«Liberdade, para quê?»

Georges Bernanos, La France contre les robots. A tradução do trecho abaixo, que encerra o cap. IV, é minha. Você pode comprar este livro em português, traduzido por Lara Christina de Malimpensa, na edição da É Realizações: A França contra os Robôs.

… a frase atroz, a frase sanguinária de Lênin: “Liberdade? Liberdade para quê?…” Para quê? Isto é, para que ela serve? Para que serve ser livre? E, de fato, não serve para grande coisa, nem a liberdade nem a honra poderiam justificar os imensos sacrifícios feitos em seu nome, e daí?! É fácil convencer os ingênuos de que somos apegados à liberdade por aquele tipo de orgulho expresso pelo non serviam do Anjo, e pobres padres vão repetindo essa tolice que agrada a sua estupidez. Ora, precisamente, um filho de nossas velhas raças laboriosas e fiéis sabe que a dignidade do homem é servir. “Não existem privilégios, só existem serviços”, essa era uma das máximas fundamentais do nosso Direito antigo. Porém, só um homem livre é capaz de servir, o serviço é por sua própria natureza um ato voluntário, a homenagem que um homem livre faz de sua liberdade a quem ele quiser, a quem ele julga estar acima dele, àquilo que ele ama. Se os padres de que acabo de falar não fossem impostores ou imbecis, saberiam que o non serviam não é uma recusa de servir, mas de amar.

Explicando a direita para a esquerda (e vice-versa)

Outro dia no Twitter apareceu-me uma dessas distinções mordazes de que revelam uma verdade com um clarão: “história cultural” é estudar o que outras pessoas pensavam; “história intelectual” é você mesmo tentar discutir com outros pensadores do passado. Esses dois tipos de história nascem de duas atitudes diferentes, claro. A primeira cataloga e guarda pensadores, sem deixar de lado a possibilidade de eventual consumo. A segunda se deixa questionar pelos pensadores. É a banalíssima distinção entre tratar alguém como objeto e tratar alguém como sujeito.

Essa é a questão que reaparece em todo o debate em torno de Jordan Peterson*, dessa vez de maneira mais clara do que da vez em que apareceu na eleição de Trump.

A New York Magazine vem com um artigo que tenta explicar “Por que eles dão ouvidos a Jordan Peterson”, que ainda aparece na deliciosa tag “O que a direita está lendo”. E pronto: o artigo segue pela mesma linha, admitindo que Peterson é um homem razoável quando diz algo com que o autor concorda, e simplesmente descartando as partes que desagradam ao autor.

Sim, é claro, a direita faz a mesma coisa, e trata seus adversários como objetos a serem explicados. E então a esquerda — atualmente desnorteada — redobra o ataque com novos rótulos, sendo “direita xucra” a etiqueta du jour.

No entanto, como falei, é essencialmente a esquerda quem passa por um momento de perplexidade. (A direita não deve se enganar: ela ascenderá e decairá, e ficará igualmente tonta.) Essa perplexidade nasce dessa atitude que já foi institucionalizada: reduzir o outro lado a um objeto a ser explicado. O catálogo de rótulos da esquerda é infinitamente mais variado e complexo que o da direita, que recentemente apenas conseguiu passar de “comunista” para “neo-marxista”, mas sua própria complexidade só faz aumentar o assombro impotente diante daqueles que, numa abominável demonstração de vontade própria, não seguiram o plano que lhes tinha sido traçado.

Fazer história cultural pode ser uma conveniência, e reduzir pode ser muitas vezes tão inevitável quanto necessário. Porém, nesse momento de crise, a atitude de descartar por meio de rótulos nunca me pareceu uma estratégia tão suicida.

* Se admiro o estoicismo e a capacidade argumentativa de Jordan Peterson, especialmente em pessoa, meu interesse por René Girard me impede de acompanhá-lo em suas considerações junguianas sobre mitos como “mapas de sentido”. Isto mereceria um post à parte, talvez no blog Miméticos, mas por ora limito-me a admitir que tomar mitos arcaicos como chaves para o entendimento da própria vida pode até surtir efeitos positivos, ou trazer uma sensação de bem-estar, mas a interpretação dos mitos utilizada para esse fim é simplesmente falsa.

Ode ao escândalo

Foi Heidegger quem disse que a poesia não é propriamente um modo mais elevado da fala cotidiana. Ao contrário, é a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não mais ressoa. Talvez, precipitadamente, alguém deduzirá daí uma exprobração à poesia moderna que, no mais das vezes, parece recortes de prosa arranjados em versos irregulares. Antes fosse! – diz o filósofo – Mesmo a prosa, num sentido puro, nunca é prosaica. A prosa é tão poética e, por isso, tão rara quanto a poesia. Em ambas, o fenômeno estético ocorre quando os recursos expressivos fazem ressoar uma realidade que, até então, não atingira explicitamente nossos sentidos ou nossa consciência, surtindo uma comunicação brusca, fulminante. Foi o que se deu comigo no dia 28 de abril, durante aquela greve superestimada, dita geral.

Após duas horas contemplando uma muralha de fogo, que escassos militantes avivavam com pneus, interditando a única rodovia de acesso para o hospital onde pretendia chegar, eu tentei me distrair dizendo poesia. Embora não seja do meu feitio matar o tempo com poemas (infelizmente, faltam-me refinamento e memória), naquela hora, sem livro, rádio ou wifi, deu-me na veneta dizer um verso que se adequasse à ocasião. Comecei então arriscando algo de Dante: – Nel mezzo del cammin di nostra vita… mas esqueci do resto e empaquei nessa reticência. Quis insistir, porém, não sei se por distração ou cansaço, acabei resvalando para Drummond: – No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra… A cada rebote desse ioiô poético eu me perguntava se os versos eram irritantes porque pegajosos, ou pegajosos porque irritantes: – Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho

Foi então que ocorreu o fenômeno estético descrito por Heidegger. Uma mulher, que há horas buzinava infatigavelmente, desceu do carro gritando: – Minha gente, ali não há mais de trinta pessoas, enquanto nós somos três filas quilométricas de veículos. Vamos furar a porra desse bloqueio!… Prontamente uma grevista avançou empunhando uma bandeira da CUT e cravou-a no chão, rente aos pés da mulher. O gesto ameaçador fez-me lembrar de Gandalf desafiando Balrog: – You shall not pass!… Mas o que ouvi foi: – Fascistas não passarão! Fascistas não passarão!… E logo os demais militantes aderiram em coro: – Fascistas não passarão, etc., etc. A mulher ficou branca de raiva e, ondeando a cabeça que nem uma cobra, gritou num tom mais alto, quase esganiçado: – Fascista é o caralho! Eu quero ir à praia!… E deu um empurrão na grevista.

Eis que o escândalo se fez! Sem nunca terem se visto, sem sequer saberem seus respectivos nomes, as mulheres engalfinharam-se movidas por um sentimento tão súbito quanto vago, que surgira do nada, concentrara-se num obstáculo banal, e acabaria em coisa nenhuma – precisamente como os versos de Drummond. A estrutura do poema era a própria estrutura do conflito. E eu, que ainda o recitava, num murmúrio hipnótico, percebi que sua aparente lenga-lenga, que pouco ou nada dizia, era, por isso mesmo, a ode mais eloquente, mais expressiva para a gratuidade dos escândalos que um obstáculo pode suscitar.

Com efeito, imaginei esses versos sendo ditos por Laio ou Édipo na hora fatal em que, desconhecendo-se, disputaram a precedência da passagem numa estrada. Ou pelo anônimo homem do subsolo quando sofreu a trombada humilhante de um transeunte casual. Ou também por Daniel Hauptmann quando, numa soturna avenida de Curitiba, esbarrou em Satanás. Tal como os personagens de Sófocles, Dostoiévski e Diogo Rosas G., tal como o eu-lírico de Drummond, aquelas duas mulheres não precisaram de discursos ou motivos profundos. Bastou-lhes apenas que no mesmo caminho “tivessem” uma à outra, obstando-se. Um acontecimento escandaloso que, mesmo não tendo chegado ao extremo de um homicídio, de uma mágoa obsedante ou de um pacto demoníaco, tornar-se-ia inesquecível na vida de suas retinas tão fatigadas.

Roberto Campos, a “Nona Lei do Kafka” e a “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”

Cláudio Ribeiro

Na segunda-feira, 17 de abril, o diplomata, economista e espadachim da ironia Roberto de Oliveira Campos teria completado cem anos de vida. A ocasião me fez, a princípio, assistir ao debate (as línguas mais escarnecedoras diriam “atropelo”) que Campos travou em 1985 com o então senador Luís Carlos Prestes, na TVE, no Rio de Janeiro – Quem ainda não viu, veja! Está disponível aqui. Depois, procurei em minhas estantes o livrinho A Técnica e o Riso (Edições APEC, 1966), comprado em um sebo no ano passado, mas do qual ainda não havia lido sequer uma linha. Encontrei-o e comecei a leitura imediatamente.

Todo A Técnica e o Riso é sensacional. Porém, vou dar destaque aqui a dois textos nele contidos: “Uma Reformulação das Leis do Kafka” e “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”, pois um completa o outro. Aliás, do primeiro, meu destaque é ainda mais específico: abordarei apenas a “Nona Lei do Kafka”. A nona, de dez. E que seja logo esclarecido, como o próprio Campos o faz: o Kafka em questão não é Kafka. Não é o Franz, mas o Alexandre, economista austríaco, que fora aluno de Mises, representante do Brasil no FMI e primo não muito distante do autor de A Metamorfose.

Kafka e Campos trabalharam juntos no gabinete de Eugênio Gudin, enquanto este foi ministro da Fazenda do governo de Café Filho, entre agosto de 1954 e abril de 1955, após Getúlio Vargas ter dado cabo da própria vida. Foi durante esse período que Alexandre, cujo espírito jocoso não devia nada ao de Roberto, passou a esboçar “Leis” encharcadas de sarcasmo, as quais permitiriam “compreender” a lógica da economia brasileira – que à época era tão ilógica quanto atualmente.  

Das dez “Leis”, a nona diz respeito à “transferência da culpa”, cujo postulado é o seguinte: “É menos importante encontrar soluções do que ter bodes expiatórios”. A título de complemento, Campos escreve: “As frustrações do subdesenvolvimento criam a necessidade de odiar e de procurar causas externas à nação, no domínio da magia e da conspiração, para explicar a nossa pobreza.” Mais adiante, podemos ler uma citação de Bertrand Russell, trazida a lume para reforçar o fato de que nós, segundo Campos,  sempre “precisamos de um bom e renovado estoque de bodes expiatórios”. Eis o texto do filósofo galês: “Não gostamos de ser privados de nossos inimigos; desejamos odiar alguém quando sofremos. Seria tão deprimente pensar que sofremos porque somos tolos; contudo, tomada a humanidade em seu conjunto, essa é a pura verdade! Por esse motivo, nenhum partido político pode adquirir força motriz exceto através do ódio: precisa expor alguém à execração.”

A necessidade de transferir a culpa a outrem, de “expor alguém à execração”, a fim de purgar problemas que são inerentes a determinada comunidade, é um fenômeno ubíquo ao longo da história. “Malhar o Judas” traz sempre uma catarse. Catarse esta que estabelece uma paz momentânea para os entreveros fratricidas. No caso especial explorado pela dupla Campos-Kafka, a “comunidade dos economicamente subdesenvolvidos” prefere culpar a comunidade das formigas, a icterícia ou o “imperialismo ianque” a reconhecer que ela própria tem parte na crise instalada.

Isto fica claro quando Roberto Campos retoma o tema em “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”.

Vejamos!

Munido da mesma verve que alinhavou a “Reformulação das Leis do Kafka”, Campos diz, logo na abertura de “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”, que após conversa com o embaixador Miguel Álvaro Osório de Almeida, ambos ficaram “preocupados em chegar a uma mensuração realista do crescimento da economia brasileira; do esforço desenvolvimentista, em suma, para usar o jargão corrente.” Esta mensuração realista teve como resultado um  “subproduto inesperado, que interessará tanto ao sociólogo e ao psicólogo, quanto ao economista: a interpretação ‘animista’ do subdesenvolvimento econômico”. Com a pena da galhofa, e em explícita referência à “Nona Lei do Kafka”, o diplomata acentua: “Em matéria de interpretação econômica continuamos nitidamente pré-lógicos. A essência da atitude animista reside em procurar sempre causas externas ao homem e à nação, no domínio da magia e da conspiração, para explicar o subdesenvolvimento.”

De novo aparece a “transferência da culpa”, a necessidade da construção de um “dentro” e um “fora”, qual uma operação xamânica que expurga o objeto/sujeito causador de malefícios ou expulsa os espíritos malignos. “A objurgação”, prossegue Roberto Campos, “é preferida à autocrítica. O ‘exorcismo’ é uma técnica normal de agir e se espera sempre que do fundo da tenda surja a figura messiânica do ‘salvador’. Dessarte, o desenvolvimento econômico é interpretado em parte como um transe e não como uma acumulação de rotinas produtivas; a proeza descontínua e não o incremento miúdo do esforço; a mágica e não a eficiência.”

E, se a economia se desenvolve, junto a ela se desenvolve também o animismo. O primeiro tipo, segundo Campos, teria sido o “animismo totemista”, isto é, “as forças que impediam o desenvolvimento nacional se corporificavam em animais e objetos”. O exemplo dado é o da sentença de Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto: “‘Ou acabamos com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil’. A noite de São Bartolomeu aplicada às formigas seria o dia da emancipação nacional. Hoje ninguém mais pensa em saúvas e continuamos subdesenvolvidos”.

Com a figura do Jeca Tatu, Monteiro Lobato, teria, de acordo com Campos, introduzido “uma nova forma de animismo. Desta vez, o inimigo era o ‘amarelão’, que solapava o esforço do caboclo nacional. Consequentemente, a purificação das tripas deflagraria um processo de desenvolvimento.” Com o avançar das décadas, os “trustes” e as “forças ocultas imperialistas” formaram o terceiro tipo de animismo que, para muitos, ainda hoje necessita de exorcismo.

A torto e a direito, ou, melhor dizendo, à esquerda e à direita, o que sempre buscamos – e não apenas nós, gente brasiliana –, desde a época mais remota até à era da macroeconomia e da globalização, é aquilo que um certo autor francês falecido há não muito tempo esboçou sob o nome de “mecanismo sacrificial da vítima expiatória, ou do bode expiatório”, em livro intitulado A Violência e o Sagrado (tradução de Martha Conceição Gambini; Paz e Terra, 1990), no qual podemos ler as seguintes palavras: “Qualquer comunidade às voltas com a violência, ou oprimida por uma desgraça qualquer, irá se lançar, de bom grado, em uma caça cega do ‘bode expiatório’. Os homens querem se convencer de que todos os seus males provêm de um único responsável, do qual será fácil livrar-se.”

Roberto de Oliveira Campos provavelmente não conheceu a obra desse autor, René Girard, mais intuiu, em seus momentos de descontração com amigos e companheiros de métier, alguns pontos que vão ao encontro do pensamento do francês. Ambos, assim como Bertrand Russell, souberam que o ódio é o mais inflamável dos combustíveis.

A identidade francesa, a identidade

No Insurgente, escrevi uma pequena reação ao texto do Rodrigo de Lemos n’O Estado da Arte, falando de como a figura de Renaud Camus me lembrava a de… Pat Buchanan.

A tese principal de Camus é bastante simples: na França, um povo está sendo fisicamente trocado por outro. Claro que, se o francês não quer procriar, e se os imigrantes procriam… Não é à toa que o grande bestseller da direita francesa se chama justamente Le Suicide Français (de Eric Zemmour). Vejam bem: eu não li o livro. Estou só ligando alguns pontos.

Resta, porém, a questão da identidade nacional francesa. Identidade nacional é um dos temas da minha pesquisa de doutorado em literatura comparada (para quem quiser saber, será uma comparação entre a literatura de fundação nacional brasileira e argentina), por isso estou atento ao que se diz sobre o tema — mesmo que seja este artigo completamente besta do Figaro, que afirma ser sobre a identidade nacional francesa; porém, troque algumas palavras, e ele pode ser sobre qualquer coisa.

Sobre identidade nacional e nação, creio que é possível dizer duas coisas com alguma certeza.

Primeira. A nação não existe independentemente das pessoas que creem que ela existe. A França ou o Brasil só existem na medida em que haja quem creia nisso.

Muitos anos atrás, li na New Criterion um artigo de Roger Scruton que trazia uma citação de De Gaulle que me revoltou profundamente. O general teria começado sua biografia dizendo: “a vida inteira tive uma certa ideia da França”. Lembro de pensar: “a França são milhões de pessoas, como é possível ter uma ideia de todos esses indivíduos, seu totalitário?”. Ainda não me julgo totalmente errado, mas, após ter passado eu mesmo algum tempo na França, entendo que “uma certa ideia da França” não é algo totalmente descabido. Não vou me meter a falar agora que ideia é essa porque no máximo vou dizer qual é a minha ideia da França — decerto mais romântica do que realista. (É delicioso ser estrangeiro.)

Segunda. Essa “certa ideia” (notaram a ambiguidade em “certa”?), mesmo que exista, mesmo que dependa de quererem que ela exista, não pode ser desejada diretamente. A minha identidade individual, que me distingue, é aquilo que eu faço sem querer diretamente; o meu estilo pode ser em parte calculado, mas a parte que vai ficar como “eu” aos olhos dos outros é a parte que eu não calculei, que é uma decorrência do meu modo de agir. Você produz um texto claro e interessante porque seu foco é o que você pretende dizer, não a produção de um texto claro e interessante. Quem quer produzir um texto claro e interessante acaba produzindo aquelas redações nota 10 que depois viram pretextos para questões de prova. Ou ainda: suponha que um dia você e a sua namorada se encontram e tudo é perfeito. Tempos depois, vocês querem reproduzir aquilo. Não dá. Tudo foi perfeito porque “aquilo” não era o foco.

Em parte, é esse o dilema francês; em parte, é esse o dilema da identidade. Quando ela vira um tema, você vira uma banda de rock com dinossauros tocando as mesmas músicas do tempo de Ramsés II. Pode ser legal. Mas não é a mesma coisa. E talvez fosse mais digno sair de cena.

Ou você pode sempre estar em busca de algo. A sua própria identidade pode nunca virar um tema para você próprio. Os outros que digam o que ela foi depois que você morrer. My Way (assim como Imagine) é a canção dos losers cósmicos. Se você tem de afirmar, é porque não é, e provavelmente não foi.

Manifesto de “intelectuais e artistas”

O manifesto de “intelectuais e artistas” que, em plena delação da Odebrecht, fala em “reconstruir o país” e em “construção nacional” ao mesmo tempo em que ataca o rentismo é a piada que escreve a si mesma.

Eu poderia fazer um comentário generalizante, mas sou estudante de literatura comparada, por isso vou fazer uma comparação.

Atualmente moro no sétimo andar de um prédio em Copacabana. O prédio dá para a encosta do morro, o que me proporciona um agradável quintalzinho. Minha vizinha de baixo goza do mesmo benefício.

Porém, minha vizinha fala muito alto: tão alto que já sei da vida dela muito mais do que gostaria. Como falar alto é uma abdicação tácita de privacidade, como falar alto é fazer também seu manifesto, recordarei algumas de suas pitorescas proclamações.

Às sextas ela costuma receber uma faxineira. Não sei se a faxineira mora aqui por perto, mas não é descabido pensar que ela viaja para trabalhar todos os dias, pegando ônibus, metrôs, trens, nos horários mais lotados.

Numa dessas sextas, a vizinha começa a bradar para a faxineira: “Eu já viajei o mundo inteiro! O mundo inteiro! E conheço os Estados Unidos todos! Nova York, Califórnia, tudo! E já fui tantas vezes para Miami que até perdi a conta. Uma vez num restaurante em Miami o gerente nem quis me cobrar. Ele achava que eu era a guia do grupo!”

E essas palavras, que editei e resumi para o benefício do leitor, eram acompanhadas do puro e incomum silêncio da faxineira, que eu imaginava de cabeça meio baixa e olhos levantados, pensando na sua próxima viagem de metrô e em como seria bom não passar 70 minutos de pé, espremida, entre uma condução e outra.

O defeito da minha comparação, porém, é evidente: a vizinha e os “intelectuais e artistas” estão fazendo suas proclamações enquanto as pessoas estão espremidas no metrô.

É contra o Artigo 5º mesmo

Primeiro, caro Mauro, vamos distinguir dois planos: o jurídico e outro que não sei bem como chamar. Não sei se digo social, moral – não sei mesmo.

Não vou discutir no plano jurídico. Há o bendito Artigo 5º da Constituição, que garante aquelas coisas todas. Então é verdade que Caetano Veloso, Chico Buarque etc. não estão pedindo nada de novo, mas apenas que seja cumprida a cláusula pétrea. E eu sei que mexer nesse Artigo 5º seria um problema infernal. Provavelmente alguma lei que liberasse as biografias poderia entrar em conflito com ele e ir parar no STF, onde seria rechaçada.

Só que há aquele outro plano, em que não se discute se a lei é assim ou assado, mas se as coisas deveriam ser assim ou assado. Admito que essa segunda discussão, sem levar em conta as leis que efetivamente existem, é uma futilidade. Talvez se possa censurar as pessoas – a mim mesmo, quem sabe – por essa futilidade. Contudo, creio que acaba aí a censura.

A propósito, eu mesmo sempre digo, nas minhas conversas privadas, que não há liberdade de expressão à americana no Brasil. O que as pessoas querem discutir, isso sim, é se nós não deveríamos ter uma liberdade de expressão mais à americana. Por outro lado, você, pelo que entendi, não apenas explica a nossa lei brasileira, como ainda a acha boa. É isso que vamos discutir.

Creio que ela é péssima. Primeiro porque, como já disse, e aliás nada mais fiz do que repetir feito papagaio um velhíssimo argumento liberal, não pode existir direito de imagem porque ninguém é dono da própria imagem. Quem tem uma imagem de você são os outros. Há quem me julgue um direitista ensandecido, sei lá, e que posso eu fazer para convencer aquelas pessoas de que sou um cara legal? Provavelmente nada. Claro que eu preferiria que todos me vissem como um anjinho perfeito. Mas não dá. E querer usar a pata do Leviatã para forçar as pessoas a manifestar publicamente uma opinião assim ou assado a meu respeito não vai melhorar a situação.

Assim, francamente, acho que botar na Constituição que você tem direito à honra e tal é igual a dizer que você tem direito à saúde. Ah, queriam dizer acesso a um sistema de saúde provido pelo Estado. Olha a metonímia. Isso logo na primeira página. Essa ficção jurídica de fato é um lixo – e nisso concordamos. Mas, de novo, é isso que estamos discutindo: não se a lei deve ou não ser cumprida (eu mesmo acho que geralmente há um risco social menor em cumprir leis ruins do que em descumpri-las), e sim se a lei é ou não imbecil.

Por isso, e aqui chego ao meu segundo lugar, também acho-a imbecil pelo tipo de trabalho que ela impede. Toda lei tem um trade-off. Provavelmente a lei atual faz com que haja menos calúnia, menos difamação. Mas também faz com que haja menos literatura a respeito de figuras importantes, e relega a memória histórica a um pequeno grupo de especialistas. Pense em quantas obras poderiam ter sido escritas sobre a ditadura militar. Pense em como Geisel é fascinante, em como o episódio com o general Sílvio Frota não daria um belo filme, uma bela peça de teatro. São textos que não podem existir.

lusiadas

Quando eu estava na faculdade de Letras da UFRJ, um professor de literatura portuguesa me perguntou se eu tinha lido algum livro de história para conhecer tão bem a história de Portugal no fim da Idade Média. E eu disse: não, apenas li os Lusíadas. Entre o terceiro e o quarto cantos, o Vasco da Gama fictício narra em versos a história portuguesa ao rei de Melinde. Imagine só se os ressentidos com a ascensão do filho bastardo e Mestre de Avis ao trono de Portugal reclamassem da versão camoniana e impugnassem a obra.

Aqui, sei bem, estou usando uma cartada. “Oh! Você destruiria um dos maiores poemas épicos de todos os tempos!” Mas não é só isso. O que eu acho é: o poema forma o imaginário comum. Ninguém realmente acharia, porém, que é melhor acreditar em Camões do que num livro de história. Qualquer pessoa estaria disposta a ouvir um especialista dizendo que “apesar de Shakespeare ter pintado o rei tal de tal jeito…”

Para ficar num exemplo contemporâneo que me é muito caro, Tom Stoppard escreveu a trilogia The Coast of Utopia, cujos personagens são basicamente a primeira geração de revolucionários russos. Pela peça, formei opiniões a respeito de vários daqueles personagens reais. Herzen me parece brilhante mas algo frívolo; Bakhunin, quase um possesso; Belinsky, alguém que eu não gostaria de convidar para jantar, contentando-me em admirá-lo à distância; Turgeniev, que não era revolucionário, simplesmente um chato. Então devíamos impedir Stoppard porque essas pessoas, cujos escritos influenciaram os destinos de dezenas ou centenas milhões de pessoas, têm “direito a uma boa imagem”?

Esse é o trade-off. Ganhamos no uso artístico de personagens relevantes historicamente. Perdemos no sentido de ficarmos à mercê dos artistas. Mas agora não temos memória de nada. Só os historiadores têm. E aposto que até os trabalhos deles estão submetidos ao Artigo 5º.

Veja só, passando a uma escala infinitamente menor de relevância, nem eu, e acho que ninguém, está defendendo que repórteres possam instalar microfones no quarto de Chico Buarque, ou hackear o email do Caetano Veloso. Mas o que se pode dizer se, reunindo todos os registros públicos – não apenas midiáticos – a respeito de alguém que escolheu interferir na vida pública, o resultado final não é lisonjeiro? Posso admitir que existe aí uma decisão moral. Não acho bonita a ideia de ganhar dinheiro com os pecados pregressos de alguém. Porém, se esses pecados tiverem sido públicos, ilegal não deveria ser.

A frivolidade e o sensacionalismo são, enfim, o preço que se paga pelas obras sérias que se beneficiam da liberdade de expressão à americana, que mantém, se não me engano, e como eu defenderia, a possibilidade de processar por calúnia, difamação e invasão de privacidade.

Valsa dos rentistas

*Há mais de dois anos, creio que antes de o negócio das biografias ser discutido no Congresso, O Globo publicou um texto meu exatamente sobre esse assunto, chamado “Rentismo de imagem”.

No fim da adolescência, entre os 18 e os 19 anos, passei um ano e meio morando em Nova York. As saudades do Rio de Janeiro eram grandes, e uma música que eu gostava de ouvir, quando não ia, feito uma besta, comer bolo de aipim e tomar guaraná na Rua 46, a “rua dos brasileiros”, era “Valsa de uma cidade”, na gravação de Caetano Veloso. Minha mãe também gostava. Ouvíamos em CD, que isso foi antes do mp3, num sonzinho pequeno que ficava na divisória entre a cozinha – era uma daquelas cozinhas americanas abertas – e a sala. Da janela, víamos o Hudson com imensos blocos de gelo flutuando, a neve caindo… E nós escutando: “Rio de Janeiro, gosto de você…”

Esses momentos tão sentimentais me vieram à cabeça agora, aqui no Rio de Janeiro, em plena Copacabana, quando me lembrei dos argumentos imbecis que li a respeito das biografias não-autorizadas. Segundo a Folha, o mesmo Caetano Veloso, em seu perfil no Twitter, teria sugerido que o biografado deveria receber pelas biografias não-autorizadas. Wilson Simonal disse que “tudo o que se usa, paga” (sic), frase que gramaticalmente reconstruída provavelmente deve ser interpretada como “deve-se pagar por tudo aquilo que se usa”. Pedro Luís (esse no conozco; meu interesse ativo por música popular cessou nessa época de NY), diz que “Todo mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. (…) E o assunto do produto, não?”

Eis que voltamos à música de Antônio Maria e Ismael Netto, a “Valsa de uma cidade”. Deveriam eles ter pago royalties à prefeitura do Rio para poder compor sobre o calçadão da orla? Se não me engano, “Drão”, de Gilberto Gil, é sobre ou para sua ex-mulher Sandra – cadê o dinheiro da Sandra? Será que Machado de Assis não deveria aliás indenizar a cidade porque em Dom Casmurro o mar, violento, mata um dos personagens principais? (Não vou nem falar que aquele maldito misógino comparou os olhos de Capitu à “vaga do mar lá fora”, ou seja, deu-lhe um olhar assassino.)

Preciso continuar?

Vejam, caros músicos. Se é justo que vocês recebam quando o assunto são vocês mesmos, podem dar o exemplo é começar a remunerar os assuntos que usaram.

Governo não é literatura

Lembro de ver, nos anos 1990, Gustavo Dahl falando da “importância estratégica” do cinema. Para ele, Hollywood era quase o ministério da Cultura americano – e os EUA, numa frase imortal de Olavo de Carvalho, “uma espécie de União Soviética de direita”. Sem querer discutir todas as acepções do termo, nem o que isso pode significar em tempos de NSA, devo dizer que é dessa cena que me lembro quando penso no que Paulo Coelho tem dito a respeito da delegação brasileira presente na Feira de Frankfurt.

Como a imprensa tem divulgado, Paulo Coelho, o autor brasileiro mais vendido de todos os tempos (sobretudo por causa de O alquimista), recusou-se a participar da delegação por achar que outros autores com força comercial deveriam ter sido convidados.

Colocando à parte as minhas próprias inclinações pessoais, e tentando raciocinar em termos – olha a farofa na boca! – “geopolíticos”, não é difícil imaginar que, se o objetivo do governo brasileiro é aumentar a projeção da cultura brasileira, então parece boa ideia investir em autores que vendam bem. Nesse ponto, parece ter razão o coordenador da programaçao brasileira ao dizer à Folha, na matéria já linkada:

“Em sua maioria, são autores que estão despertando amplo interesse em editores internacionais, […] que vêm se abrindo para as mais diferentes vertentes da nossa literatura contemporânea, para além da literatura mais palátavel ao gosto comum.”

Se isso é verdade, é preciso dizer que Paulo Coelho se equivoca duplamente ao dizer:

“Eu duvido que sejam todos escritores profissionais. Dos 70 escritores convidados (LISTA AQUI), eu conheço apenas 20, então os outros 50 nunca ouvi falar. Presumo que sejam amigos de amigos de amigos. Nepotismo.”

São todos escritores. Na pior das hipóteses, era só colocar o nome deles no Google. E, se há escritores comerciais que ele não conhece, então talvez seja ele que esteja defendendo seus próprios amigos. O pior é que eu até simpatizo com essa atitude; com meu temperamento intempestivo, teria feito a mesma coisa.

O argumento contrário ao pró-comercial diria que autores que vendem bem não “precisam” de apoio do governo. Acho que existe um equívoco aí. Qual é o propósito da delegação? Como o governo vai medir o sucesso ou o fracasso de seu investimento? E, por favor, não venham falar que literatura não é mercadoria na feira de Frankfurt. A feira de Frankfurt é como uma Bienal do Livro (só que anual) em que agentes e editoras do mundo inteiro vão negociar direitos autorais. Não venham falar que feira não deve ter mercadoria.

Feira, mercadoria, mercado. Vejam, agora trazendo as minhas convicções pessoais, eu não vejo nada de errado com o que essas palavras indicam. O dinheiro do governo não é criado pelas musas, mas pela atividade econômica das pessoas. A minha pergunta é: se você está tirando dinheiro das pessoas para realizar um investimento, não é razoável (nem que seja como atenuante) ser prudente com o investimento? Ou o objetivo do governo não é aumentar a projeção do Brasil no exterior?

Agora, fosse eu jornalista, nem precisaria ir a Frankfurt para investigar o seguinte. Quanto dinheiro o governo gastou? E as editoras privadas, gastaram quanto? Quantos negócios foram fechados por interferência do governo, quantos por esforços privados, quais os valores? Os critérios, pois é, não são literários. São econômicos. Governo não é literatura. Talvez verifiquemos que o governo não deveria apoiar quem vende pouco porque os resultados seriam pífios, nem deveria apoiar quem vende muito porque essas pessoas realmente não precisam de ajuda…

Galeão & Cumbica

Nossa presidente Dilma Rousseff propôs cinco pactos, diz-me a imprensa. De um deles, já teria desistido, ou ao menos estaria reavaliando o que deseja fazer. Os outros quatro pactos são um primor: um fala em responsabilidade fiscal, e os outros só falam em gastos. Aliás, o pacto da mobilidade urbana fala em 50 bilhões de reais saídos diretamente do Tesouro.

Presidente, se a senhora apregoa a responsabilidade fiscal, o que vai cortar para transferir dinheiro para aquelas metas? Podemos dar sugestões? Podemos fazer passeatas pedindo a redução dos salários e das aposentadorias da burocracia? Podemos iniciar a discussão prática de onde cortar? A senhora vai anunciar quando o prazo para propostas? Eu, por exemplo, sem pensar muito, acho que a verba publicitária do governo pode ser violentamente reduzida (bota violentamente nisso), que cada deputado pode viver com um salário, talvez uns dois assessores e zero passagens (ele trabalha em Brasília, que faça contato com as bases via Skype como todos nós), zero planos especiais, zero etc., o que vale, é claro, para os demais cargos da burocracia, que manteriam, é claro, o direito de criar suas organizações privadas de classe.

Afinal, presidente, se a senhora está propondo responsabilidade fiscal e aumento de gastos ao mesmo tempo, faz isso por quê? Por ser idiota ou por acreditar na nossa ilimitada idiotice? Veja que sou receptivo às duas propostas, e sei que uma não exclui a outra. Também sei que a política é o domínio do marketing, e que o marketing é o domínio da neurolinguística, e me pergunto se a senhora não está apenas provocando estímulos contraditórios para nos deixar estupefatos e atônitos enquanto os absurdos se perpetuam.

Nesse nível de discussão, francamente, só consigo pensar em Roberto Campos, que dizia que o Brasil tinha duas saídas: Galeão e Cumbica.