Meu caro, li o artigo da Flora Süssekind, tive vontade de escrever algo, mas estou realmente muito ocupado. Por isso aproveito sua menção para deixar aqui uma pequena nota sobre como a rivalidade mimética afeta essas discussões literárias.
Primeiro, toda e qualquer discussão pode ser contaminada mimeticamente. O exemplo mais gritante é o da discussão de futebol. Será o Flamengo melhor do que o Fluminense? Ora, isso é muito fácil de responder. Basta que as duas partes concordem em adotar critérios objetivos e chegarão a uma resposta. Essa resposta, por sua vez, tende a ser complexa: “O Flamengo fez mais X, e o Fluminense fez mais Y.” Desse modo, vai ficar claro que sob alguns aspectos um time é melhor, mas sob outro o outro time é que é. Não é essa, porém, a resposta que o torcedor busca. Insatisfeito, ele vai mencionar algum fator intangível e/ou extra-futebolístico (“o Flamengo é o time do povo brasileiro”) para justificar a superioridade de seu time.
Claro que isso é muito evidente para mim porque não dou a mínima para futebol. Se eu ligasse, seria difícil. Tente dizer para mim que Mário de Andrade pode ser vagamente comparado a Bruno Tolentino e depois que eu tiver arremessado todos os volumes do dicionário Caldas Aulete na sua cabeça oca vamos começar a discutir. Tudo bem, peguei um exemplo radical. Mas a vantagem desse radicalismo é que ele inclui concepções muito distintas de literatura. Para uma discussão séria, seria preciso encontrar o terreno comum.
Aí é que eu chego no aspecto não-mimético, essa possibilidade sempre aberta, quase sempre recusada. A discussão mimética vai se voltar para o adversário; a não-mimética, ou “séria”, para o objeto. O melhor exemplo disso está na Suma Teológica. São Tomás de Aquino discute algumas proposições bem imbecis sem jamais chamar os adversários de imbecis, sem nem sugerir uma gota de sarcasmo. Aquilo é uma lição de caridade.
Por isso, é possível discutir a sério uma pergunta como “a crítica literária tem cumprido seu papel?”, ainda que se tenha de admitir que as dificuldades são imensas. Há as dificuldades de definir o que seria a crítica literária, o que seria seu papel, e de como aferir se ele está sendo cumprido. No entanto, a história da literatura não caminha com esse bom senso todo, até porque daria muito trabalho.
A história da literatura caminha pela eleição de bodes expiatórios e pela exclusão de certos autores e idéias. O modernismo de 22 é o melhor exemplo. Machado de Assis morreu em 1908 e continua mais moderno do que todo o movimento modernista. Augusto dos Anjos é igualmente anterior e teria todo o direito de ficar perplexo com as “reivindicações” modernistas. Mas os modernistas decidiram linchar coletivamente Coelho Neto e as poesias de penteadeiras. Desse linchamento nasceram as identidades modernistas. Depois veio a poesia concreta e quem não queria linchar a poesia “poética” ou “lírica” simplesmente tinha ido para a festa errada. Um Drummond ou um Bandeira já estavam formados o suficiente para não precisar participar do espírito de grupo (apesar de Bandeira ter cedido parcialmente, ao fim da vida), mas provavelmente foi o relativo atraso que fez com que o sublime Ausência viva, de Octavio Mora, nunca tivesse passado da primeira edição, em 1956. Aliás, mesmo hoje, com o predomínio de um estilo baço (escrevi sobre isso para a Dicta que vai sair em junho) na poesia de maior pretensão, Mora pode até vir a ser reconhecido, mas acho difícil que venha a ser imitado.
O que está acontecendo agora é que pessoas como eu ou você não queremos ir à festa modernista e concretista linchar o lirismo. Preferimos, aliás, linchar o modernismo e o concretismo, e escrever longos textos explicando porque é que eles são culpados e merecem o linchamento. Nesses textos, esses objetos, o modernismo e o concretismo, podem até ter algo de si efetivamente discutido, mas essa discussão estará subordinada a um propósito. Outro dia o Alexandre Soares Silva disse que para escrever bem é preciso ter certezas, e eu digo que essa certeza é a de que o bode expiatório é culpado e merece sim todas as pedras que queremos atirar nele.
Flora Süssekind, por sua vez, adotou a estratégia mimética de vaga inspiração cristã, assumindo o papel da vítima inocente contra a turba enfurecida, que, no texto dela, era chamada de “hegemonia conservadora” (constituída do blog do Sergio Rodrigues, do jornal Rascunho e de um texto de Alcir Pécora), a qual, por sua vez, na verdade era uma forma de “beletrismo”. Claro que na hora a minha reação foi mimética e eu pensei que a Senhora Süssekind quisesse tapar o sol com a peneira: primeiro a crítica universitária tenta monopolizar a seriedade, e depois, diante do próprio fracasso, acusa o resto do mundo de falta de seriedade. Na verdade, todos temos razão em algum aspecto, mas não, como diria Aristóteles, quanto ao mesmo aspecto e ao mesmo tempo. Para avaliar a questão a sério, precisaríamos de muito tempo, dinheiro e inteligência.
Flora Süssekind tem a sensação, creio, de uma certa decadência. Porque a verdade, como falei, é que a história da literatura caminha pela troca de bodes expiatórios. Assim como os adolescentes brigam com os pais, ou os punem com a indiferença, Flora Süssekind sente a irrelevância que boa parte de sua geração tem para as gerações mais novas. Em The Four Loves (traduzido em português por um ser mítico), um livrinho memorável, C. S. Lewis diz que o professor tem de estar preparado para o fato de que seus alunos de hoje serão seus rivais de amanhã. Edipianamente, se quiserem, os filhos têm de matar os pais, porque eles, filhos, querem o trono. A crítica acadêmica hoje é ignorada ou atacada. Fazer isso em bloco é injusto: só para citar gente que eu admiro e que trabalha na universidade, no campo das Letras, temos Paulo Henriques Britto, Lawrence Flores Pereira, Kathryn Rosenfield, João Cezar de Castro Rocha. Esses aí não são só bons não: são MUITO bons. Quem ignora o trabalho deles está chamando a si próprio de idiota. Agora, eu também sei que para cada um deles há 10 heideggerianos que não sabem alemão, e muito menos grego, e ainda assim saem por aí excavando a linguagem metafisicamente, e 100 amantes da contemporaneidade que acham que a ironia foi inventada em 1920.
A era do monopólio da seriedade pela crítica universitária talvez nunca tenha existido, mas o certo é que ela acabou. Wilson Martins é só um pretexto para chorar pelo prestígio supostamente perdido. É difícil ver que a glória do mundo é transitória. Hoje em dia, as coisas ainda pioram. Com a internet, uma pessoa que lê o que eu escrevo pode uma hora me achar um gênio, e depois concluir que eu sou um retardado. Sem jamais perceber que não fui eu que subi sozinho no pedestal que há na cabeça dela, ela nunca perderá de vista que foi ela, porém, que me tirou de lá. A única coisa que eu posso pedir é uma certa boa vontade, e tentar demonstrar a mesma boa vontade para com os outros. A boa vontade de discutir teses, e não pessoas; a boa vontade de prestar atenção nos objetos, e não nos rivais que não queremos admitir como rivais.
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