Alguns já sabem, outros não, mas a notícia aparentemente se tornou pública ontem, e é melhor que haja aqui algo “oficial” do que um disse-me-disse qualquer. Por isso, senhores, preparem-se, respirem fundo, porque não será fácil ler as palavras a seguir: no dia 12 de agosto, em seu apartamento em New Jersey, Sergio de Biasi optou por averiguar diretamente a existência do outro mundo, deixando para nós apenas o seu corpo, e nada mais daquela inteligência que guiou conversas intermináveis nos últimos 15 anos, e que agora aparentemente continuarão interminadas.
Conheci Sergio na PUC do Rio de Janeiro em 1996, cursando a matéria “O homem e o fenômeno religioso” (a PUC obriga todos os alunos, de todos os cursos, a fazer quatro matérias religiosas). Eu naturalmente me sentava no fundo, e ele naturalmente se sentava na frente. E travava aquelas discussões com a professora que faziam dele um colega indesejado, exatamente por denunciar que, apesar de as pessoas irem à faculdade para pegar um diploma, ele tinha ido lá para tentar aprender alguma coisa.
Frequentemente íamos almoçar no Shopping da Gávea, ali ao lado. Eu falava (mal, muito mal) de Descartes. Claro que discutíamos religião, porque eu nasci católico, eu nasci religioso, eu nunca não acreditei, e ele era o oposto, aparentemente um ateu nascido e criado. Mas eu gostaria de crer que estávamos unidos pela curiosidade, ainda que ele fosse um verdadeiro pesquisador das ciências exatas, estudioso de Física e de Computação, e eu nunca tenha passado de um ladrão de tumbas, um sujeito cheio de amigos eruditos que pede uma ajudinha para pilhar os tesouros da civilização com algum propósito prático mais ou menos imediato. Não por acaso, na última vez em que nos encontramos pessoalmente, em uma de suas visitas ao Brasil, eu pedi que ele me explicasse o teorema de Gödel e aquele negócio da incompletude.
Sempre que essas coisas indizíveis acontecem, é inevitável pensar no poema “Easter, 1916”, de Yeats, em que o poeta, vendo as pessoas que chegam do massacre, não tem nada para lhes oferecer além de “polite, meaningless words” (“palavras educadas e vazias”). Nesse poema Yeats também fala o seguinte de um desafeto, o que não seria o caso aqui: “he too has resigned his part in the casual comedy” (“ele também abandonou seu papel nessa comédia tão banal”), palavras que poderiam encher mais meu coração se eu não achasse que ver o mundo como uma comédia tão banal pressupõe uma identificação obviamente falsa com Deus. Em vez disso, lembro do Sérgio com outras palavras do poema, palavras que também me fazem pensar no pai de um grande amigo, assassinado em 2007: “so sensitive his nature seemed, so daring and sweet his thought”(“sua natureza parecia tão sensível; sua inteligência, tão audaz, tão gentil”).
Também penso que eu mesmo posso estar escrevendo isto aqui para cobrir o vazio inevitável. E vou pensando, à medida que envelheço, que alguns de nós podem ser como meteoros que se chocam contra a atmosfera: nem todos chegamos inteiros aonde chegamos, esperamos, não em vão, se é que vocês se lembram do poema “Travessias”, de Bruno Tolentino.
Naquele mesmo ano de 2007, uma ex-namorada minha de 2002 achou por bem jogar-se de um décimo andar. Nos cinco anos em que praticamente não nos falamos eu praticamente não pensei nela; desde o dia de seu enterro, eu penso nela todos os dias. Quanto à pergunta inevitável, “por quê?”, só posso dizer que acho que existem milhões de motivações diferentes, e que cabe a nós que ficamos nesta terra evitar a tentação de julgar aquelas pessoas reais, ainda que seja difícil evitar um certo ressentimento, como se elas tivessem nos dado a esnobada definitiva, mostrando que preferiam a incerteza do país ignoto de que nenhum viajante retorna à companhia da nossa imperfeita mortalidade. Mas aqueles entre nós que, como eu, creem, podem ter a esperança de um dia poder retomar as conversas interminadas, agora em outro plano, em que elas, também de outro modo, serão intermináveis.
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No sábado, 20 de agosto, haverá às 11h da manhã uma missa pelo Sergio na igreja do colégio Santo Inácio, em Botafogo, aqui no Rio de Janeiro.
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