Fui ver Invictus. É um filme excelente. É um filme que segue o princípio que enunciei ontem: os inimigos se unem em torno de um outro inimigo que lhes seja comum. Mandela une brancos e negros na África do Sul por meio da vitória da seleção nacional de rugby contra as seleções estrangeiras. A vitória esportiva é uma espécie de violência de mentirinha que tem um efeito similar à violência coletiva verdadeira. As competições esportivas se baseiam nisso. Os torcedores delegam sua identidade aos jogadores e, por meio da vitória destes, sentem sua identidade coletivamente afirmada. Creio, aliás, que os jogos da seleção brasileira exerçam tanto efeito sobre a população exatamente porque não temos a memória de uma violência real que nos unisse contra um inimigo externo. Por isso, de quatro em quatro anos os brasileiros vão em busca de afirmação.
Tornando à história do filme, que vou presumir que é fundamentalmente verídica, um liberal como eu poderia pensar que não é função do presidente da república ficar apertando mão de jogador, nem pedindo a capitão de time que vá vencer a Copa de rugby, mas uma pessoa sensata como eu espero ser não pode negar que o primeiro problema da África do Sul pós-apartheid e pós-eleição de Mandela era evitar uma tensão racial permanente que se transformasse numa guerra civil ou numa violência alastrada à la Zimbábue. A questão não é abstrata, não é decidir se cabe a um presidente fazer isso ou aquilo, mas entender que se o governo, os representantes da violência legítima (isto é, unânime, como a violência contra criminosos), não apaziguar as tensões internas da África do Sul não vai haver federação, não vai haver direitos, não vai haver nada. Seria o apogeu da idiotice dizer que as manobras de Mandela não passam de um abuso de seu cargo.
E aqui chego às causas que propus ontem. Elas seriam causas, não exatamente “idéias”. Não seriam maneiras de fazer com que os liberais concordassem entre si, porque não creio que isso seja possível, e não tenho muito interesse no impossível. Elas não devem ser analisadas pela ótica da competição pelo Maior Grau de Pureza Libertária. Elas representariam apenas um passo estratégico, de retórica coletiva, e ficaria feliz se elas fossem discutidas assim. Acho que a discriminação entre preço e imposto traria às pessoas uma consciência de que carecem imenso: a consciência de que o governo lhes custa muito mais, individualmente, do que imaginam. Na hora em que todo mundo começasse a sentir no bolso o quanto as coisas custam, talvez começassem a achar excelente que o governo não oferecesse tantas coisas. A supressão de propagandas estatais, além de economizar muitos recursos (por que não perguntar, ainda que de modo pouco libertário, quantos doentes deixam de ser atendidos a cada vez que passa um comercial na TV?), daria ao cidadão uma percepção mais seca do governo, cuja função, certamente, não é a de seduzir as pessoas. A adoção de algo como a probable cause melhoraria até as relações raciais — o policial seria obrigado a dizer que está parando um sujeito porque ele tem excesso de melanina e pensaria duas vezes.
Talvez estas não sejam as melhores causas (talvez sejam infactíveis), nem as mais prioritárias. Mas a questão não é essa. A questão é que alguma causa é prioritária, e sua prioridade vem do mero fato de estar entre as opções disponíveis, aliado ao fato de ser aquilo que mais contribui para uma estratégia de longo prazo. Não vai existir uma vanguarda leninista liberal que tome o poder, dissolva o governo e grite: “Privatizai o mundo!” Todavia, há algo que se pode fazer. Um belo dia foi possível optar entre o Plano Real e o desenvolvimentismo à antiga. Será o Plano Real um sonho libertário? Essa questão é menos relevante do que escolher entre aquilo que o cardápio oferece, a relativa estabilidade e a inflação galopante associada a maluquices do governo. Ficar no sonho é entrar no restaurante e não comer nada, indignado, esperando que o pé-sujo em que você se encontra se transforme na alta gastronomia que você só consegue imaginar.
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