única e universal realidade objetiva, qualquer proposta filosófica fica transformada em um fim em si, em um delírio exclusivamente formal. E, de qualquer forma, não adianta espernear e dizer que não é possível fazer o que já está efetivamente sendo feito. A evidência mais contundente da existência de algum tipo de realidade objetiva é justamente o gigantesco e cada vez maior sucesso que a ciência vem obtendo em operar baseada nessa suposição.

Reflexões após os escombros

(Este era o título, hoje renegado, deste poema que deixo aqui antes como curiosidade histórica – PSC, 18 de novembro de 2006)

A sombra de haver

sentido de ser

supera o pesar.

O sonho do outro,

se é que há outro,

está em se dar.

Além da medida

comum dessa vida

que é de lascar.

O resto é saudade:

tristeza que invade

a falta de amar.