Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.
Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo;
e, pois nela vivo,
é força que viva.
Leitura e comentário: 2m16s
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Uma das coisas que mais gosto neste poema de Camões é como ele parece que poderia ter sido escrito hoje. Nas duas edições que tenho dele, a da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, e na antologia preparada pelo professor Massaud Moisés, apenas uma palavra aparece grafada à moda quinhentista: “fermosa” no lugar de “formosa”. Normalmente também esperaríamos ver “pera” no lugar de “para”, mas não disputarei com estes editores. E não me incomodaria, para falar a verdade, a modernização de “fermosa”.
Claro, há construções que dificilmente produziríamos. Ninguém soltaria um “neles lhe mora”; bastaria “neles mora”. Também ninguém “perde opinião”. A palavra “siso” só parece subsistir na expressão “muito riso é sinal de pouco siso”, e acho que só a conheço porque uma professora na escola – e lá se vão quase 20 anos – a usava com freqüência. Mas expressões como “Pretidão de Amor”, vindas de um português na Índia no século XVI, humilham o nosso modernismo nativista, e a brincadeira que vem logo depois com a neve, sendo também pura metalinguagem, repisa o projeto de criação de sensibilidade autóctone. Não era preciso inventar nada. Bastava voltar a Camões. Sempre basta voltar a Camões. E mesmo o Pe. Baltazar Estaço, já citado aqui, reclamava do modelo petrarquista da mulher loura de olhos verdes, a única a aparecer nos poemas:
Que enfadonha certeza é celebrardes,
os poetas profanos, olhos belos,
e mais que sejam brancos, ou amarelos
sempre verdes formosos os pintardes.Que velhice tão certa nomeardes
por fino ouro quaisquer negros cabelos,
e se os raios de sol ousaram vê-los,
cos raios do sol os comparardes.
Os portugueses sempre foram misturados, nunca foram suecos, e por isso já reclamavam desde aquela época contra a uniformidade etnocêntrica da musa a ser cantada; ou, melhor dizendo, o Pe. Estaço já reclamava e Camões já resolvia o problema.
Mas a presença do ideário clássico, a marca mais quinhentista mais forte do poema está no Amor com A maiúsculo, que não denota uma devoção ao nobre sentimento, nem àquilo que “move o sol e as estrelas” no sentido de Dante Alighieri, mas ao deus pagão Eros ou Cupido. A pretidão dos cabelos da escrava é uma das armas de Eros; e enquanto o “povo vão” – a elite literária e talvez até o povão – se ocupa do fetiche universal pela lourice que continua existindo, Camões não perde a chance de cantar o que é no mínimo tão belo quanto e, dentro da literatura de então, exótico. Os olhos também não estão cansados de matar; o Amor aqui não mata, não atormenta, não destrói, mas cuida, alivia, vivifica.
Por estas subversões de padrões, é estranho que este poema não tenha feito escola, ao menos no novidadeiro Brasil. Mas certamente continuou sendo lido: diante dos versos “nem no céu estrelas, / nem no campo flores” é impossível não pensar na “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias: “nosso céu tem mais estrelas, / nossos várzeas tem mais flores”; a impressão é que Dias escreveu primeiro “campos” e depois trocou para “várzeas” para disfarçar um pouco. Curioso é encontrar um eco tão forte de um clássico português no poema mais clássico do nacionalismo brasileiro; mas não há como fugir, porque onde se fala português, ouve-se Camões.
Escrito em cinco sílabas, o poema é lento; parece que a redondilha menor é um dos limites da possibilidade de variação rítmica. Tudo que já li em quatro sílabas – tudo de bom, não as coisas ruins, que só ficam dizendo “eu tenho quatro sílabas, ta-tan-ta-tan” – era rápido, até um pouco vertiginoso. Talvez a plasticidade da língua portuguesa dê um salto a partir da incorporação da quinta sílaba.
Há ainda um detalhe interessante na estrutura do poema. Ele é dividido em estrofes de oito versos, dividida em duas frases (períodos sintáticos) que duram quatro versos. Tematicamente, a última e a primeira metade da estrofe seguinte estão ligadas, separando a primeira metade da primeira estrofe e a última metade da última, que por sua vez estão ligadas entre si. A primeira primeira metade começa com “aquela”, o pronome demonstrativo que indica uma certa distância; a última última metade começa com “esta”, que indica proximidade. O contraste, é claro, é entre o personagem a apresentar e o apresentado, e nos faz perguntar por que Camões teria “cortado” o poema em estrofes de oito e não de quatro versos, já que assim atingiria mais unidade. Mas há ainda um outro contraste: aquela visão subversiva do Amor só vai aparecer no meio do poema e ser reiterada no final. No início, ele diz: “porque nela vivo, / já não quer que viva”, isto é, a amada, que nos dois últimos versos é fonte de vida, começa matando o amante. É neste ponto que não custa observar que este início parece um pouco automático. A cativa, supondo que tenha existido, simplesmente lhe apareceu na mente. Estando apaixonado por ela, ou de algum modo enamorado, dizer-se cativo dela também é quase imediato; é uma pequena ironia que ocorreria a qualquer pessoa que gosta de palavras. Dizer “porque nela vivo” também não é o máximo da originalidade, e “já não quer que viva” parece-se com o automatismo do próprio modelo amoroso que será contestado poucos versos depois. Portanto parece que Camões realmente começou o poema daí, sem maiores pretensões, e viu-o tomar direções inesperadas. Isto lembra Auden em uma de suas mais interessantes distinções: a obra de arte de um poeta, músico etc. seria diferente da obra de um sapateiro porque este inicia o trabalho com um fim predefinido e o poeta não sabe direito o que vai acontecer.