Torso arcaico de Apolo

Rainer Maria Rilke / Tradução de Manuel Bandeira

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.

Leitura e comentário: 2m34s
[audio:torso.mp3]

Alguns poemas traduzidos

A julgar pela quantidade de reedições, Rilke deve ser um dos poetas mais amados do Brasil (suspeito que o mais amado, mais até mesmo que os de língua portuguesa, seja T. S. Eliot). Já folheei em sebos algumas traduções feitas por Geir Campos que me agradaram muito; mas devo avisar ao leitor que o meu alemão não vai muito além de Ich möchte die Schokoladetorte (“Eu quero torta de chocolate”). Isto certamente me impede de julgar a fidelidade da tradução, mas vou aceitar o testemunho de Otto Maria Carpeaux, austríaco de nascença, brasileiro por força das circunstâncias, e um dos maiores prosadores do português, que a encomendou a Manuel Bandeira. O que me interessa neste momento, porém, não é comparar a tradução com o original, mas começar a pensar a partir de algo que para mim é tão claro e cristalino que já é um pressuposto: as grandes traduções têm um lugar no cânon do idioma por ser, elas mesmas, grandes obras escritas naquela língua. É óbvio que se trata de uma posição ambígua, já que a tradução é apenas uma meia-criação, mas também é óbvio que, na “grande conversa” da literatura universal, o diálogo muitas vezes se dá através da tradução e não do original. Pouca gente sabe russo ou grego no Brasil, e por isso muita gente lê os tradutores de Dostoiévski e Homero.

O poema de Rilke, na tradução de Bandeira, é uma dessas obras aparentemente limítrofes entre a prosa e o verso (acho mais razoável falar em “verso” do que em “poesia” para poder apontar diferenças tangíveis). Sobre ele e os poemas que lhe fazem companhia, disse Otto Maria Carpeaux:

São elegias e sonetos só em aparência; na verdade, a forma voltou a ser livre, e a esta particularidade métrica corresponde a dissolução dos contornos, tão firmes nos Poemas novos.

“Nota sobre Rilke”. Ensaios Reunidos, vol. 1. pp. 542-6

Ao falar em “contornos”, Carpeaux se refere sobretudo às rimas, que aqui estão “perdidas” na predominância da sintaxe, isto é, na necessidade de se seguir mais a sintaxe do que as quebras dos versos. As rimas acabam ficando mais como ecos que nos lembram da estrutura do soneto. Mas é interessante como há um encontro perfeito e suave entre a sintaxe e a forma poética; pode haver uma tentação de dizer que se trata apenas de prosa metrificada, mas, antes de animar a discussão um tanto estéril sobre o que é prosa e o que é poesia, é preciso lembrar que obras como o “Essay on Criticism”, de Alexander Pope, nunca foram chamados de prosa muito bem metrificada. A naturalidade tão calculadamente espontânea com que os “contornos”, as rimas, incidem sobre a sintaxe denota que se trata de um poema.

“Torso arcaico de Apolo” faz parte da tradição de poemas que se referem a outras obras de arte, tradição que aliás deu seus últimos grandes frutos em vários poemas de O mundo como idéia, de Bruno Tolentino. Na língua inglesa, talvez o representante mais conhecido da tradição seja a Ode on a Grecian Urn (“Ode a uma urna grega”), de Keats, e, ao menos no português do Brasil, o Vaso grego e o Vaso chinês, de Alberto de Oliveira, clássicos com todo direito dos livros didáticos e antologias. Curioso é que os poemas ingleses de Keats e Shelley sobre o passado clássico sejam considerados românticos, e os poemas brasileiros sobre o mesmo assunto, escritos no mesmo século, sejam tomados quase como a antítese do romantismo.

A grande diferença deste poema de Rilke, aquilo que o faz destacar-se na tradição, é o final do famosíssimo último verso, Du musst dein Leben ändern, que ao pé da letra significa “Tu deves mudar de vida”. A adaptação de Bandeira – “Força é mudares de vida” – , exatamente por aproveitar os recursos do português, como a desnecessidade de uso pronome reto e a expressão comum “força é”, também se destaca entre as inúmeras traduções para o inglês, o francês, o espanhol e o próprio português que se pode encontrar pela internet. O alemão original usa o pronome reto du (“tu”), mas sua ausência no português de certo modo enfatiza a mensagem do poema e “melhora” o original: a perfeição da obra, que resiste ao desgaste do tempo e às mutilações, não deixa incólume quem a vê, o que recorda os versos de Bruno Tolentino sobre Santa Teresa que já citei:

É desastroso ouvi-la que uma vez
ouvido tudo aquilo que ela diz

é impossível voltar a ser feliz,
ou infeliz, com a mesma insensatez
de antes.

Rilke, então, não se limita a uma meditação sobre a beleza, como fez Keats diante das obras que escolheu, nem ao simples louvor e à descrição de sensações estéticas de Alberto de Oliveira, mas passa conclui com as implicações práticas: “força é mudares de vida”. Interessante contrastar isto com o que Auden dizia, que a poesia não faz nada acontecer; mesmo que ele se referisse a grandes mutações coletivas, na escala individual a contemplação de obras de arte pode trazer grandes mudanças. Para muitos, sobretudo os que não têm religião, a idéia de perfeição vem antes das obras de arte, que podem exercer uma influência extremamente benéfica. O único risco, obviamente, é o de transformar a arte em religião, e eu mesmo acredito que todos têm uma religião, seja esta uma religião no sentido habitual ou qualquer outra coisa. Toda vida tem um centro, todo coração tem um tesouro. Ele não está necessariamente nas coisas que lemos ou pensamos, mas nas coisas que fazemos. Se a estátua do torso de Apolo nos inspira a mudar, excelente; se ela nos inspira apenas a continuar gostando de ver esculturas, isto já não é tão bom.

Uma última questão inevitável: Rilke preferiu não considerar que possivelmente a estátua de Apolo possuía alguma função religiosa, algo bem diferente de ser exposta num museu para que muitos turistas pudessem passar o tempo e alguns intelectuais pudessem se edificar. Ele sabe que a estátua não está materialmente inteira, mas prefere não tocar na sua falta de inteireza, digamos, contextual. Se ele tivesse escolhido tratar disso, provavelmente não poderia estabelecer uma relação tão direta e individual com ela. Do modo como fez, abriu ou reabriu a questão das novas relações que vamos estabelecendo com obras de arte que restaram de contextos absolutamente mortos.

Torso arcaico de Apolo

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