Sorriso interior
Cruz e SousaO ser que é ser e que jamais vacila
nas guerras imortais entra sem susto,
leva consigo esse brasão augusto
do grande amor, da nobre fé tranqüila.Os abismos carnais da triste argila
ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
enquanto tudo em derredor oscila.Ondas interiores de grandeza
dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
esse esplendor, todo esse largo eflúvio.O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
canta por entre as águas do Dilúvio!
Este foi um dos meus poemas favoritos na adolescência. Hoje, considero-o tão paradoxal, com tantas qualidades e defeitos evidentes, que não consigo nem amá-lo mais tanto, nem tirá-lo da galeria dos favoritos.
A primeira qualidade evidente do poema é sua fluência. Nenhuma frase é convoluta, antinatural, incluindo as complexidades mais comuns da escrita e até da fala. O primeiro verso da primeira estrofe é um longo sujeito seguido de duas orações. Já a segunda estrofe começa com uma estrutura de tipo tópico-comentário (“meu irmão, ele arrumou um emprego”). As pausas sintáticas e os fins dos versos coincidem amigavelmente. Sob esse aspecto, o poema é uma pequena jóia.
Todavia, começamos a olhar os adjetivos e a ver problemas. “Guerras imortais”? Você pode querer dizer que a guerra é infinita, mas a existência de guerras infinitas supõe um cosmos perpétuo e perpetuamente em guerra. Nem o dono do sorriso interior pode vencer e portanto “matar” essas “guerras imortais”? E o “sorriso justo”? O próprio ato de sorrir supõe algo além da justiça, que é a mera retribuição. Sorrir supõe generosidade, abundância. Por isso é até difícil imaginar um sorriso que demonstrasse justiça. Os “abismos carnais” também ficariam melhor sem a redundância da “triste argila”.
Esses problemas com os adjetivos denotam escolhas apressadas, guiadas pela sonoridade (essa, impecável) e pela “aura” que as palavras e expressões apresentam. Impossível não pensar em Augusto dos Anjos, que também escreveu diversos poemas ritmicamente impressionantes e que não significam rigorosamente nada. Existe a tentação de dizer que esse é um defeito brasileiro, apaixonar-se por um vocabulário sem compreendê-lo, mas me parece que essa nossa especificidade já foi imitada por outros povos. O talento acaba prejudicado pela falta de rigor do ambiente. Como costumo dizer, falta repressão. Assim como é óbvio que ninguém nunca ridicularizou muitos “poetas” de hoje, o que lhes faria um grande bem, também parece provável que ninguém tenha chamado Cruz e Sousa num canto e perguntado: “O que você quer dizer com isso, rapaz?”
Ainda assim, o que há de tão adorável neste poema? Certamente uma lembrança da adolescência, em que algumas pessoas – como eu, e normalmente homens – sonham com uma espécie de existência metafísica punk, vendo-se supremamente bons, supremamente bem-resolvidos, supremamente pacíficos, supremamente sábios, “cantando por entre as águas do Dilúvio”. Talvez não haja época da vida em que esteja mais marcada a diferença (completamente imaginária) entre “eu”, essa coisa pura e incorruptível, essa promessa de esperança, e “eles”, que já demonstraram tão abundantemente seus fracassos. Ou seja: o poema “Sorriso interior” é adolescente na medida em que é a projeção tosca de uma auto-imagem perfeita. Os adjetivos desajeitados e pedantes são redimidos pela beleza sonora – exatamente, também, como um adolescente pode ser encantador apesar (ou até por causa) de toda sua arrogância.
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