Mais uma vez, reflexões de orelhada, quiçá uma sugestão de pauta para um artigo que não escreverei porque estou muito ocupado com coisas fantasticamente interessantes.
Semana passada surgiu a gritaria do livro com erro de concordância — “nós pega” — recomendado pelo Ministério da Educação. Tendo a crer que a ofensa nasce daquele sentimento que todo brasileiro com diploma tem de que é superior a seu porteiro porque não comete erros básicos de ortografia, de regência e de concordância. É seu tesouro de semiletrado distinguir-se dos iletrados. Os barbarismos e a prolixidade são considerações para pessoas malignas como eu, mais metidas ainda, e por isso sumamente odiadas (os porteiros são desprezados, o que é diferente).
Agora, antes de tudo, recuso terminantemente a discussão da gramaticalidade da forma “nós pega”. É gramatical em sentido linguístico, descritivo, e agramatical em sentido prescritivo, normativo. Eis o fim da discussão. Aceitar que o critério linguístico se sobreponha a outro é tão arbitrário quanto defender que se ande sem roupa nenhuma em dias de muito calor. Ou melhor: aceitá-lo é atribuir a um suposto consenso científico o papel de guia da sociedade. Os hierofantes de jaleco. Para quem curte o STF babando sobre afetividade numa questão pública, até entendo. Ao ver a figura de autoridade sancionando aquilo que até então distinguia os santos dos pecadores, você pode sentir o que eu sinto quando vejo uma bateria dentro de uma igreja. Mas o fato é que ninguém realmente recusa padres, só muda de padres, ou finge que não os tem, mas tem de qualquer jeito.
Não que não haja razão para escândalo. Mas mesmo assim, vejamos. Que é um Ministério da Educação? É Kulturkampf, projeto de unificação nacional por meio da uniformização. E hoje queremos ser democráticos e inclusivos etc, fazendo uma paradoxal uniformização pluralista. Não é a sociedade que é plural e que encontra um terreno comum numa norma gramatical, é o governo que usa a força física para acirrar essa pluralidade, para balcanizar mesmo. Mas esse projeto não nasce com o politicamente correto recente, e sim com o projeto modernista encampado por Vargas. Palhacitos mil ficam a bradar embriagados o verso em que Mário de Andrade fala da “contribuição bilionária de todos os erros”. Kulturkampf modernista é isso aí. O livro com erro do MEC é sintoma, não é a doença. Mas assim caminhamos, querendo uma tirania light (ou nem tanto), da qual só reclamamos quando ela não está a nosso favor.
Eu creio que podemos ter uma bela ideia de qual foi a contribuição bilionária de todos os erros. O Brasil tem coisa de 190 milhões de pessoas, não é mesmo? Dixit Censo 2010. Não consegui encontrar o número de pessoas com nível superior, mas diz o Guia do Estudante que em 2010 tínhamos 5,8 milhões de pessoas matriculadas na universidade. As universidades particulares proliferam, aumentam seus corpos discentes. E ainda teríamos de ver quantas pessoas completaram o segundo grau, ou ensino médio, ou o que for o nome atual daquilo que nos EUA há bastante tempo se chama high school. Diante dessas brevíssimas considerações, qual o resultado do Kulturkampf de décadas do nosso Ministério? Que o brasileiro nunca jamais se habituou a procurar livros como fontes de entretenimento ou de informação. Se você estiver disposto a ficar deprimido, convido-o a conhecer o mercado editorial brasileiro visitando a lista semanal de mais vendidos da Publishnews, que nem traz números de livros para concursos, religiosos cristãos, e espíritas. É verdade que, na lista mais recente, o primeiríssimo lugar é um livro religioso, do Pe. Marcelo Rossi, mas na verdade é um livro de uma celebridade, cuja fama vai muito além do mercado editorial, e que o volume é vendido fora de livrarias. Veja a diferença para o segundo lugar. Agora vou contar uma coisa: eu já vi uma semana em que o livro mais vendido do Brasil ficou em 853 exemplares. Isso, não faltou nenhum zero não. 853. Medite: 190 milhões de pessoas, 5,8 milhões de universitários, 853 livros.
Agora eu vou recomendar vivamente que você feche a janela e chame alguém para ficar por perto, com um leque, com um copo d’água. Os Estados Unidos têm 309 milhões de pessoas, pouco mais do que um Brasil e meio. Os universitários matriculados eram 14,3 milhões segundo o censo americano de 2009, ou pouco menos do que 2,5 vezes o número de universitários brasileiros. Vamos ver os números do mercado editorial? Tudo bem, eles vão assustar também porque vêm em dados anuais, mas veja só o quanto venderam em 2010 os livros de capa dura, os livros de capa mole, os e-books e os livros infantis. Eu nem vou colocar os dados aqui, porque comentá-los demandaria muito tempo.
Depois dessa, boa tarde.