Antígona x Rockantygona

Antígona

A primeira e maior dificuldade em montar a Antígona de Sófocles está em conseguir sacudir o pó acumulado da interpretação costumeira da peça. A julgar pelo que dizem os comentaristas menos especializados, Antígona seria uma espécie de peça de tese, e a tese a ser demonstrada seria que o poder é arbitrário, como se Creonte fosse o primeiro ditador, e Antígona, a primeira presa política acusada de um crime de consciência.

Na verdade, não é possível realmente entrar na peça sem tentar olhar Creonte com alguma simpatia — não no sentido de dizer que ele não é tão mau assim, mas no sentido de perceber que nós não somos tão melhores do que ele, em nossa pequena escala — , e são as palavras dele mesmo que nos ajudam a vencer aquela camada de pó interpretativo (que o próprio Sófocles ajudou a despejar, para que a peça funcionasse), além de nos fazer ver que os elementos trágicos estão por toda parte. A chave está naquilo que Creonte, esse personagem que, assim como tantos de nós, tem uma enorme capacidade de não perceber que fala de si mesmo ao acusar os outros, menciona em duas ocasiões na peça: a hybris.

A hybris está associada a uma idéia de ausência de medida, de uma superação indevida do próprio status, mas também, como observa Walter Kaufmann em Tragedy and Philosophy, a uma irreverência ou insolência em relação aos costumes estabelecidos. A hybris cria híbridos, entidades sem forma definida. Um ato prosaico de hybris seria ir a um casamento de bermuda e chinelo. Outro ato de hybris seria um padre ir a uma boate gay a fim de converter os presentes por meio do temor do fogo do inferno, ou um militante gay ir a uma igreja e tomar o microfone do padre no meio do sermão. Nos três casos, a desmedida seria repelida naturalmente repelida pelo nomos, o costume estabelecido naquele meio.

A tragédia surge quando um ato de hybris é respondido com outro ato de hybris ou quando as pessoas no meio decidem vitimar unanimemente o primeiro híbrido para que a ordem seja restabelecida, com a ressalva de que, nesse caso, não percebemos a violência como “trágica”. Se dois bandidos se matam num tiroteio, isso é trágico; se a lei captura um bandido e o pune, é a lei, e a lei se legitima pela unanimidade: eu, você e nossos amigos achamos que, por exemplo, os bandidos que atiraram em Mário Bortolotto devem ser presos e julgados.

Na interpretação mais comum do texto, prevista por Sófocles, Creonte julga que, como rei, seus atos representam essa violência unânime. O que Creonte não percebe é que, para usar termos de Antonio Gramsci, ele, ainda que possua a capacidade de coerção, para o caso específico do enterro de Polinices, não possui o consenso: o povo está com Antígona. Aquele ato não é unânime: é arbitrário, pessoal. Creonte acusa Antígona de desrespeitar a lei, e a peça depende de acreditarmos que na verdade ela está desrespeitando com justiça o arbítrio de um homem que primeiro desrespeitou os deuses. Assim como Creonte vitimará Antígona, fazendo dela bode expiatório, atribuindo-lhe previamente a culpa por uma possível desordem social, nós, o público, vitimaremos Creonte, ficando unanimemente contra ele. Sófocles estava ciente do paradoxo e de certo modo começou a levantar a tampa da tragédia com esse texto, de modo mais palatável (e de certo modo menos escancarado) do que Ésquilo em Eumênides.

Como estamos acostumados a dar à personagem Antígona toda a nossa simpatia, não percebemos que seu ato vem numa longa seqüência de disputas. Seu irmão Etéocles, num primeiro ato de hybris, recusou-se a seguir o costume e a entregar o trono de Tebas a seu irmão, o qual respondeu com outro ato de hybris, fazendo do estrangeiro o aliado e atacando a própria cidade. Essa atitude não é diferente de pensar, como sempre pensamos, que já que “ele”, alguém que consideramos um rival, “não segue as regras, eu também não vou seguir”. Creonte tem sua hybris ao ficar cheio de si por ter salvado Tebas, e declarar que o fundamento da cidade será a violência contra aqueles que priorizam seus amigos em detrimento dela. A primeira fala de Creonte, aliás, corre paralela à primeira fala de Édipo rei, que Sófocles viria a escrever pouco tempo depois. Os dois personagens armam a própria destruição nela, Édipo (que também se coloca como salvador da cidade, referindo-se aos cidadãos de Tebas como “filhos”) prometendo a perseguição implacável ao assassino de Laio, e Creonte prometendo a intransigência contra quem “põe os amigos antes do país” (na versão de Lawrence Flores), mesmo que isso contrarie o respeito aos mortos. Não haveria tragédia se Creonte de algum modo não tivesse “razão”: a cidade de fato depende de expulsar seus inimigos para sobreviver. O desrespeito de Creonte pelos costumes e o desejo de fundar a cidade na sua própria lei acabam conferindo a Polinices morto uma força que Polinices, vivo, não tinha. Porém, como em todas as disputas trágicas, nenhum dos lados vence.

Antígona pode querer enterrar o irmão, mas, descendente de Édipo, tão portadora da maldição dos labdácidas como o pai-irmão (Édipo é o híbrido por excelência), quer fazê-lo sobretudo por não suportar a humilhação de submeter-se a um decreto de Creonte. É ela mesma que o declara: “Dizem que o grande Creonte baixou o decreto / para ti e para mim! Pasma, até para mim!” Pode-se, é claro, dizer que Antígona fala como irmã e não como princesa, mas o problema continua a existir: ou a lei vale para todos, ou não vale para ninguém. Ao insistir em desrespeitar a lei, por injusta que seja, Antígona sabe que está escolhendo a punição. Ela poderia engolir a ofensa, casar-se com o filho de Creonte e um dia tornar-se rainha de Tebas, contribuindo para derrubar as leis injustas. Desse modo, a estirpe e a cidade poderiam ser preservadas. Mas podemos dizer que “foi Creonte quem começou”. Ao dizer isso, ao pensar isso, somos capturados pela força trágica do revide — “se as leis são absurdas, cabe a nós desrepeitá-las”. Observar que o desrespeito à lei sacrifica a ordem e a paz não é uma apologia da arbitrariedade, é apenas a duríssima constatação que a tragédia insiste em fazer. Ao criar uma lei injusta, absurda por aplicar-se sobretudo a um inimigo morto, Creonte contagiou Antígona com sua hybris, tanto que depois ele é que vai acusá-la — com razão! — de ser “inflexível”, numa disputa para ver quem chega primeiro aos extremos.

Sófocles tem consciência de que a disputa religião x política é um aspecto superficial. Ele sabia que os mesmos deuses aparentemente inofensivos que apenas pedem um enterro também legitimaram a fúria vingadora de Orestes, que, na trilogia da Orestéia, de Ésquilo, legitimam o assassinato de sua mãe, a rainha Clitemnestra. Recordemos o ciclo de violência da família

de Agamêmnon: este mata a própria filha para que os navios gregos possam seguir viagem para Tróia. Quando volta à sua terra natal, sua esposa Clitemnestra o mata a fim de vingar o assassinato da filha que, aos olhos de Agamêmnon, fora um sacrifício necessário. Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra, mata Clitemnestra porque esta matou seu pai, e ainda lhe diz que ela é que está matando a si mesma. No fim da trilogia, um mero voto majoritário entre os sacerdotes de Atena e da própria legitimam o matricídio. O trágico está também em dizer que foram as ações dos outros que obrigaram a uma determinada reação, sempre transferindo a responsabilidade e assumindo o papel de vítima. Creonte se julga uma vítima tanto quanto Antígona. Aqui no século XXI pretendemos “arbitrar” o problema no sentido de descobrir quem “teria o direito” de se julgar uma vítima e reagir. O tragediógrafo limita-se a observar o que acontece quando se inicia um ciclo de violência contagiosa, como quer que esta se justifique diante do público e/ou dos personagens.

Rockantygona

Se a defesa da vítima é nosso (com o perdão da palavra) paradigma fundamental, uma montagem de Antígona poderia se destacar pela tentativa de enfatizar a disputa entre seus dois personagens principais, em vez de partir para a leitura tradicional que destaca apenas a arbitrariedade do poderoso contra os mais fracos, isto é, sem cair na armadilha de mostrar Creonte sacrificando Antígona, para que o público sacrifique Creonte e saia do teatro com a satisfação dos linchadores. Nada é mais moderno do que sentir-se uma vítima que tem o direito de vingar-se, ou melhor, do que vingar-se usando o discurso das vítimas; o estágio a que ainda não chegamos, e a que talvez nunca cheguemos, é o da aceitação coletiva do próprio mal, em que iremos ao teatro para enfrentar a náusea de ser como Creonte, e não para acharmos que temos direito ao prestígio de Antígona, essa primeira culpada de um crime de consciência. Na verdade, quando Aristóteles falava em “catarse”, é provável que esperasse que purgássemos a hybris, mas hoje não acreditamos mais no bom funcionamento da cidade como os gregos acreditavam. Nem vamos apreender a lição de que Antígona cometeu um erro, nem vamos admitir que há um Creonte em nós, que há em nós alguém que acredita que, se tivesse o poder, melhoraria tudo. Ou vamos admitir?

Dentro desse critério, devo dizer que Rockantygona atingiu um resultado ambíguo, não por causa da minha opinião, mas por causa da divergência no grupo de amigos que me acompanhou à peça. Uns achavam que a versão de Guilherme Leme, em cartaz no Espaço Sesc em Copacabana, trazia a velha história do Creonte malvado contra a pura Antígona. Outros entenderam que Creonte tinha lá suas razões, e que Antígona, apesar de ter uma causa mais justa, era igualmente teimosa, entendendo que a complexidade está aí, também: não basta ter razão, é preciso ter razão do jeito certo. Mas admito que posso ter sido influenciado pelas minhas opiniões prévias a respeito da peça.

A trilha sonora mais caótica sublinha o aspecto da desordem que tomou conta de Tebas, tanto exteriormente, nas ruas, no palácio, quanto nas almas dos personagens. A inflexibilidade é acompanhada de desespero, e a iluminação, que se volta quase o tempo todo apenas para os personagens, deixando o resto do palco escuro, marca também os limites estreitos que eles mesmos estabeleceram para si e para suas ações. Se a luz marca a camisa de força do impasse central, o som denota a fúria que ele encerra. Assim, a montagem, também por ser bastante curta, fica devidamente claustrofóbica.

Essa mesma brevidade do texto levanta a questão de ser conveniente ou não editar… Sófocles. Creio que a necessidade ou a vantagem de levantar aquelas camadas de pó pode justificar uma edição, e o resultado ambíguo pode ser satisfatório na medida em que é inevitável. Massacre da inocente ou cabo de guerra entre nobres da mesma família? Seria possível ressaltar o segundo aspecto de maneira inequívoca depois de tanto tempo? Uma opção do corte do texto parece buscar esse resultado. Logo no início, o mensageiro que diz a Creonte que o corpo de Polinices foi sepultado fica cheio de dedos para transmitir a notícia, como se falasse com um tirano caprichoso. Se no texto de Sófocles esse trecho destaca a hybris que já possuía Creonte, cada vez mais disposto a atos de violência, em Rockantygona sua supressão deixa o Rei de Tebas um pouco mais “razoável”, e menos com jeito de Führer.

As soluções para o figurino e o cenário, por sua vez, se não chegaram a atrapalhar, pareceram em parte ter saído da série americana Kings, inspirada na história do Rei Davi. A sala do trono de Silas, o Rei contemporâneo da série, tem uma comprida mesa de madeira, atrás da qual há nada além de imensas janelas. As roupas de Creonte e de Hémon são roupas militares contemporâneas, como as roupas de Silas e de seu filho na TV. Se o espectador desconhecer a série, não correrá o risco da comparação e o contraste entre texto antigo e visual contemporâneo vai dar a marca de atemporalidade que, se não é o melhor efeito possível, é uma das soluções mais confortáveis para as platéias atuais. Somente Antígona aparece vestida à antiga, além de andar sobre pedras postas no palco, como se a diferença entre ela e Creonte (e, por tabela, Hémon) quisesse ser marcada, o que diminui a semelhança que naturalmente adquirem pelo conflito, a inflexibilidade de um se espelhando na inflexibilidade do outro.

Entre os atores, o destaque absoluto é de Luís Melo, que consegue dar ao personagem Creonte a gravitas necessária. Creonte é um comandante militar vitorioso, um rei; não poderia ser levado a sério sem a devida força. O mais revigorante nisso é finalmente ver uma representação do “vilão” da peça que, não se deixando levar por preconceitos pueris, não traz um Creonte meramente maquinador, vil, mesquinho, feio, tosco, como se o mal tivesse de se apresentar sempre assim, o oposto da elegância. O mal grandiloqüente, sério, com toques de heroísmo e de necessidade é que nos convence, porque se percebermos que o mal é mau jamais nos deixaremos levar por ele. A peça mereceria assistida nem que fosse para finalmente ver a representação mais complexa dessa maldade, que gera até simpatia por um homem que, talvez, se nunca tivesse sido colocado naquela posição, nem tivesse ficado tão envaidecido com seu sucesso militar, não teria inventado um decreto tão arbitrário.

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