Bruno Tolentino & Philip Roth

Bruno Tolentino. As epifanias, I. A imitação do amanhecer. São Paulo: Globo, 2006. p 31

Provavelmente porque o ser se intranqüiliza
de já não ser o que ia sendo; intensamente,
porque as fogueiras de um martírio impenitente
são seus triunfos, seus troféus cheios de cinza;
e finalmente porque tudo o que agoniza
quer promulgar, solenizar o impermanente,
o coração, naquele fundo ambivalente
da coisa humana, momentâneo como a brisa,
mas persuadido de que as músicas da mente
hão de reter do ser algo mais que uma soma,
o coração vive das sombras de um aroma.
Só muito raramente esse iludido sente
a força de acordar antes que a luz cadente
o deixe louco como à mosca na redoma.

Leitura e comentário: 3m13s
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A imitação do amanhecer

Semana passada, um Tolentino atípico; esta semana, Tolentino em plena tolentinice, num dos poemas que parecem condensar muito do que ele sempre esteve tentando dizer. O poema parece hermético, misterioso, mas a leitura habitual de sua obra traz a chave. Que seriam as “fogueiras de um martírio impenitente” que “são seus triunfos, seus troféus cheios de cinza”? São as experiências sensíveis mais intensas, o caminho do excesso que, crêem muitos, leva ao palácio da sabedoria. O que não percebem, e isto é um mistério, foi que a obra de Blake que diz que “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria” tem o título de “Provérbios do inferno”. Daí que o “martírio” de Tolentino seja catolicamente chamado “impenitente”. São “troféus”, mas “cheios de cinza por serem momentâneos, por consumirem-se. A agonia é inevitável: tudo passa, tudo está morrendo o tempo inteiro, e tudo deseja escapar à morte inevitável e ao que parece ainda pior: ao fenecimento. A velhice, por si, parece um mal, uma desgraça. Queremos eternizar a beleza, naturalmente perecível, e não é por acaso que as cirurgias plásticas muitas vezes deixam as pessoas com cara de estátua: há aí uma irmandade de intenções…

Existe ainda um descompasso entre o intelecto e o corpo. Este se vai, aquele se aprimora, se expande. Wordsworth pode ter dito que ao fim e ao cabo o menino vê a luz se esvanecer e se confundir à banalidade cotidiana (verso 77), mas Yeats disse que sua imaginação partira numa cavalgada fantástica em sua velhice. Cada poeta usa a verdade que serve melhor à sua poesia, e as duas afirmações são verdadeiras, cada uma sob um aspecto. No caso de Bruno Tolentino, há uma terceira atitude: a mente retém a lembrança, e a lembrança é sempre mais tênue e mais “perfeita” do que o aqui-e-agora, porque podemos lapidá-la e eliminar a própria fugacidade da experiência que a gerou. A paixão pela lembrança imperecível é que cria o mundo como idéia e o “sono” do coração.

Na verdade, existe um trecho de Philip Roth que ilumina este poema, sendo também iluminado por ele. O melhor é eu me retirar e deixá-los admirar a inesperada irmandade de almas. Aliás, este livro de Roth me fez ter interesse por ler romances…

Philip Roth. Tradução de Paulo Henriques Britto. O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp 35-36

O animal agonizante

Você pode imaginar o que é a velhice? É claro que não. Eu não podia. Nunca consegui. Não fazia idéia do que era. Não tinha nem mesmo uma imagem falsa – não tinha imagem nenhuma. E ninguém quer outra coisa. Ninguém quer encarar a velhice antes de ser obrigado a encará-la. Como é que tudo vai terminar? Em relação a isso, ser obtuso é de rigueur.

Por motivos óbvios, é impossível imaginar uma etapa de vida posterior àquela em que estamos. Às vezes já chegamos na metade da fase seguinte quando nos damos conta de que já estamos nela. Além disso, as primeiras etapas da velhice têm lá suas vantagens. Mesmo assim, as intermediárias são ameaçadoras para muita gente. Mas e a etapa final? Curioso – é a primeira vez na vida que você consegue ficar completamente de fora da situação que você está vivendo. Observar a decadência do próprio corpo de um ponto de vista externo (para quem tem a sorte que eu tive) permite que a gente se sinta, graças à vitalidade que continua a ter, a uma distância razoável dessa decadência – às vezes dá até para sentir-se orgulhosamente independente dela. Sem dúvida, vão aumentando cada vez mais os sinais que nos levam a tirar aquela conclusão desagradável, mas assim mesmo a gente continua de fora. E a fúria dessa objetividade é brutal.

É importante traçar uma distinção entre o morrer e a morte. O morrer não é um processo ininterrupto. Se a gente tem saúde e se sente bem, é um processo invisível. O final que é uma certeza nem sempre se anuncia de maneira espalhafatosa. Não, você não consegue entender. A única coisa que você entende a respeito dos velhos quando você não é velho é que eles foram marcados pelo tempo. Mas compreender só tem um efeito de fixá-los no tempo deles, e assim você não compreende nada. Para aqueles que ainda não são velhos, ser velho significa ter sido. Porém ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo. Esse ter sido ainda está cheio de vida. Você continua sendo, e a consciência de continuar sendo é tão avassaladora quanto a consciência de ter sido. Eis uma maneira de encarar a velhice: é a época da vida em que a consciência de que a sua vida está em jogo é apenas um fato cotidiano. É impossível não saber o fim que o aguarda em breve. O silêncio em que você vai mergulhar para sempre. Fora isso, tudo é tal como antes. Fora isso, você continua sendo imortal enquanto vive.