Ainda cânon x obra: a era da paranóia

Recordo que nas primeiras vezes em que fui a grandes museus tive a mesma sensação de quando me aproximei pela primeira vez de grandes obras literárias sancionadas pelo cânon: parecia que eu tinha contato direto com uma celebridade. De um lado, pensava: “então é isso.” De outro, “por que é bom?” E pensava que, assim como pessoas treinadas podem descrever os sabores de um vinho, ou dizer quais os problemas e virtudes de um automóvel, alguém tinha selecionado aquelas obras para o cânon. A questão que se coloca para quem quer sair da condição (nada pejorativa, por favor) de “público em geral” para a de apreciador mais qualificado é como apropriar algo daquela experiência que motivou os selecionadores do cânon — seja para concordar ou discordar deles.

Não posso deixar de observar que o modelo do desejo mimético está presente aqui. De um lado, o modelo é o juiz do cânon; por ele é que apropriaremos as obras de arte. Quando repetirmos sua experiência, o juiz do cânon pode se tornar nosso rival, e a deferência com que um dia o tratamos pode sumir, mas penso que é justo que seja transformada, em muitos casos, em gratidão. Afinal, o modelo foi imitado antes de ser derrubado. Não digo “todos os casos” porque acho que há maus modelos, ou modelos deliberadamente maus, que pretendem usurpar o lugar de prestígio no cânon para promover suas modinhas pessoais – esse parece o caso das vanguardas do século XX, que insistem em não perceber seu esgotamento. Agora, outro aspecto do desejo mimético aqui presente é o desejo de auto-afirmação, de diferenciação da maioria, de poder sentir que não se é um qualquer que entra num museu como mero turista que vai visitar celebridades “culturais”, ou que fica citando textos bobos como se fossem de Shakespeare, Machado de Assis ou Fernando Pessoa (ou, pior ainda, Arnaldo Jabor).

Assim, o desejo de ser um consumidor qualificado de arte comporta os aspectos positivo —mediação externa, com modelo distante: o selecionador do cânon — e negativo — mediação interna, de rivalidade com as pessoas próximas: os turistas dos museus — do desejo mimético. O aspecto negativo obviamente explica as rivalidades entre as tribos e as rotulações mútuas, sobretudo com aspectos pejorativos, como no caso onipresente de conservadorismo x progressismo. Ele não passa de um desejo de diferenciar-se, de afirmar-se único etc. Por outro lado, sempre que se fala em “crise da arte”, é o aspecto positivo que está em jogo, ou melhor, em xeque: se a modernidade é marcada por uma recusa de modelos, enão não há modelos a imitar, e portanto não há guias. Há o vazio, o tédio e, como René Girard apontou em Anorexia e desejo mimético, a bulimia da arte contemporânea, que passa por ecletismo, mas que não passa de um vômito de influências adquiridas aleatoriamente e devolvidas sem um projeto unificador, isto é, sem um modelo.

Por sua vez, a ausência de modelos amplia a rivalidade. A ausência de modelos é também uma ausência de critérios comuns; um efeito disso é que os critérios fiquem cada vez mais sutis, tão sutis que chegam a ser ininteligíveis. O artista tem de ser isso ou aquilo; tem de ser as antenas da raça, psicografando o Zeitgeist, mas, sem modelos comuns, cada pessoa tem um Zeitgeist distinto. Há quem julgue que o mundo progride a passos lentos, quem viva em pleno apocalipse, quem não esteja nem aí. Até eu tenho a minha opinião sobre o Zeitgeist, ainda que lute para não participar desse espírito em particular: creio que todos os grupos são unidos pelo que chamo de “complexo de Jesus Cristo”, que posso descrever assim: “eu sou bom, inocente; se fiz o mal, tive minhas razões; os outros é que são maus; o mundo é mau; o mundo precisa ser salvo; salvo por mim, ou por pessoas parecidas comigo, que devem existir.” Isso fica bem claro na lamentação pela “morte das utopias”, isto é, meia dúzia de professores universitários simplesmente não conseguem enxergar que só eles acreditavam nas tais das utopias; em suma, tanto os professores quanto os demais grupos partilham uma visão “eu-cêntrica” do mundo que pressupõe a inocência do eu. É a era da paranóia. Ninguém se pergunta: “será que eu sou bom para meu semelhante?”, apenas “será que os outros estão sendo bons?”

Retomarei o assunto, como parte de uma meditação para o tempo do advento. Por ora, vale observar que não parece ser de outra coisa que Yeats fala em seu famoso poema “The Second Coming”:

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?

Cânon x obra

É verdade que agora, mais do que nunca, tendo escrito uma peça de teatro, que espera uma montagem, sou parte interessada, e o leitor pode aceitar tudo que eu disser com alguma reserva, mas lá vai.

A qualidade de uma obra e o fato de ela ser popular ou entrar para o cânon são duas coisas distintas, que seguem regras distintas, ainda que o resultado final possa coincidir. Acredito que, quanto maior a escala de tempo, menor a chance de o cânon deixar entrar alguma coisa ruim, ainda que nada impeça que algo bom não esteja devidamente canonizado – para mim, o exemplo paradigmático disso, na poesia brasileira, é o livro Ausência viva, de Octavio Mora, que nunca passou da primeira edição em 1956. Por outro lado, quanto mais regredimos, mais difícil é encontrar obras cuja consagração é indefensável. E, quanto mais próximos estivermos do presente, mais sentiremos a presença de modas passageiras. Custa-me crer que Paulo Leminski e Ana Cristina César venham a estar no capítulo seguinte a Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade nas obras de crítica literária brasileira do século XXIV.

Há muito me preocupo com a percepção da qualidade literária segundo critérios, digamos, naturais. Economia, unidade, clareza, por exemplo. Tudo isso aumenta a força da obra, ainda que precise ser qualificado. Economia diante de quê? Claro que Os Lusíadas não pode ser econômico no mesmo sentido que um epigrama. Unidade de quê? Onde estaria, por exemplo, a unidade em “The Love Song of Alfred J. Prufrock”? Não nos elementos “tradicionais”. Clareza para quem? Para ficarmos em Eliot, sua apreciação pode depender de uma certa erudição… Mas são critérios tangíveis, que podem ser aplicados pelos homens de boa vontade, por pessoas adultas o suficiente para distinguir aquilo de que gostam daquilo é digno de admiração. Eu mesmo admiro T. S. Eliot, mas acho que nunca vou amar sua poesia como amo a de W. B. Yeats.

Claro que boa parte da crítica literária deve se dedicar a explicar por que algo é bom. Mas, como já disse, isso não nos impede de gostar mais de algumas coisas do que de outras. Isso não impede uma obra de ter uma determinada repercussão. É aí que o cânon começa a se formar.

O cânon é basicamente a opinião dos outros, a opinião que confere prestígio o suficiente a um objeto para que você o deseje e, numa grande medida, o respeite. Se você tentar ler Crime e castigo e não conseguir, vai presumir que o problema está em você, não em Dostoiévski. E por quê? Como você mesmo não tem qualquer contato direto com Dostoiévski, você vai respeitá-lo apenas porque outras pessoas o respeitam. Não que isso não seja razoável, claro. Mas estou falando da motivação, não do que é razoável. É a mesma coisa que entrar numa exposição de um artista novo e sentir-se à vontade para achar tudo ruim, mas entrar no Louvre com temor e reverência. As obras do Louvre estão no Louvre, foram sancionadas pelo cânon, seu consumo é permitido e recomendável. Aliás, mesmo que você não perceba nada daquilo que viu no Louvre, só ter ido lá lhe confere o prestígio das pessoas cultas, uma espécie de capital social. O mesmo idêntico raciocínio vale para qualquer outra obra de arte. Um livro de poemas do Zé das Couves pode ser melhor do que Mensagem, de Fernando Pessoa, mas você não vai ler o livro de das Couves com o mesmo entusiasmo com que lê um de Pessoa.

Idealmente, um crítico de arte seria uma pessoa capaz de apreender a qualidade das obras e conferir prestígio àquilo que merece, isto é, viabilizar a existência social (e em muitos casos material) do artista. Assim, o crítico iria formando o cânon a partir de critérios mais esmerados do que “gostei” ou “não gostei”. Na verdade, todos nós acreditamos que os críticos fazem isso, assim como acreditamos que eles se equivocam quando não concordam conosco, e que isso acontece quase sempre etc.

Não vou dizer que deveríamos dar um jeito de ter uma máquina mais confiável de concessão de prestígio. Meu objetivo é simplesmente chamar a atenção do consumidor de arte para o fato de que seu consumo quase sempre vem não de uma apreciação própria e sua das obras, mas do simples prestígio que a obra recebe de determinadas instâncias.

Memórias do subsolo

Memórias do subsolo

Um dos livros que melhor ilustram as questões que apresentei nos textos anteriores é Memórias do subsolo, de Dostoievski. Agora, é importante ter em mente o seguinte: Dostoievski apresenta o esplendor da mesquinharia de seu narrador como recurso poético, porque sem ele, curiosamente, não conseguiríamos ler o livro. Qualquer pessoa que se depare com “Sou um homem doente… Um homem mau” pensa logo: “esse não sou eu”. Por isso vemos o narrador-protagonista de Memórias do subsolo como um outro, e muitos críticos ainda falam da densidade filosófica da obra. Cuidado. Isso tudo são cortinas de fumaça usadas para tornar palatável a verdade impalatável: numa certa medida, nós, exceto os santos, somos o personagem de Memórias do subsolo.

Quando eu falo em “certa medida”, não estou me referindo a algo incerto. A medida certa é a medida em que pretendemos afirmar nossa autonomia a qualquer custo e encontrar uma espécie de autofundamento do eu, como se pudéssemos criar a nós mesmos, dar a nós mesmos a nossa identidade, estimar a nós mesmos como se não houvesse nada em torno — e como seria possível estimar o valor de alguma coisa sem compará-la a outra? A insistência mesma em ser “especial” é apenas uma maneira elegante de dizer que alguém (você mesmo, normalmente) é melhor do que os outros. E então, quando as pessoas se deparam com alguém cuja vaidade é ainda maior, mais estudada, mais eficaz, e são afetados por alguém que elas não conseguem afetar, dizem: ele é vaidoso, ele é arrogante, ele se acha melhor do que todo mundo etc.

Veja no trecho abaixo quantas estratégias o narrador e o autor usam para diferenciar-se e criar uma dissonância cognitiva*. Você quer ouvir o relato de um homem doente e mau? Não. Mas como se trata de um livro publicado, o prestígio faz com que você siga adiante. Depois, o narrador se diferencia dos médicos; ele simplesmente os recusa, mas também mostra que está plantado na realidade, e que sua vontade de continuar doente é inflexível, isto é, não é afetada por ninguém, nem pelos médicos.

Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.

(p. 15)

No trecho abaixo, o narrador discute com o utilitarismo inglês, e a idéia econômica de que as pessoas querem maximizar sua satisfação (ou, como dizem os economistas, a utilidade marginal). Querem as pessoas ser felizes? Não: elas querem é mostrar-se independentes. Querem sentir que dão o fundamento à própria vida.

Uma vontade que seja nossa, livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos, nossa própria imaginação, mesmo quando excitada até a loucura — tudo isso constitui aquela vantagem das vantagens que deixei de citar, que não se enquadra em nenhuma classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham continuamente, com todos os diabos! E de onde concluíram todos esses sabichões que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de uma vontade sensata, vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa vontade…

(p. 39)

Como agora só gostaria de estimular o leitor aqui do site a ler o pequenino romance de Dostoievski, e voltar aos meus inúmeros afazeres, deixo apenas mais uma nota, porque é muito importante. Nessas divagações todas a respeito de auto-imagem, auto-estima à luz da teoria mimética de René Girard, em nenhum momento eu (nem Girard) pretendo sugerir que as coisas tenham de ser necessariamente assim. De fato, eu não acho possível, nem metafisicamente, encontrar um autofundamento para o eu, mas isso não quer dizer que a infelicidade é obrigatória. Ela é obrigatória apenas para quem insistir até o fim da vida na vã tentativa de fingir que não está se comparando a ninguém, que só olha para si mesmo, e que nunca fez nada de tão grave assim. Enquanto você achar que pode sim atirar a primeira (ou a segunda, ou a centésima segunda) pedra, e que, na história da Paixão de Cristo, você está mais perto do crucificado do que do crucificador, realmente a infelicidade é obrigatória. Mas você pode renunciar a isso tudo a qualquer momento. Pode admitir que compete quando acha que não compete, pode parar de pensar que só os outros são violentos, pode parar de desejar a afirmação da própria independência de tudo e de todos, e pode, por fim, tirar você mesmo do centro das suas atenções. Não faz muito tempo que dedicar-se aos outros era considerada uma definição bastante incontroversa de amor. Se você prefere acreditar em Hollywood, bem vindo ao subsolo.

*Provavelmente estou usando o termo de modo mui lato…

A irrelevância da poesia

Um dos versos mais famosos de Auden é “Poetry makes nothing happen”, “a poesia não produz nenhum acontecimento”. Certamente isso acontece porque ninguém lê poesia. E se já se falava em “The Auden Generation” quando Auden tinha apenas 26 anos, o próprio jamais viveu de seus versos. Exceto, é claro, indiretamente, pelos convites que surgiram. Mas da venda de livros, nunca.

Creio já ter observado que nas livrarias existem duas seções: “literatura”, que na verdade significa “ficção”, e “poesia”, invariavelmente uma única estante escondida. Creio também já ter dito aqui que já ouvi de uma editora que a vendagem média de um livro de poesia no Brasil é de 500 exemplares. Lembro de estar com Bruno Tolentino um dia depois de ele ter ganhado o Jabuti por O mundo como Idéia e perguntar sobre as vendas: pouco mais de 800 exemplares um ano após o lançamento.

É por isso que nem me surpreendo quando vejo que um blog do Jornal Extra (não creio que seria diferente em blogs mais “de elite”) faz a lista dos “60 livros mais importantes da literatura brasileira” e não inclui nenhuma obra de poesia – ainda que inclua, vejam o desplante, a Prosa completa de Carlos Drummond de Andrade. A idéia de que as crônicas reunidas de Drummond possam rivalizar em importância (mesmo sendo de gêneros diferentes) com Claro enigma ou A vida passada a limpo é deveras exótica.

O leitor já me conhece e sabe que não quero dizer que é “injusto” o mercado de poesia ser tão pequeno, que não quero nem espero que o governo tome qualquer atitude etc. O que me espanta, e não pára de me espantar, é que até mesmo para a “elite cultural” a poesia é totalmente irrelevante.

Talvez haja mais filatelistas no Brasil do que compradores de livros de poesia.

Sorriso interior


Sorriso interior
Cruz e Sousa

O ser que é ser e que jamais vacila
nas guerras imortais entra sem susto,
leva consigo esse brasão augusto
do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
canta por entre as águas do Dilúvio!

Este foi um dos meus poemas favoritos na adolescência. Hoje, considero-o tão paradoxal, com tantas qualidades e defeitos evidentes, que não consigo nem amá-lo mais tanto, nem tirá-lo da galeria dos favoritos.

A primeira qualidade evidente do poema é sua fluência. Nenhuma frase é convoluta, antinatural, incluindo as complexidades mais comuns da escrita e até da fala. O primeiro verso da primeira estrofe é um longo sujeito seguido de duas orações. Já a segunda estrofe começa com uma estrutura de tipo tópico-comentário (“meu irmão, ele arrumou um emprego”). As pausas sintáticas e os fins dos versos coincidem amigavelmente. Sob esse aspecto, o poema é uma pequena jóia.

Todavia, começamos a olhar os adjetivos e a ver problemas. “Guerras imortais”? Você pode querer dizer que a guerra é infinita, mas a existência de guerras infinitas supõe um cosmos perpétuo e perpetuamente em guerra. Nem o dono do sorriso interior pode vencer e portanto “matar” essas “guerras imortais”? E o “sorriso justo”? O próprio ato de sorrir supõe algo além da justiça, que é a mera retribuição. Sorrir supõe generosidade, abundância. Por isso é até difícil imaginar um sorriso que demonstrasse justiça. Os “abismos carnais” também ficariam melhor sem a redundância da “triste argila”.

Esses problemas com os adjetivos denotam escolhas apressadas, guiadas pela sonoridade (essa, impecável) e pela “aura” que as palavras e expressões apresentam. Impossível não pensar em Augusto dos Anjos, que também escreveu diversos poemas ritmicamente impressionantes e que não significam rigorosamente nada. Existe a tentação de dizer que esse é um defeito brasileiro, apaixonar-se por um vocabulário sem compreendê-lo, mas me parece que essa nossa especificidade já foi imitada por outros povos. O talento acaba prejudicado pela falta de rigor do ambiente. Como costumo dizer, falta repressão. Assim como é óbvio que ninguém nunca ridicularizou muitos “poetas” de hoje, o que lhes faria um grande bem, também parece provável que ninguém tenha chamado Cruz e Sousa num canto e perguntado: “O que você quer dizer com isso, rapaz?”

Ainda assim, o que há de tão adorável neste poema? Certamente uma lembrança da adolescência, em que algumas pessoas – como eu, e normalmente homens – sonham com uma espécie de existência metafísica punk, vendo-se supremamente bons, supremamente bem-resolvidos, supremamente pacíficos, supremamente sábios, “cantando por entre as águas do Dilúvio”. Talvez não haja época da vida em que esteja mais marcada a diferença (completamente imaginária) entre “eu”, essa coisa pura e incorruptível, essa promessa de esperança, e “eles”, que já demonstraram tão abundantemente seus fracassos. Ou seja: o poema “Sorriso interior” é adolescente na medida em que é a projeção tosca de uma auto-imagem perfeita. Os adjetivos desajeitados e pedantes são redimidos pela beleza sonora – exatamente, também, como um adolescente pode ser encantador apesar (ou até por causa) de toda sua arrogância.

Identidade nacional x literatura

“Identidade nacional” só não é uma metáfora no sentido de que o governo federal brasileiro e o território (supostamente) defendido por ele são idênticos a si mesmos. Tirando esse sentido, todos os demais são metafóricos. Não existe uma identidade nacional cultural que ultrapasse o domínio da ficção, nem pode existir. Não digo isso por anti-brasileirismo, mas por não agüentar mais a interferência de parâmetros políticos e geográficos em domínios diversos. Naturalmente, como me interessa sobretudo a literatura, o que me causa mais repulsa é a idéia de tentar entender as literaturas como se fossem fenômenos nacionais, quando esse critério é alheio à produção literária. Não nego que um escritor possa ter uma idéia de nação e sentir-se inspirado por ela. Isso não muda o fato de que não existem fronteiras nacionais dentro da literatura. Para estudar qualquer objeto, é preciso levar em conta… o próprio objeto. O que confere unidade à obra literária é a língua, daí que seja muito mais razoável falar em literatura de língua X ou Y feita no lugar A ou B, sempre. Literatura de língua portuguesa feita no Brasil, em Portugal, em Angola ou Moçambique. Literatura de língua inglesa feita na Inglaterra, nos EUA, na Austrália etc. Tirando diferenças ortográficas e lexicais, que não são suficientes para que uma língua se torne ininteligível (brasileiros compreendem o português europeu e vice-versa), o local de produção de uma obra, bem como o regime político sob o qual ela é produzida, não são fatos literários. Os lugares e governos variam; a língua permanece. Ela é que confere unidade tangível e suficientemente incontroversa a uma literatura. Pense comigo: será possível que exista alguma coisa além da língua que confira unidade a todas as obras literárias brasileiras? E essa mesma língua não está nas portuguesas? Que qualidade é essa que, não sendo o idioma, e pertencendo ao domínio específico da literatura (entendida simplesmente como arte da palavra), poderá distinguir entre uma literatura e outra? Parece, na verdade, que essa é a mesma questão do princípio de individuação pela matéria.

Quase a mesma coisa

Quase a mesma coisa

Dada a onipresença da tradução literária, não há quem já não tenha reclamado dela – seja de uma legenda, de uma dublagem ou de um livro. E não há quem não tenha reclamado com razão, mesmo que utilize no dia-a-dia aqueles anglicismos (ainda não dicionarizados), como “assumir” no sentido de “presumir” (inglês to assume), que tornam qualquer um cúmplice do assassinato ou do enriquecimento do português. Na verdade, basta expor esses dois lados da questão para que os problemas comecem, e fique claro que não é tão simples assim determinar o que é uma boa tradução.

Mais ainda, quem traduz conhece as diversas limitações da atividade, da nuance irremediavelmente perdida ao número de caracteres que deve ser respeitado (como em cada linha das legendas), e medita sobre a frase que Paulo Henriques Britto costuma repetir em palestras: traduzir é reescrever em outra língua o mesmo texto, em algum sentido da palavra “mesmo”. A parte do “algum sentido” chama a atenção mais do que o “mesmo”. “Algum” é um pronome indefinido, e a indefinição nesse caso indica variedade. Foi para tentar dar conta dela que Umberto Eco escreveu Quase a mesma coisa (Record: Rio, 2007), uma investigação da tradução a partir de comparações de trechos em diversos idiomas modernos, como o inglês, o italiano, o alemão e o francês – e até em tipografias diferentes.

O livro é exaustivo e fascinante, mas é razoável suspeitar que somente as pessoas que têm um interesse prévio forte por linguagem, literatura ou tradução ficarão fascinadas, exatamente como a maior parte de nós fica fascinada com uma comida deliciosa e não sente tanta vontade assim de estudar sua receita. Queremos boas traduções mais do que ficar esquadrinhando seus making-ofs.

Mas o fascínio – ou ao menos um respeito maior pela atividade do tradutor – também pode ser despertado no leitor comum pela descrição de alguns problemas nos quais ele provavelmente jamais pensou.

Para ficar num dos exemplos mais acessíveis, à página 104 Eco discute a tradução da fala de Hamlet antes de matar Polônius com a espada: How now, a rat?, que Millôr Fernandes traduziu por “Que é isso? Um rato?” Não traduziríamos rat por “camundongo”, porque desejamos as conotações negativas que a palavra portuguesa “rato” compartilha com a inglesa rat. Mas, como diz Eco (p. 105), “a palavra italiana ratto não tem essas conotações e, ademais, poderia sugerir a idéia de ‘veloz’”. Por isso os tradutores italianos preferem topo (como no Topo Gigio, que os leitores de mais de 30 anos devem recordar), que, mesmo não sendo negativa, ao menos evoca o grito un topo! das cenas de comédia em que as mulheres ficam apavoradas e sobem nas cadeiras. Alguma coisa foi perdida, outra coisa foi conquistada. Não custa acrescentar ao exame de Eco que, embora o próprio dicionário da Real Academia Española autorize rato no sentido português de “rato” (embora prefira ratón), essa palavra é entendida em espanhol antes como “um momento”. Por isso, não basta saber consultar o dicionário, mas também saber escolher entre as opções disponíveis (as quais nem sempre estão nele, diga-se). A escolha muitas vezes é de Sofia, e o tradutor precisa usar o bom senso para avaliar a economia de mortos, feridos, protegidos e resgatados. Não se trata de uma “traição” do tradutor, mas de um limite da própria língua e da própria cultura que só pode, na melhor das hipóteses, ser habilidosamente transposto.

A isso tudo podemos acrescentar uma outra questão comum: é mesmo razoável dizer que uma tradução ideal é aquela que, se fosse revertida para o idioma original, seria idêntica àquela obra de origem? Antes que o leitor comece a filosofar a respeito, podemos aproveitar perguntas e lembranças de Eco para complicar ainda mais. As traduções acontecem não só de um idioma moderno para outro idioma moderno (e, em tempos de internet, nada mais fácil do que consultar um falante nativo, igualmente tradutor profissional), mas também de um idioma arcaico e morto para um idioma moderno. Ou também podemos estudar as traduções feitas de um idioma arcaico para outro arcaico séculos atrás. Hoje mesmo há gente que estuda os erros de entendimento da obra de Aristóteles por São Tomás de Aquino causados pelos problemas na tradução latina que este (que não sabia grego) utilizou. Para agravar ainda mais a questão da reversibilidade possível ou impossível, também podemos ir à página 194 e ver que, quando Averróis deparou-se com a Poética de Aristóteles, não tinha a menor idéia do que eram “tragédia” e “comédia”, palavras que eu mesmo posso usar em português hoje porque grande parte dos leitores sabe que são helenismos e têm um sentido técnico dentro da literatura, definindo gêneros – aí vemos o quanto a existência de estudos universitários na área de letras clássicas pode afetar a cultura como um todo. Mas quando Averróis viu a tragoidía descrita na Poética, com todos os seus elementos, achou que se tratava não de uma representação teatral, mas de uma narração…

Isso ainda leva a outro problema: o da tradução de poesia. Quando Eco discute a tradução da Divina Comédia, não são apenas todos as questões discutidas até agora que se apresentam, mas também questões de metro, ritmo, som (não apenas rimas) e até de certos hábitos da língua. Em francês, deve-se traduzir o decassílabo italiano por um verso decassílabo, menos comum, ou pelo verso alexandrino (de doze sílabas), que tem importância equivalente? Até que ponto o som pode ser sacrificado em nome do significado – e vice-versa? O texto final deve ser contemporâneo ou pode ter arcaísmos? Vejam que nesse caso seria preciso encontrar equivalências entre a Idade Média francesa e a italiana.

No entanto, uma das grandes vantagens do livro – a qual pode ser uma desvantagem dependendo das suas posições em relação à natureza do texto literário – é que Eco discute essas questões usando sobretudo exemplos de livros que ele mesmo escreveu. Muita gente pode gostar de afirmar a independência entre o autor e a obra, mas na prática, quando o trabalho chega a um impasse, não há tradutor que não dê graças a Deus se puder contar com um autor vivo que responda suas perguntas, e ao menos eu nunca vi um crítico ou editor dizer que o tradutor deveria ter resolvido o problema sozinho, como se qualquer pessoa tivesse tanta autoridade sobre a obra quanto o próprio autor. Isso até aumenta o interesse do livro: em vez de reunir depoimentos de tradutores e estudiosos sobre os percalços enfrentados, é o próprio autor quem conta as instruções que deu aos tradutores e avalia seus trabalhos. Também se pode, claro, questionar a competência de Umberto Eco para avaliar registros eruditíssimos em tantos idiomas. Ou melhor: quem tem competência para fazer esse questionamento? Certamente não aqueles que desconhecem as dificuldades que um tradutor pode enfrentar.

Ciência x literatura

Discordo deste post sobre estudos literários do começo ao fim. Discordo do que diz o autor e discordo das conclusões tiradas. Discordo tanto, e tanto, que mesmo sem tempo para desenvolver a resposta que gostaria, faço alguns comentários.

1. A crítica literária já nasceu com pretensões científicas e o próprio Aristóteles tentou desenvolver uma ciência literária na Poética, observando elementos comuns entre epopéias, tragédias e umas e outras. Quer dizer, nem ele achava que as obras literárias fossem indivíduos únicos em seu gênero e espécie, “singulares e absolutamente irredutíveis”. Ainda que se alegue que algumas das semelhanças apontadas por ele são superficiais demais para sensibilidades modernas, como, por exemplo, certos poemas serem escritos no mesmo metro, o fato é que elas funcionam; é o mesmo metro idêntico que aparece em obras diferentes. No entanto, o modelo estrutural da tragédia, com aner, hybris, moira, um coro etc, está longe de ser superficial e define um gênero do qual restam dezenas de indivíduos, e não apenas um.

2. A analogia com a maçã é inadequada, porque toda vez que você ler ou encenar Édipo Rei o protagonista vai descobrir que matou o pai e casou com a mãe. A obra de arte literária é muito mais simples do que qualquer realidade. Tudo nela sempre acontece do mesmo modo, do mesmo jeito. É mais fácil Édipo continuar descobrindo a sua própria identidade a cada nova leitura da peça do que duas maçãs idênticas existirem e caírem identicamente.

3. A idéia de que cada obra é gênero e espécie de si mesma é preconceito romântico levado ao paroxismo. As obras mais diferentes podem estar escritas no mesmo idioma, em verso ou em prosa, ter personagens ou não, ser (predominantemente) narrativas ou expositivas, compartilhar modelos – como os Lusíadas tem a Odisséia como modelo, ou Atlantis, de Auden, parodia Ítaca, de Kavafys – e estruturas… Como já dito em 1., há muitos universais na literatura.

4. Muitos departamentos de literatura já não fazem outra coisa além de tentar ser científicos, com direito a hipótese, teste, modelo… Veja aí o formalismo russo, o estruturalismo e, por que não, o modelo girardiano do desejo triangular. Muitos papers literários respeitados (e às vezes muito bons – minha atividade favorita tem sido ler e reler alguns papers acadêmicos de Girard) nada mais são do que a apresentação dos resultados da aplicação de um ou mais modelos.

5. É importante fazer dois comentários sobre a tentativa de fazer ciência da literatura e o ressentimento que isso pode gerar. Primeiro, certos modelos são muito ruins, normalmente por partir de postulados absurdos. Segundo, é inevitável que numa análise segundo modelos eles tenham uma certa precedência sobre as obras, e, se elas já são simplificadas em relação à realidade (e sua simplificação consiste sobretudo em poupar-nos da banalidade), os modelos são mais simplificados ainda. Um livro de 350 páginas como Mensonge romantique et verité romanesque pretende explicar milhares e milhares de páginas de Dostoievski, Cervantes, Proust, Flaubert e Stendhal – só para ficar nos principais autores analisados. E, dispensando as aplicações, o simples modelo do desejo triangular ou mimético ali exposto pode ser perfeitamente resumido em uma ou duas páginas. Por isso, ao ler obras com um modelo explicativo em mente, você está sobretudo lendo o modelo, testando o modelo, confirmando o modelo, desmentindo o modelo, repetindo o modelo, exatamente como a ciência parte das individualidades para chegar às generalidades. Só que também é inevitável que a atividade científica seja diferente da atividade de fruição literária.

6. Porém, não é nem tanto a existência de modelos ruins, nem a natural diferença entre atividade científica e fruição estética e imaginativa que leva a uma crítica literária estéril e desinteressante, mas… a própria crença romântica de que cada obra é única e irredutível. Acreditando que os artistas são seres mais únicos do que os outros, os críticos invejosos também desejam ser únicos e lançar olhares únicos sobre aquelas obras únicas e escrever livros únicos, para também serem reconhecidos como pessoas únicas, absolutamente diferenciadas da “grande maioria”. Tanto a criação artística quanto a atividade crítica se tornaram meios de legitimação do ego (de pessoas que, aliás, precisam dela, pois costumam ser bem feias). Com essa centrifugação, ou atomização, é óbvio que o terreno comum vai diminuindo, e as circunstâncias vão se tornando cada vez mais particulares, e com elas as oportunidades de fricção e interesse. Se antes a melhor coisa que a literatura poderia fazer era dizer algo óbvio que ninguém estava dizendo, e dizê-lo do melhor modo possível, e a função da crítica era mostrar porque e como aquilo era novo ou adequado, agora tanto a literatura quanto a crítica querem simplesmente falar o que ainda não foi falado, mesmo que para isso seja preciso matar (nessa ordem) a lógica, a semântica e a sintaxe.

Minha solução pessoal para a questão passa por T.S. Eliot, Cyril Connolly e René Girard. Acredito que, assim como a literatura precisa se renovar, também a crítica precisa se renovar. Cada geração precisa reavaliar o cânon e até refazê-lo (Eliot). Mas essa renovação hoje caminha na direção de uma individualidade cada vez mais abscôndita e por isso mesmo irrelevante (Girard). A crítica precisa reconhecer suas tensões naturais. De um lado, precisa ser ciência ou buscar ser ciência (Girard), e de outro, os textos da crítica precisam ser bem escritos (Connolly). Isto equivale a dizer que a crítica, de certo modo, também é literatura. Por uma questão existencial, ela depende da retórica. Por uma questão pedagógica, ela necessita da beleza.

Eis que darei aulas de literatura em São Paulo

O Indivíduo continua em obras.


Aquiles

Caríssimos leitores: durante anos você e eu sonhamos em fazer um bom curso voltado para aquilo que os americanos chamam de “grandes livros”, um curso que faríamos por interesse pessoal e não para melhorar na profissão, pensando não em notas mas no verdadeiro aprimoramento. Ok, eu fiz um pouco disso no ano em que estudei na NYU; mas não tanto quanto gostaria.

Pois agora sucede que vou participar de um curso destes – mas como professor, ou tutor, ou orientador de leitura. Não posso fingir que não fico até emocionado, porque acho que o empreendimento é histórico – e espero que logo vejamos o Aristoi seguindo esses passos – e que será muito benéfico, como já tem sido benéfico para mim.

Basicamente, algumas pessoas vão se reunir, motivadas pelo interesse pessoal, para falar de clássicos da literatura. Vamos ler a Ilíada e a Odisséia, e alguns clássicos do teatro grego. A abordagem será muito simples: ficar o mais perto possível do texto. Como talvez só eu tenha algum domínio do idioma original, obviamente vamos usar as traduções portuguesas disponíveis. Vou falar da composição dos textos, usando ao máximo aPoética de Aristóteles, e vamos tentar entendê-los como se estivessem vivos; por isso, o mais certo seria dizer que vamos tentar fazer com que os textos nos expliquem.

Serão 10 aulas em dez quintas-feiras. Há também outros cursos. Você pode fazer sua pré-inscrição pela internet.

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