Filistéia entorpecida

Ontem fui ao cinema ver Sin City. Durante o filme, várias vezes pensei: onde estão todos aqueles filisteus que denunciaram a “violência gratuita” da Paixão de Cristo? Provavelmente estão entorpecidos de gozo estético; quando o negócio é simplesmente gritar contra o Cristianismo, arrumam todo o tipo de pretexto. Quando encontram alguma obra tão gratuita quanto sua concepção de arte, idêntica à de meninos de colégio, crêem-se justificados, saem de si, dão pulinhos nas ruas, extasiados com o fato de o nada às vezes ter a aparência de alguma coisa.

Admito que o filme deva ter méritos visuais, mas eu não os consigo avaliar porque nunca abri uma revista em quadrinhos de Frank Miller. Claro que percebo que é interessante o modo como os carros correm e derrapam, e o negócio de o filme parecer um desenho; mas isto não elimina a gratuidade da violência, que pareceu incomodar tanto a filistéia na Paixão.

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Hoje na UFRJ uma professora falou que a arte era a luta do ser humano contra o nada, nosso suposto destino. Citou Unamuno, disse que “se nossa derrota é inevitável pelo menos devemos fazer com que ela pareça uma injustiça”. Dupla bobagem. Primeiro porque a derrota poderia ser uma lástima, mas não exatamente uma “injustiça”. Segundo porque não, nosso destino último não é o nada; eu acredito literalmente em céu e inferno. Mas daí vemos como a crença (a certeza, a fé, o que quer que seja) na vida eterna pode afetar nossa própria relação com a arte: se o nosso destino é o nada, por que escrever? O nada não vai ter nenhuma opinião sobre as suas obras; você não se vingará do nada, ainda que possa imaginar isso o quanto queira.

Espero que ela não ache que Sin City faz parte da luta contra o nada.

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Também nunca pude aceitar a idéia de que a arte é uma valor em si mesmo, que o domínio estético é autônomo – dê total autonomia a algum domínio e as portas se abrem para alguma espécie de totalitarismo. O bem estético – a beleza da obra – não é o bem supremo; qualquer obra de arte vale menos do que a vida de qualquer pessoa, e menos até do que a vida de qualquer animal. Isto não é apenas uma frase retórica; qualquer animal ganha de qualquer obra de arte em complexidade e perfeição.

Sem mencionar Deus ou a vida eterna, aqui se esboça um critério para delimitar aquilo que chamam hoje em dia de “arte”, no bom ou no mau sentido.

A melhor crítica de cinema de todos os tempos

Há testemunhas desta cena, acontecida há uns bons anos. Não revelarei o nome deste grande crítico, porém. Se alguém disser nos comentários, vou apagar.

Eu: E aí, Famoso Roteirista Brasileiro, você viu “Central do Brasil”?

FRB: Aquilo lá é o “Bambi” iraniano.

Eu: Bom, que você diga que é iraniano, eu até entendo. Mas por que “Bambi”?

FRB: Matam a mãe do viadinho logo no início do filme!

As invasões bárbaras

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Para Arthur Bolívar, a quem peço que entre em contato comigo.

Na Poética, Aristóteles sugere que toda grande obra literária pode ter seu enredo resumido em uma frase. Eu iria um pouco mais longe, e diria que toda obra pode ser resumida em uma frase, e que essa frase mesma, se efetivamente sintetizar a obra, pode ser preciosa a ponto de dispensar a maior parte das críticas.

O filme As Invasões Bárbaras, que em 2003 conquistou as platéias cariocas, pode ser sintetizado assim: “Filho rico proporciona a pai pobre e depravado uma eutanásia de heroína”.

“Mas não podem fazer um filme bom com essa história?” Claro que podem, em tese. Eu prefiro as histórias que seguem o modelo do “imitativo elevado”, mas o imitativo baixo também tem seu valor, só que é mais adaptado para a comédia. Se em uma versão macabra dos Trapalhões Didi Mocó ganhasse uma eutanásia de heroína, teria sido por engano do Zacarias ou maldade do Sargento Pincel.

É óbvio que as pessoas se comoveram com o filme porque se identificaram com o velhinho. Mas deixemos este embaraçoso assunto de lado. A questão é a seguinte: o diretor tinha a intenção de fazer piada com a platéia, ou ele não tem muita idéia do que está fazendo? Ou, hipótese mais sinistra, será que a reação de simpatia é uma peculiaridade carioca?

Como já sugeri, boa parte dos problemas do cinema contemporâneo está em querer fazer tragédia com personagens ridículos. O ridículo, traço do imitativo baixo, é próprio da comédia, diz Aristóteles; fazer tragédia com o imitativo baixo sempre resulta em comédia involuntária, ou em uma certa sensação de desconforto na platéia. Ao menos em parte da platéia.

*Nota: este texto foi escrito antes de Denys Arcand, diretor de “Invasões”, dar uma entrevista à Veja, na qual dizia estar do lado de seus personagens; sua intenção não era fazer uma crítica da estupidez da geração retratatada.

O grande outing dos filisteus

O “filme do Mel Gibson” prestou um grande serviço: obrigando cada um a se posicionar a respeito da paixão de Cristo – evento tão central para o Cristianismo que o cânon da missa se chama “sacrifício” – , separou de vez os hebreus dos filisteus, os que têm um mínimo de decência intelectual e os que são, numa hipótese generosa, inteiros mentecaptos.

Ataque ao cristianismo

Para quem acha que é exagero dizer que a intenção de proibir o filme do Mel Gibson equivale a um ataque ao próprio cristianismo, vale lembrar, como lembra John Zmirak, em excelente artigo na “American Conservative”, que boa parte dos ataques ao filme são motivados não por uma preocupação com o anti-semitismo deste filme especificamente, mas, sim, pela idéia de que todo o cristianismo é, em si mesmo, anti-semita. Nessa linha, já se tentou até expurgar o Evangelho de São João…

‘But Gibson did not go far enough for his enemies. They seem in fact implacable—though that does not stop self-hating Christians from trying. Some biblical scholars suggest the Gospel of John be edited or excised from the scriptural canon because it is “inherently anti-Semitic.” In 2003, some theologians associated with the U.S. Catholic Bishops colluded with several Jewish leaders to produce a document that effectively declared that Christianity was meant only for gentiles, not for Jews, so the Church should stop evangelizing them. When prominent Jewish Catholics, among others, pointed out such statements by Jesus as “Go nowhere among the Gentiles … but go rather to the lost sheep of the house of Israel.” (Matt. 10:5) and “I was sent only to the lost sheep of the house of Israel” (Matt. 15:24), the document was quietly dropped. Appropriately, the architect of that document was Eugene Fisher, the same man who helped the ADL orchestrate an attack on “The Passion” —based on the preliminary, stolen script. The bishops had to back away from that one, too, under threat of legal action.

(…)

‘It is clear that the same spirit motivates the campaign against Gibson’s film, the attacks on Pius XII, and similar assaults against Christianity in public life. It’s more than just a rejection of Jesus’ claim to be the Messiah—a shocking assertion that requires the divine gift of faith to accept. It is an attack on Christian culture root and branch, an assertion that the Christian faith is a dangerous poison that must be purged from the earth to ensure social progress and the safety of other religions. This position, which most Jews would surely reject, is the basic assumption of contemporary secularism, which knows no race or creed.’

“The Passion” – um adendo

Em adendo às observações do Pedro sobre “The Passion”, reproduzo notinha publicada hoje no Globo:

“O polêmico ‘A paixão de Cristo’, de Mel Gibson, pode ter sua proibição pedida no Brasil. A Federação Israelita do Rio de Janeiro está observando como se comportará a França, que também discute o problema e pensa em não liberar o Cristo anti-semita, para se pronunciar. Esta semana o filme será exibido pela primeira vez no Brasil, numa sessão para grupos religiosos em São Paulo. A estréia de ‘A paixão de Cristo’ aqui está marcada para a Semana Santa.”

Desconto a redação preconceituosa da nota do Globo (esperar o quê? isenção jornalística na imprensa nacional? faz-me rir!), e reporto-me, quanto ao “anti-semitismo”, à nota do Pedro. Apenas espero, sinceramente, que a Federação Israelita tenha sido induzida a erro e não insista na idéia. Pedir a proibição de um filme por reproduzir fielmente o que está no texto bíblico equivale a pedir a proibição do próprio texto bíblico e, por que não?, da própria religião cristã.

Seria o caso mais grave de perseguição política ao cristianismo ocorrido por aqui nos últimos anos.

The Passion contra infiéis e gentios

The Passion of The ChristNós pregamos o Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os eleitos Ele é a força e sabedoria de Deus. (1 Cor I, 23)

Primeiro ponto: a idéia de que The Passion é um filme anti-semita é pura desonestidade.

Os Evangelhos contam que Anás e Caifás, mais um punhado de judeus reunidos em turba numa praça de Jerusalém, foram os responsáveis pela morte de Cristo. Não Maimônides. Não o Dr. Freud. Não Jerry Seinfeld. Nenhum outro judeu foi responsabilizado pela paixão de Cristo; inclusive, se houver dúvida, há uma passagem em que Jesus isenta os filhos dos pecados dos pais, e uma afirmação oficial da Igreja Católica contra a idéia da culpa coletiva.

Além disso, se o filme de Mel Gibson é “anti-semita”, então A Lista de Schindler é um filme essencialmente anti-germânico. Este e todos os filmes sobre a Segunda Guerra. Afinal, todos eles mostram os alemães em geral como uns malvadões. Mas ninguém pensa que todos os alemães são nazistas – assim como nem todos os judeus são deicidas. Se o argumento de anti-semitismo fosse válido, precisaria ser demonstrado por terríveis ondas de anti-germanismo (afinal, quantos filmes existem sobre campos de concentração nazistas? Centenas?), que já teriam varrido como tsunamis os alemães da face da Terra.

Não custa recordar também que Jesus, Maria e os apóstolos eram judeus. Mas isso os acusadores sabem muito bem: eles são é maliciosos mesmo.

Em suma, o argumento de que mostrar que um judeu é mau faz de você um anti-semita por metonímia ou é pura boçalidade ou é pura canalhice. Naturalmente, não foram todos os judeus que o proferiram.

Segundo ponto: a idéia de que The Passion é um filme “violento demais” é desonesta e demonstra ignorância.

É desonesta porque o filme não é mais violento do que outros filmes a respeito dos quais ninguém nunca reclamou. Basta ler esta matéria do WorldNetDaily.

Demonstra ignorância porque muitos santos recomendaram que aqueles que desejavam se aproximar de Deus meditassem sobre a paixão de Cristo. Meditar sobre a paixão não é atingir o nirvana, sonhar com um mundo melhor, ficar tendo idéias metafísicas, ou lendo Kierkegaard. Meditar sobre a paixão é ficar pensando: “quanto dói ter uma coroa de espinhos na cabeça? Quanto dói uma chicotada? E dezenas delas? E ser pregado? E eu seria macho de agüentar isso tudo? Eu tenho medo até de dentista!” Se você ler O Castelo Interior, de Santa Teresa d’Ávila, por exemplo, vai ver meditações deste tipo. E se ler os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola vai encontrar coisas semelhantes, com várias sugestões de sofrimentos que o cristão pode impingir a si mesmo para imitar o Cristo (chicotear-se etc).

Portanto, The Passion é business as usual no mundo cristão. Quem não sabe está por fora.

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