Há alguns anos, minha professora de italiano me fez ver o filme Pão e tulipas, que trata de uma mulher negligenciada pela família que decide largar tudo e viver em Veneza, sozinha, trabalhando numa floricultura. O filme mostra a mulher redescobrindo a vida, o amor, a felicidade, e realizando tudo aquilo a que todo mundo acha que tem um direito natural, concedido por Rousseau, por Joseph Campbell e pelos colunistas de auto-ajuda.
Um outro filme, um pouco anterior, mostra uma situação semelhante: Beleza americana. Um sujeito tem uma filha adolescente insuportável, uma esposa não menos repulsiva, e, fazendo chantagem com a empresa, ganha um ano de salário e decide “ser feliz”. “Ser feliz”, é claro, assim como no caso de Pão e tulipas, significa “fazer o que eu quero”. Nesse caso, porém, o sujeito é vil, baixo e mesquinho. Claro que o filme mostra que ele é mesmo – mas por que não vamos julgar que ele, o homem, é que foi amesquinhado pelas pessoas à sua volta?
Estou observando isso apenas porque subitamente percebi que um filme como Pão e tulipas que tivesse um protagonista masculino simplesmente não seria aceito pelas platéias. O homem não teria o direito de largar a família e “ser feliz”, mesmo que essa família o negligenciasse. Ele seria visto como culpado, inevitavelmente. Se ele decidisse largar sua esposa chata e seus filhos ingratos para comprar um carro novo e arrumar uma namorada mais nova, seria visto como tolo, imaturo, canalha. O filme seria considerado prova da maldita cultura machista neoliberal opressora em que vivemos.
Agora, não tenho o menor interesse em denunciar feminismos (o feminismo é suficientemente autodestrutivo), e sim em observar double standards e o que eles revelam sobre as escalas de valores e sobre as possíveis recepções de obras dramáticas. Um filme como Pão e tulipas certamente propõe que a felicidade da mulher vem antes da felicidade da família. Nenhum filme ousa sugerir que a felicidade do homem possa vir antes da felicidade da família. O estranhamento que essa premissa causaria impediria a fruição da obra.
Também não me interessa escrever apenas reacionariamente, isso é, reagindo à premissa feminista com uma premissa machista, e certamente não me interessa dar uma de superiorzinho às duas premissas, mas simplesmente observar que ambas se baseiam no dogma moderno de que a felicidade é um direito natural e que ela é obtida fazendo aquilo que se deseja. Quando as pessoas vão ao cinema, querem ver histórias em que os personagens finalmente iniciam aquela parte da vida que será uma sucessão indefinida de momentos perfeitos. Nenhum filme poderia terminar como Tio Vânia, de Chekhov, em que Sônia, jovem e já ciente da longa vida de frustração que terá pela frente, olha para o tio do título, que já tem uma vida de frustração atrás de si, e fala que, quando eles morrerem, verão as vidas tristes das pessoas na terra banhadas numa misericórdia infinita.
Eu mesmo, admito, prefiro que a felicidade comece agora, e não só após a morte. Sei que poderíamos criticar Sônia porque ela mesma não está enfatizando a alegria que se poderia encontrar em dar a vida por outra pessoa, e sim a crença de que sua vida de tristeza será compensada no céu. Mas será que foi já nesse momento, e já num autor como Chekhov, que a idéia de que a felicidade pode estar num serviço a algo ou a alguém foi considerada inadmissível?