Meu problema com Inception

Não gosto de obras em que a estrutura do enredo é obscura. O problema não é o sentido da obra ser ambíguo, veja bem. René Girard tem duas interpretações da Édipo rei, de Sófocles: uma segue a interpretação tradicional e explora a descoberta da própria culpa pelo sujeito que se julga onipotente; outra diz que Édipo foi convencido da culpa pelas pessoas à sua volta, tornado bode expiatório (essa interpretação se baseia na continuação da peça, Édipo em Colono, e no fato de que o texto mesmo de Édipo rei fala em “assassinos”, no plural, do rei Laio). Nenhuma das duas interpretações sugere que o enredo da peça seja modificado, que Édipo estava sonhando quando ouviu as notícias dadas por Creonte, quando discutiu com Tirésias etc.

Édipo rei é citada por Aristóteles como modelo por, entre outras razões, apresentar peripécias e reconhecimentos de modo inseparável. Peripécia é algo que o personagem faça; reconhecimento é algo que o personagem descubra. Quanto mais Édipo procura, mais acha. E a história vai mudando. Primeiro, é a procura da solução para a peste em Tebas. Depois, é a procura do assassino de Laio. Por fim, é a tentativa de confirmar se o assassino é o próprio protagonista. Mas, como leitor ou espectador, sei que passamos de um estágio a outro e a outro. As informações se acumulam e aumentam a pressão dramática.

Quando Inception termina, não sei a qual história assisti. Não sei quando o protagonista começou a sonhar ou quando não acordou. Não gosto da idéia de ter de assistir a um filme mais de uma vez só para ter certeza de qual foi o enredo. Discutir o sentido de uma obra dramática é excelente; mas ignorar a mera seqüência dos acontecimentos é pertubador num péssimo sentido. Não vejo problema em discutir se a Nora Helmer de Casa de boneca é ou não a primeira feminista, mas ninguém disputa que ela realmente foi ameaçada pelo funcionário do banco em que o marido trabalha.

É por essa mesma razão que não gosto de David Lynch. Todos esses filmes que trazem linhas muito borradas entre o sonho e o estado de vigília acabam soterrados pela vã tentativa do espectador de distinguir um do outro. Você poderia dizer que estou priorizando arbitrariamente o plano da vigília, como se ele fosse a “realidade”, mas estou afirmando, isso sim, que sem algum elemento convencional a inteligibilidade da obra de arte fica prejudicada. Para que uma obra signifique X e não-X, claro que sob aspectos distintos, ela tem de significar essas duas coisas claramente; é o espectador que muda de ponto de vista, não é a obra mesma que muda de natureza.