Xoxó x Pedro, a cólera de Érico

1. O lendário Caribó Xoxó fez-me umas perguntas e, vejam só, eu as respondi. Como diz Brás Cubas, “cousa é que admira e consterna”.

2. Érico Nogueira, aliás jabutizável, denunciou a trapalhada e Denise Bottmann anunciou que a denúncia teve efeito.

Trocar “Odisseu” por “Ulisses” e “atrida” por “átrida” num texto de poesia e achar que nada vai mudar. Isso é que dá as faculdades de Letras terem 20 matérias de masturbação mental teoria literária e 2 de literatura.

O livreiro e o crítico

Quem faz faculdade de Letras descobre que um dos principais problemas do ensino é a perpetuação da confusão entre um princípio metodológico – a abstração do juízo de valor – e uma afirmação de fato – tudo tem o mesmo valor. Isso é, se a a Linguística considera que o português escrito por Machado de Assis e aquele usado nas letras de funk tem o mesmo valor para que se entenda o “sistema” da língua, então a faculdade de Letras conclui que todos os registros têm o mesmo valor, e eu não queria parar a argumentação agora para sugerir que se escreva um livro de Linguística com o português das letras de funk. Analogamente, as obras literárias também são analisadas segundo as suas características estruturais e temáticas, sem que ninguém se pergunte se X é melhor do que Y, e por quê. Isso, em parte, explica a leitura de tanta porcaria contemporânea na gradução. Uma faculdade de Letras deveria formar linguistas ou críticos literários, ou pelo menos desenvolver nos leitores algum potencial crítico; a postura científica de “neutralidade” está formando livreiros teóricos, pessoas que seriam capazes de descrever as obras mas que não se atreveriam a responder a temível pergunta: dado que vamos morrer e que o tempo é curto, em que devo investir meu tempo e minha atenção?

Aqui chegamos no outro extremo. O crítico, quer ele queira, quer não, é uma espécie de corretor do prestígio das obras. O crítico ocupa lugares de prestígio na sociedade e suas palavras serão ouvidas. Adotar a postura “científica” é evitar a pergunta fundamental. Claro que você pode ser até contra essa pergunta fundamental. Você pode achar que cada um deve decidir o que ler, e fazer suas próprias escolhas, sem perceber que isso é uma mentira existencial, porque você pegou essa ideia de uma bibliografia selecionada por alguém de prestígio num lugar de prestígio (um professor na universidade). Sem contar que abdicar desse papel é propor que cada um refaça o percurso coletivo de toda a humanidade. E mesmo que você pegue as pessoas que aparentemente refizeram esse percurso, como Harold Bloom e Umberto Eco, elas não chegaram a conclusões muito diferentes das do cânon “oficial”.

No Brasil, de fato, ficamos divididos entre dois extremos. O jornalismo literário não é exatamente grande coisa. Não me recordo de ter lido muitas resenhas negativas, para começar. Mesmo as resenhas positivas se limitam a mimetizar o estilo acadêmico, falando das características das obras e não de seu possível proveito. A crítica acadêmica é essencialmente ilegível e fala de literatura como um físico falaria a seus pares, sem preocupação com a inteligibilidade extramuros. Sugerir que a literatura se refere a algo no mundo e que vale a pena discutir essa relação é uma espécie de heresia. Mas o leitor está no mundo. Até os outros textos estão no mundo. A faculdade pode achar que um texto se refere a outro texto se refere a outro texto se refere a outro texto, mas estamos todos no mundo, leitores e textos.

Lamento muito tudo isso. Acho que os principais livros da minha vida foram livros de crítica literária, e, destes, os únicos em português foram pequeninas obras de Manuel Bandeira. Hoje em dia diriam tratar-se de impressionismo. Esses livros me levaram a outros, de crítica e de poesia. A crítica poderia servir para isso, para educar o gosto e por meio do gosto a própria pessoa. É preciso possuir certas qualidades para ser tocado por certos livros; o crítico poderia dar dicas de como se tornar capaz de apreciá-los, e isso não seria tão diferente de um crítico de vinhos que sugerisse prestar atenção em certas características. Atenção, aliás, é uma palavra fundamental. Significa tanto olhar numa certa direção quanto olhar por um certo tempo. E ficar parado, concentrado, não é uma coisa má. Depois, pensar na experiência. Fazer com que as ideias fiquem enraizadas na experiência, levando os leitores a entender por que gostam disso ou daquilo. E não simplesmente agir como um livreiro que fosse capaz de organizar todas as estantes sem estabelecer uma relação pessoal com obra nenhuma.

Da pose à piada pronta

Acompanhei por alto as discussões sobre Oswald de Andrade inspiradas pela FLIP. E fico impressionado, mas talvez só porque, desde o fim da faculdade, vivo cá no meu assento etéreo, lendo apenas o que me apetece.

Primeiro, parece que toda a discussão literária no Brasil é uma discussão de pose. Ou, se você preferir, de postura, de atitude. O escritor deve ser assim, deve ser assado. Porque é preciso fazer uma literatura assim, ou assado. Uma literatura que seja nacional, original, espontânea, atenta às influências mas sem perder autonomia, criativa, mágica, insubmissa, inteligente mas sem pedantismos e, é claro, transgressora. Não sei como ninguém percebe que o Ministério da Educação é a síntese suprema da ideia mesma de establishment, e que todos os professores do Brasil elogiam a transgressão. Eu nunca vi um professor elogiar um autor porque ele respeitou o cânone de sua época como ninguém e agradou a todos. Não perceber que a consequência lógica de o establishment elogiar ininterruptamente a transgressão é fazer da ideia de transgressão o centro do conservadorismo é só o começo do problema de uma zelite acadêmica que só conhece as palavras e nunca viu as coisas. Não é à toa que hoje mesmo no suplemento literário do Diário do Balneário as pessoas estão lá discutindo o que é transgressão. Se todo mundo quer transgredir, não há transgressão, ué. E se está todo mundo tentando transgredir, nem dá para ser conservador direito também. Você tem de simplesmente se afastar e buscar suas referências naquele lugar da universidade que só é frequentado pelos concurseiros que nem sequer estão matriculados ali: a biblioteca. Eu acredito, por exemplo, que a melhor poesia feita hoje no Brasil, poesia excelente mesmo, passa totalmente ao largo da discussão literária acadêmica ou jornalística.

Primeiro de novo, é esse o legado de Oswald de Andrade e do Modernismo de 1922. Os melhores poemas modernistas não estão ligados à Semana de Arte Moderna. Aliás, nem os poemas mais conhecidos estão ligados à Semana. A Semana de Arte Moderna Contada nas Escolas é uma narrativa para agradar adolescentes, uma espécie de Cinderela das letras:

Era uma vez uma sociedade conservadora e empolada. Então apareceu um grupo de amigos do barulho, cheio de ideias novas e transgressoras: os modernistas. Os burguesinhos torceram o nariz. Mas foram vencidos pela esterilidade de suas próprias ideias e inevitavelmente deram lugar à novidade e ao vigor da juventude.

E neste momento o aluno adolescente liga as pontas sem perceber: a professora está contando essa história porque eles venceram mesmo, e o bom é ser jovem e transgressor e buscar a novidade.

Primeiro de novo de novo, é uma zelite acadêmica que olha tudo como pose, mas que não considera a própria pose; que acusa os outros de não estar cientes do seu lugar no mundo, sem jamais se considerar culpada dessa acusação. Na minha experiência, porém, o mais comum é sermos nós mesmos culpados daquilo de que mais acusamos os outros. E isso também vale para os nossos conservadores de internet: gente que sequer leu Machado de Assis e cujo monolinguismo funcional melhor seria chamado de meiolinguismo cultural não consegue dormir por causa da decadência das coisas. Você não “combate a ignorância” reclamando na internet. Isso você faz calando a boca e lendo um livro. E fazendo um esforcinho para entender alguma coisa.

O mais irônico é que dois poetas que certamente estão entre os cinco (ou três, ou até dois…) maiores da língua, Camões e Fernando Pessoa, não tentaram ser transgressores. Os dois fizeram o que podiam para atender ao gosto da época e não conseguiram entrar na turma das pessoas chiques. Até poemas elogiando o governo eles escreveram. Isso deve servir para mostrar que buscar a transgressão não garante nadinha, e que para fazer parte do grupo das pessoas chiques é mais importante já ter nascido dentro dele, ou aprender a imitar seus trejeitos, do que se esforçar para escrever boa literatura. Quer dizer, a mera ignorância desse detalhe, que ajudaria a aguçar a autoconsciência, mostra o quanto a ideia da Semana de 1922 impregna a produção crítica e literária.

Ou, resumindo tudo, a Semana de 1922 devia ser entendida como uma espécie de peste mental, que vai transformando os contaminados em piadas prontas involuntárias.

Onde vamos parar?

Diversas coisas – estou concluindo a faculdade, vejam só – têm-me mantido afastado do blog. Mas agora eu preciso falar da minha perplexidade. Acabo de ver Ferreira Gullar dizendo (no Globo de hoje) que a poesia de Salgado Maranhão tem “sinergia”. Ferreira Gullar! O que virá depois? Vamos um dia dizer que a poesia de Fulano “agrega valor” e “otimiza processos”? Vamos dar aulas de poesia usando apresentações de PowerPoint e aquele laser vermelho?

O leitor pode pensar que não passo de um purista que quer manter o reino da poesia e da crítica intocado pelo vil linguajar dos gerentes. Em muitos sentidos, é isso mesmo. “Agregar valor” pode entrar numa obra literária de duas maneiras legítimas: como zombaria e como expressão de um personagem que não se entende bem com as palavras.

Não podemos também deixar de cogitar que Ferreira Gullar estava na verdade sendo polido e gozando da cara de todos ao falar em “sinergia”. Se “sinergia” é uma espécie de complementaridade (eu queria dizer “concorrência”, mas ninguém lembra mais que há um sentido de “concorrência” que equivale a “correr juntos”) virtuosa de vários objetos para um mesmo fim, toda poesia tem “sinergia”, e dizer que essa palavra descreve a poesia de alguém é tão expressivo quanto dizer que a poesia de alguém é feita de linguagem.

Se Gullar estava sendo irônico, pois, tenho de perguntar se um dia não vamos poder descansar um pouco de tanta ironia.

O ideal do crítico

Antes de tudo, o crítico é um especulador de prestígio. Assim como o funcionário de um banco decide quem apresenta mais ou menos risco enquanto pagador de empréstimos, o crítico vai dizer ao leitor onde investir seu tempo e seus esforços. O prestígio que atribuímos hoje a Homero, Shakespeare, Balzac ou Machado de Assis vem dos críticos.

Se lemos um autor consagrado e não gostamos, presumimos que o problema é nosso; se lemos um autor desconhecido e não gostamos, presumimos que o problema é do autor, e isso não quase nunca tem a ver com a nossa capacidade de avaliar uma obra, e sim com o prestígio que lhe atribuímos previamente. Creio que já disse isso aqui.

Um dos principais problemas da crítica brasileira é ter pouco prestígio. Por isso ela não faz nem derruba autores, e morde-se de inveja do público que os escolhe à sua revelia.

Você pode nietzscheanamente querer recusar o papel de modelo, pode fingir que não tem essa responsabilidade, que quer que o público seja assim ou assado, mas essa força existe de todo modo. O crítico pode aceitar essa responsabilidade, ou continuar escrevendo coisinhas ininteligíveis somente para seus pares.

A rivalidade mimética no cânon literário

Meu caro, li o artigo da Flora Süssekind, tive vontade de escrever algo, mas estou realmente muito ocupado. Por isso aproveito sua menção para deixar aqui uma pequena nota sobre como a rivalidade mimética afeta essas discussões literárias.

Primeiro, toda e qualquer discussão pode ser contaminada mimeticamente. O exemplo mais gritante é o da discussão de futebol. Será o Flamengo melhor do que o Fluminense? Ora, isso é muito fácil de responder. Basta que as duas partes concordem em adotar critérios objetivos e chegarão a uma resposta. Essa resposta, por sua vez, tende a ser complexa: “O Flamengo fez mais X, e o Fluminense fez mais Y.” Desse modo, vai ficar claro que sob alguns aspectos um time é melhor, mas sob outro o outro time é que é. Não é essa, porém, a resposta que o torcedor busca. Insatisfeito, ele vai mencionar algum fator intangível e/ou extra-futebolístico (“o Flamengo é o time do povo brasileiro”) para justificar a superioridade de seu time.

Claro que isso é muito evidente para mim porque não dou a mínima para futebol. Se eu ligasse, seria difícil. Tente dizer para mim que Mário de Andrade pode ser vagamente comparado a Bruno Tolentino e depois que eu tiver arremessado todos os volumes do dicionário Caldas Aulete na sua cabeça oca vamos começar a discutir. Tudo bem, peguei um exemplo radical. Mas a vantagem desse radicalismo é que ele inclui concepções muito distintas de literatura. Para uma discussão séria, seria preciso encontrar o terreno comum.

Aí é que eu chego no aspecto não-mimético, essa possibilidade sempre aberta, quase sempre recusada. A discussão mimética vai se voltar para o adversário; a não-mimética, ou “séria”, para o objeto. O melhor exemplo disso está na Suma Teológica. São Tomás de Aquino discute algumas proposições bem imbecis sem jamais chamar os adversários de imbecis, sem nem sugerir uma gota de sarcasmo. Aquilo é uma lição de caridade.

Por isso, é possível discutir a sério uma pergunta como “a crítica literária tem cumprido seu papel?”, ainda que se tenha de admitir que as dificuldades são imensas. Há as dificuldades de definir o que seria a crítica literária, o que seria seu papel, e de como aferir se ele está sendo cumprido. No entanto, a história da literatura não caminha com esse bom senso todo, até porque daria muito trabalho.

A história da literatura caminha pela eleição de bodes expiatórios e pela exclusão de certos autores e idéias. O modernismo de 22 é o melhor exemplo. Machado de Assis morreu em 1908 e continua mais moderno do que todo o movimento modernista. Augusto dos Anjos é igualmente anterior e teria todo o direito de ficar perplexo com as “reivindicações” modernistas. Mas os modernistas decidiram linchar coletivamente Coelho Neto e as poesias de penteadeiras. Desse linchamento nasceram as identidades modernistas. Depois veio a poesia concreta e quem não queria linchar a poesia “poética” ou “lírica” simplesmente tinha ido para a festa errada. Um Drummond ou um Bandeira já estavam formados o suficiente para não precisar participar do espírito de grupo (apesar de Bandeira ter cedido parcialmente, ao fim da vida), mas provavelmente foi o relativo atraso que fez com que o sublime Ausência viva, de Octavio Mora, nunca tivesse passado da primeira edição, em 1956. Aliás, mesmo hoje, com o predomínio de um estilo baço (escrevi sobre isso para a Dicta que vai sair em junho) na poesia de maior pretensão, Mora pode até vir a ser reconhecido, mas acho difícil que venha a ser imitado.

O que está acontecendo agora é que pessoas como eu ou você não queremos ir à festa modernista e concretista linchar o lirismo. Preferimos, aliás, linchar o modernismo e o concretismo, e escrever longos textos explicando porque é que eles são culpados e merecem o linchamento. Nesses textos, esses objetos, o modernismo e o concretismo, podem até ter algo de si efetivamente discutido, mas essa discussão estará subordinada a um propósito. Outro dia o Alexandre Soares Silva disse que para escrever bem é preciso ter certezas, e eu digo que essa certeza é a de que o bode expiatório é culpado e merece sim todas as pedras que queremos atirar nele.

Flora Süssekind, por sua vez, adotou a estratégia mimética de vaga inspiração cristã, assumindo o papel da vítima inocente contra a turba enfurecida, que, no texto dela, era chamada de “hegemonia conservadora” (constituída do blog do Sergio Rodrigues, do jornal Rascunho e de um texto de Alcir Pécora), a qual, por sua vez, na verdade era uma forma de “beletrismo”. Claro que na hora a minha reação foi mimética e eu pensei que a Senhora Süssekind quisesse tapar o sol com a peneira: primeiro a crítica universitária tenta monopolizar a seriedade, e depois, diante do próprio fracasso, acusa o resto do mundo de falta de seriedade. Na verdade, todos temos razão em algum aspecto, mas não, como diria Aristóteles, quanto ao mesmo aspecto e ao mesmo tempo. Para avaliar a questão a sério, precisaríamos de muito tempo, dinheiro e inteligência.

Flora Süssekind tem a sensação, creio, de uma certa decadência. Porque a verdade, como falei, é que a história da literatura caminha pela troca de bodes expiatórios. Assim como os adolescentes brigam com os pais, ou os punem com a indiferença, Flora Süssekind sente a irrelevância que boa parte de sua geração tem para as gerações mais novas. Em The Four Loves (traduzido em português por um ser mítico), um livrinho memorável, C. S. Lewis diz que o professor tem de estar preparado para o fato de que seus alunos de hoje serão seus rivais de amanhã. Edipianamente, se quiserem, os filhos têm de matar os pais, porque eles, filhos, querem o trono. A crítica acadêmica hoje é ignorada ou atacada. Fazer isso em bloco é injusto: só para citar gente que eu admiro e que trabalha na universidade, no campo das Letras, temos Paulo Henriques Britto, Lawrence Flores Pereira, Kathryn Rosenfield, João Cezar de Castro Rocha. Esses aí não são só bons não: são MUITO bons. Quem ignora o trabalho deles está chamando a si próprio de idiota. Agora, eu também sei que para cada um deles há 10 heideggerianos que não sabem alemão, e muito menos grego, e ainda assim saem por aí excavando a linguagem metafisicamente, e 100 amantes da contemporaneidade que acham que a ironia foi inventada em 1920.

A era do monopólio da seriedade pela crítica universitária talvez nunca tenha existido, mas o certo é que ela acabou. Wilson Martins é só um pretexto para chorar pelo prestígio supostamente perdido. É difícil ver que a glória do mundo é transitória. Hoje em dia, as coisas ainda pioram. Com a internet, uma pessoa que lê o que eu escrevo pode uma hora me achar um gênio, e depois concluir que eu sou um retardado. Sem jamais perceber que não fui eu que subi sozinho no pedestal que há na cabeça dela, ela nunca perderá de vista que foi ela, porém, que me tirou de lá. A única coisa que eu posso pedir é uma certa boa vontade, e tentar demonstrar a mesma boa vontade para com os outros. A boa vontade de discutir teses, e não pessoas; a boa vontade de prestar atenção nos objetos, e não nos rivais que não queremos admitir como rivais.

Obrigando adolescentes à leitura

O suplemento infanto-juvenil do Globo de ontem levantava a pergunta sobre aquilo que os adolescentes deveriam ser obrigados a ler na escola. Ontem, também, na minha última incursão provável pela literatura brasileira na UFRJ, fiquei sabendo quais livros eu seria obrigado a ler para obter um crédito, e posso dizer que, entre os quatro títulos, apenas um me apeteceria.

A questão, na verdade, já está tão estonteantemente viciada que mal é possível abordá-la; certamente não é possível abordá-la sem fazer uma série de distinções preliminares. Por isso mesmo quis começar o texto dizendo que o que está em jogo é aquilo que os adolescentes deveriam ser obrigados a ler. Desse modo, ao menos fica explícito que você já está concordando que os adolescentes devem ser obrigados a ler alguma coisa. De minha parte, tenho mais interesse em descrever do que em prescrever. Na pior das hipóteses, a prescrição pode ser ajudada por uma boa descrição. Vamos e vejamos alguns pontos.

1. Se você cair na conversa de que é preciso dar aos adolescentes algo que “fale da realidade deles”, “na linguagem deles”, você terá aniquilado o propósito da educação, que nada mais é do que fazer alguém transcender a própria realidade. Nada melhor para adolescentes da periferia carioca do que monstros mitológicos da Grécia antiga.

2. O que é próximo é banal; o que é distante tem prestígio. Adolescentes podem discutir indefinidamente se Zeus é um canalha, se Ulisses é um herói ou um
ador, mas é melhor que não discutam se a professora é idiota. O mínimo que a literatura pode fazer é abrir um mundo imaginário que pode ser compartilhado sem violência, e assim inspirar o sentimento de respeito.

3. Se o adolescente não é dócil à leitura, pouca diferença fará que ele seja obrigado a ler Machado de Assis ou Zequinha Contemporâneo.

4. O risco de uma pessoa de qualquer idade desgostar de algo só porque é obrigatório não pode ser abolido. A PUC me fez ler muito Umberto Eco quando eu realmente não queria. A maturidade me ensinou a respeitar a erudição do homem, mas ainda sinto uma náusea ao escrever as letras de seu nome.

5. A questão de adotar ou não a literatura contemporânea remonta a uma questão anterior a respeito da função e da natureza da escola. Eu, por exemplo, acho que uma função essencial da escola é dar ao aluno uma dimensão do passado, da continuidade histórica. Por isso, nada de Zequinha Contemporâneo; no máximo, menções esparsas a ele. Chegamos aqui a outro ponto: o cânon é estabelecido coletivamente, mas as preferências contemporâneas são individuais. Um aluno de língua portuguesa que vá a qualquer país de língua portuguesa encontrará idêntica reverência a Camões, Pessoa, Herculano, Machado, mas se o Professor Pedro fosse falar de poesia contemporânea, falaria de Bruno Tolentino e sequer mencionaria diversos medalhões com sangue de barata dos cadernos culturais. A questão aqui não é estar certo ou errado nas preferências literárias, e sim estar junto ou separado da comunidade. O passado é comum a todos; a atualidade é diferente para cada um.

6. Não pensem que estou sendo cínico ao fim do item 5. Sucede que eu, como muita gente, não me lembro de uma única fórmula de Química ou Física, e digo sem pestanejar que teria sido mais feliz sem os metilenos, isopropilos, fios sem massa e superfícies sem atrito; mas agradeço pela companhia dos amigos e colegas de escola, e é disso que me lembro com mais gosto…

O estilo baço

Enquanto não encontro o tempo devido para retomar as discussões do momento, deixo aqui um trecho de um ensaio de Auden que diz respeito a uma antiga preocupação minha, e que também vai como um acréscimo a um antigo post de Érico Nogueira. Interessante é observar que Érico fala em “poesia dramática”, que Ezra Pound decerto diferenciaria de “teatro em versos”. O encontro entre a poesia e o drama, senhores, é mais raro do que se imagina (ou quiçá impossível).

Uma outra observação, lamentando que no momento eu só possa mesmo fazer observações, é que a solenidade parece ter-se tornado inviável. As tragédias contemporâneas — penso em Tennessee Williams e Nelson Rodrigues — não têm personagens “elevados”, mas pessoas comuns. Creio que isso se deva à própria dessacralização da política. Hoje é impossível não imaginar uma aula de literatura em que não se diga que a promessa feita por Édipo no início de Édipo Rei de livrar a cidade da peste é uma espécie de “populismo”. Não esqueçamos ainda de que é mais fácil um rico entrar no Reino dos Céus do que um comentarista conseguir não reduzir Antígona a uma espécie de dissidente política. Sempre tenho a impressão de que ainda vão querer julgar Creonte na Corte de Haia por violações de direitos humanos. Se você acha que estou exagerando, pode ficar sabendo que o nobelizado Seamus Heaney, ao ser convidado para fazer uma versão de Antígona , declarou ter encontrado a motivação para o trabalho em George Bush

(Não digo isso para reclamar da dessacralização da política, pelo contrário. Prefiro mil vezes o Lula a um sujeito que se ache descendente dos deuses ou ungido por Deus. O que não posso é fingir que isso não tenha conseqüências para a literatura.)

Agora que escrevo, percebo que essa versão de Heaney provavelmente encarna tudo aquilo a que Auden se refere; e que provavelmente os tragediógrafos gregos já evidenciam essa dessacralização, ao menos em suas atitudes (Ésquilo sendo “mais sacro” e Eurípides menos). Mas a arte é longa, a vida é curta, e vou deixar vocês com Auden.

A julgar pelos poemas que escreveram, todos os poetas modernos que admiro parecem compartilhar minha convicção de que, na época atual, a poesia que pretende ser falada ou lida não pode mais ser escrita em estilo elevado, nem precioso, mas apenas em estilo baço [drab], usando esses termos no sentido com que C. S. Lewis os usava. Por estilo baço refiro um tom de voz calmo, que deliberadamente evita atrair atenção para si, enquanto Poesia com P maiúsculo, e uma certa modéstia nos gestos. Sempre que um poeta moderno levanta a voz, ele, como se fosse um homem usando peruca ou sapatos de plataforma, me causa um certo desconforto.

Tenho as minhas teorias — e imagino que meus colegas também tenham as deles — sobre por que as coisas são assim, mas não vou entediá-los infligindo-as a vocês. Para a poesia não-dramática, isso não cria nenhum problema; mas, para o drama em versos, cria. Ao escrever suas peças em versos, Eliot tomou, creio, o único caminho possível. Excetuando alguns momentos peculiares, manteve baço o estilo. Não consigo acreditar, porém, que ele tenha ficado muito feliz por ter de fazer isso, pois atuar em público é, como dizemos, “fazer cena”; isso é coisa que um estilo elevado pode fazer despudoradamente, mas um estilo baço é obrigado a fingir que não está “fazendo cena”. O que tentei mostrar foi que, enquanto forma de arte que inclui palavras, a ópera é o último refúgio do estilo elevado, a única arte para a qual um poeta nostálgico daquelas épocas passadas, em que os poetas podiam escrever de modo grandiloqüente por si próprios, ainda pode contribuir, desde que se dê ao trabalho de estudar o métier e tenha a sorte de encontrar um compositor em quem acredite.

W. H. Auden, “The World of Opera”. Secondary Worlds. Faber and Faber: Londres, 1968. p. 102

Leia o trecho no original.

Para um breve resumo do que C. S. Lewis quis dizer com drab style, ver este trecho do livro de Arana sobre Auden.

Breve nota sobre a primazia do passado

Em “The World of the Sagas”, o segundo ensaio de Secondary Worlds, W. H. Auden propõe a tese de que as sagas islandesas são uma forma de realismo social.

Fiquei imaginando que a investigação dessa tese valeria um ensaio interessante, que teria de primeiro encontrar alguma definição socialmente aceita de — redundância inevitável — realismo social. Essa definição deveria ter surgido ou como uma proposta que deu origem a certas obras, ou como uma reunião de características de certas obras que passaram a ser classificadas como “realismo social”. Nos dois casos, porém, o aspecto convencional, isto é, daquilo que é socialmente aceito, teria de prevalecer. Inventar uma definição de realismo social para dizer que as sagas islandesas pertencem a esse gênero seria um mero truque retórico, que se aproveitaria do interesse gerado pelo contraste improvável entre algo tão aparentemente moderno quanto “realismo social” e algo tão aparentemente arcaico quanto “sagas islandesas”, sem, na realidade, demonstrar a semelhança entre os dois elementos.

Logo depois de imaginar isso, recordei que esse é um dos principais métodos de determinação do dogma católico: a determinação daquilo que é aceito há mais tempo e por certas pessoas, de modo a assegurar uma continuidade de crenças. Uma pergunta fundamental, diante de uma dúvida sobre a existência ou a inexistência de uma crença, é se um determinado grupo de pessoas — os apóstolos, os Padres da Igreja — a compartilhariam ou não. Assim, o método para saber se as sagas islandesas são uma forma de realismo social teria alguma semelhança com o método para saber se o Papa é mesmo infalível em questões de doutrina.

A principal diferença, é claro, é que, nesse nível, os gêneros literários só têm existência social, isto é, realismo social é aquilo que for aceito como realismo social. Assim como os autores literários têm de capturar seus leitores, também os críticos têm de convencer o público de suas definições. O dogma católico, porém, se refere a um objeto que existiria independentemente de sua formulação dogmática: se o Papa é infalível, é infalível mesmo que a Igreja nunca formule a doutrina da infalibilidade.

Permanece entretanto a semelhança do método de como chegar a uma determinada tese: a investigação histórica e a comparação literária, com o passado servindo de modelo (isto é, sendo mais do que mera informação) e de perspectiva.

O caso brasileiro não é especial

Mui acertadamente, Paulo Polzonoff comenta um problema da literatura brasileira:

…literatura brasileira, em geral, não é livro que se queira ler. É livro que se pretende estudar, analisar, discutir. Aquilo que parece um romance é, na verdade, um objeto de estudo — um livro praticamente didático.

Logo, convém mesmo deixar a literatura brasileira bem separadinha daqueles livros que a gente compra porque quer lê-los à noite, antes de dormir, ou na praia. Minha sugestão é que o mercado editorial comece a lançar promoções do tipo “Compre este livro e ganhe uma tese”. Pode dar certo.

Sergio Rodrigues pode observar que nessa “provocação” há “generalizações indevidas”. Mas toda generalização é indevida… E eu não vou me dar ao trabalho de mencionar as exceções.

Recentemente a UFRJ me obrigou a ler um livro desses. Um romance contemporâneo que já valeu muitos mestrados. No meu trabalho a respeito, limitei-me a observar que ele não passava da mesma velha versão requentada do futurismo de Marinetti, que desde 1922 é vendida como a mais ousada das vanguardas literárias.

Os problemas já foram diagnosticados mil vezes. De um lado, os artistas são prejudicados pela crença no progresso. É mais importante jamais repetir algo do que fazer algo de bom, de interessante. Interessante no sentido de “algo que prenda a sua atenção”. Obras de arte podem ser profundas e até profundíssimas. Mas não podem ser chatas. Se só existe a parte profunda e profundíssima, o único leitor possível é o sujeito que já ganhou bolsa de mestrado e agora tem a opção de entregar a tese ou devolver o dinheiro ao Ministério da Educação.

Isso é que leva à estratificação da cultura brasileira. O povo vê Zorra Total e novela. A classe média vê séries americanas e inglesas e lê romances estrangeiros (ou, no meu caso, poesia e teatro). A suposta elite intelectual universitária consome coisas produzidas por ela própria. Lembro daquela terceira parte do Gulliver em que as pessoas tinham servos cuja função era despertá-los de suas conversas idiotas e hipnotizantes.

O efeito colateral disso é que até a parte interessante da produção cultural é malvista. Eu mesmo já observei a total irrelevância da poesia no Brasil. Poesia só interessa a quem escreve ou faz tese. O romance pelo menos encontra algum público naquela classe média de que falei.

E, no entanto, nada disso é novo na História. Como já se lembrou, vejamos o que diz Otto Maria Carpeaux:

A crítica literária alemã […] era puramente jornalística, era a pior da Europa, desdenhando, com incompetência, mas com certa razão, a indústria escolar dos universitários, chamados na Alemanha de então “os mais estúpidos dos homens”. (História da literatura ocidental, Introdução.)

O que significa: não é o apocalipse. Já estivemos melhor, mas o que temos hoje é apenas um fase. Não tenha também a vaidade de achar que a sua situação é pior do que todas as outras.