Editorial do Número Zero

É bom avisar logo que, num jornal que se chama O Indivíduo, este editorial do número zero vai ser a única coisa escrita de forma dita “impessoal”. Ou melhor: vai ser assinado por quatro pessoas, nós quatro que formamos o conselho editorial deste jornal. Porque neste jornal deve imperar o estritamente pessoal, pensado e escrito por um indivíduo sozinho.

Isto está fundamentado na nossa crença no indivíduo. Num tempo em que se fala muito em coletividades, nos “excluídos”, nos “sem-alguma coisa”(e todos somos sem alguma coisa…), no velho “proletariado”, nas “forças populares”, na “juventude”, na “geração cara-pintada”, nas “tribos” e tudo mais, nós queremos nos dirigir ao ser humano sozinho, de um para um. Porque é assim que as coisas são. Individuais.

Todas estas coletividades são apenas figuras que utilizamos para pensar com uma certa ordem e que não se traduzem completamente na figura de uma pessoa, que, se pode ter características atribuídas à coletividade, pode também – como acontece na maioria dos casos – transcendê-las.

Além do quê, não é, por exemplo, “a juventude” que pensa, mas cada jovem em separado. Se há semelhanças entre o pensamento de vários jovens, isto não é razão para crer que há uma elevação do coletivo sobre o individual, como se “a juventude” fosse um ente concreto e não apenas uma qualidade humana – aliás, a mais efêmera.

Por isso vemos que não faz sentido fazer um jornal para um “grupo”. Nós quatro queremos, antes de tudo, atingir os indivíduos pensantes, sejam negros, brancos, pardos, façam Física ou Letras, o que quer que seja.

A segunda motivação por trás deste jornal, muitíssimo ligada à primeira, está no nosso estranhamento a muita coisa deste nosso mundo muderno e da Pontifícia Universidade Católica. “Madness in great ones must not unwatched go”(“A loucura nos grandes não deve ficar sem vigilância”), diz o rei Claudius em Hamlet. Assim sendo, escrevemos estes artigos só para avisar aos “grandes” – os professores, o corpo administrativo da PUC, gente do mundo cultural e formadores de opinião em geral – que eles estão sendo vigiados, que não podem achar que ficam impunes.

Na verdade, não temos a menor pretensão de mudar nada. Só queremos mesmo que a PUC, professores, padres e alunos, saibam da nossa existência. Os que gostarem, ótimo; os que quiserem colaborar, melhor ainda. Os que não gostarem provavelmente só aumentarão nossa certeza de estar no caminho certo.

Terminando, queremos salientar que esse não é um jornal de mera opinião. Opinião é uma coisa que as pessoas têm ao fim do almoço, um pensamento não elaborado. Tudo o que estiver aqui publicado pretende ter o status de argumento e deverá ser considerado como tal. Não publicaremos as impressões de alguém sobre algo e nem conjugaremos o verbo achar. Quem acha não nos interessa; só prestamos atenção a quem quer discutir alguma coisa em bases razoáveis. Agora, tampouco nos consideramos os “donos da verdade”. É só que o nível do debate está tão baixo que um pouco de veemência e real capacidade argumentativa(aliada à qualidade dos argumentos) assusta os espíritos mais frágeis, que crêem ser a essência do debate, e não a sua caricatura.

Pode ser ainda que tudo que se escreva aqui seja meramente bobagem, que nós não passemos de uns malucos arrogantes. Mas, ainda que o sejamos, queremos deixar clara a certeza que fundamenta tudo que dissermos, inclusive a possibilidade do errar. Nas palavras do espanhol Antonio Machado:

La verdad es lo que es

y sigue siendo verdad

aunque se piense al revés.

Álvaro de Carvalho

Sérgio Coutinho de Biasi

Pedro Sette Câmara

Zé Roberto

A negra noite da consciência

Às vezes me pergunto em que país eu vivo. Porém, o testemunho da minha consciência me faz ver que a loucura que gera esta questão tem origem nos outros, e não numa possível ilusão geográfica minha. Eu continuo são, e meus olhos não me enganam. A única coisa que persiste é, talvez, a sensação de que eu preferia estar profundamente errado ou meio doido mesmo.

Foi exatamente assim que eu me senti ao descobrir que se realizaria na PUC uma Semana de Consciência Negra, um evento inspirado na idéia norte-americana do “politicamente correto”. Acredito mesmo que isso só possa ser fruto da tal “colonização cultural”, um fenômeno que, em tempos de “globalização”, ficou meio esquecido, mas que, infelizmente, existe sim: basta olhar para os negros brasileiros, que, em termos de aceitação social, têm uma vida muito melhor do que a dos negros americanos – lá nos EUA existe racismo mesmo – querendo

importar os problemas deles.

Se pudéssemos apontar qual o maior exemplo – quiça único – que o Brasil dá à humanidade, ele está na convivência interracial e multicultural. Só aqui, na TV, passa comercial de programa árabe durante o programa judeu. Só aqui todo mundo convive muito bem, sem Ku Klux Klan e sem ódio “étnico”. A única parte que assume isso são os skinheads e todo mundo sabe muito bem que eles são considerados um grupo malévolo à parte que deve ser combatido.

(Alguém pode dizer: “aqui o racismo é sutil”. Eu pergunto: o que é “racismo sutil”? Quem não gosta de uma raça sempre manifesta isso de uma maneira que qualquer espírito, ainda que não muito sutil, percebe.)

O grande racismo, nada sutil, mas que pouca gente percebe, está em eventos como esta Semana de Consciência Negra. Primeiro, porque ninguém acharia bonito se fizéssemos uma Semana da Consciência Branca. Promover uma raça, qualquer que seja, é racismo. E eu não vejo nenhuma razão para tolerar nos outros o que eles pretendem condenar em mim. A única razão que se poderia alegar para que eu tolerasse isso é uma certa infantilidade da parte deles. É em criança que se tolera esse tipo de atitude.

Donde se conclui o óbvio: uma Semana de Consciência Negra depõe contra a própria raça negra, como se esta fosse composta de pessoas que precisassem desesperadamente de auto-afirmação. Auto-afirmação, aliás, equivocada: nenhuma produção de cultura negra será boa ou relevante para a humanidade por ser negra, mas por ser cultura (não no sentido antropológico do termo). O poeta Cruz e Souza não se destaca como um poeta de relevância universal por ter sido negro, mas pelo valor da sua poesia, que teria o mesmo valor se tivesse sido escrita por um viking.

Querer falar de uma consciência negra como se esta fosse essencialmente diferente de uma consciência branca, ou árabe, é realmente estúpido. Porque, sendo diferente, e havendo tamanho esforço para celebrá-la e estimulá-la, só se pode concluir que ela seja ou superior ou inferior às outras. Faz-se tanto pelo consciência negra para ajudar ao mais fraco; ou então celebra-se tanto a consciência negra poe ela ser superior, a base mesmo da nossa civilização. A primeira é um nazismo patético às avessas; a segunda é nazismo mesmo – e com nazista eu não converso.

Um argumento que é utilizado pela comunidade negra (já pensou como soaria comunidade branca?) é o de reparação. Reparação das injustiças que foram cometidas contra os negros, escravizando-os, tirando-os da sua terra, etc. Bem. Os faraós egípcios, que, segundo alguns, eram negros, escravizaram vários povos durante mais de mil anos. A escravidão era prática comum entre as tribos africanas e todos sabemos que os negros das tribos mais fortes foram cúmplices dos europeus no comércio de escravos. Assim sendo, sugiro que os negros que desejam reparação façam árvores genealógicas para ir cobrá-la dos descendentes dos negros escravizadores. E, antes disso, peçam a conta a todos os povos escravizados pelos egípcios.

O pior mesmo é que ninguém atenta para isto. Só quando trouxerem a prática norte-americana (já banida) de “ação afirmativa” é que vão perceber. Houve na PUC, durante a Semana, um seminário sobre o tema. Para quem não sabe, “ação afirmativa” (“affirmative action” mesmo) é uma prática evidentemente racista que consiste em garantir uma porcentagem x de lugares para as minorias em certos meios dos quais elas se sentem excluídas – por exemplo, as universidades. Evidentemente racista porque toda decisão tomada com base em raça é racista. Assim, as universidades são obrigadas por lei a admitir tantos negros, de acordo com uma proporção matemática extraída no número de negros na região. A grande diferença dos EUA para o Brasil, neste sentido, é que lá, na hora de você entrar na universidade – falo por experiência própria – você fundamentalmente manda o seu currículo.

Aqui no Brasil o sistema é de vestibular, e cada universidade tem o seu. Já imaginaram a beleza que vai ser, se a “ação afirmativa” vier para cá, o vestibular? Salas para negros – que ou farão provas bem mais fáceis ou terão critérios mais brandos de avaliação, já que a universidade é obrigada por lei a ter em seus quadros um percentual predeterminado de alunos negros – e salas para brancos? Isto aí é ou não é a explicitação de uma demência completa?

Ninguém vê porque a consciência mesma, seja negra, branca, grega ou troiana, está mergulhada numa noite de preconceitos. E o preconceito é um tipo de cegueira intelectual. São cegos perdidos à noite que só tem outros cegos para os guiarem e que crêem que a cura da cegueira seja mais cegueira. O ruim com o ruim não dá bom: dá pior. Estas práticas, que só aumentaram o racismo nos EUA, produzirão um efeito muito mais nefasto no Brasil, que apesar de não ter valores culturais tão arraigados, têm como maior valor a boa convivência racial. Todo este discurso só vai ter como único resultado a importação de um problema que nós não temos. Vão inventar a consciência de uma contradição que não existe, e o Brasil vai dar mais um passo para longe da realidade.

Site Meter

O massacre do bom senso

Diante de certas manifestações de total falta de senso que andam invadindo os pilotis, é muito valorosa a advertência do historiador Evaldo Cabral de Melo, em recente entrevista para o caderno “Prosa e Verso”, do jornal “O Globo”.

Dizia ele, com coragem rara em nossos intelectuais, que política retroativa não é História. A História, para que se pretenda ciência, deve ser feita com documentos e elementos verificáveis. Em outras palavras, para estudar a História, não nos cabe impor modelos à realidade ou querer que o passado se adapte às nossas aspirações presentes. É preciso buscar a veracidade, buscar o fato, deixando que a realidade se apresente a nós tal e qual ela foi e não como gostaríamos que ela fosse.

Não digo com isso que a atividade historiográfica vai sempre ser capaz de descrever todos os fatos passados, mas que ela só atinge seu verdadeiro propósito quando se restringe àquilo que é capaz de descrever, e o faz com honestidade. Nada pode ser pior para a descrição histórica do que a contaminação ideológica, que impede os historiadores de enxergar o que não se adequa a sua pobre visão de mundo.

Uma vez descrita a realidade, aí sim é possível emitir sobre ela um juízo valorativo. Não me estenderei aqui sobre a necessidade de emitir esse juízo. Basta dizer que, sem que possamos enxergar a História de um ponto de vista universal e absorver dela algo que nos informe sobre nós mesmos, o estudo histórico deixa de ser necessário. Ora, incorporar à nossa vida verdades que nos tenham sido legadas por atos ou palavras dos homens que nos antecederam requer a emissão de um juízo.

Deste ponto de vista, podemos delinear, como aponta Olavo de Carvalho, três tipos de atuação histórica: aquele que não tem nenhum tipo de significação fora do contexto em que se desenrolou, aquele que deixa para os tempos seguintes um modelo de ação inspirador (e tem importância universal) e aquele que deixa atrás de si uma sombra de pesadelo, espécie de modelo negativo – o que não se deve repetir.

Tudo isso vem bem ao caso nesta época de exaltação ao movimento “revolucionário” de Canudos e ao seu chefe Antônio Conselheiro.

Dar a esse movimento um valor além de suas próprias circunstâncias é uma falsificação enorme, um exemplo perfeito da citada política retroativa. Antônio Conselheiro não foi um visionário e Canudos não foi um Movimento dos Sem-Terra avant la lettre. Foi, simplesmente, uma manifestação de crendices populares, um fenômeno localizado, provocado por um sentimento de impotência ante as novidades republicanas. Não há nenhuma profundidade mística, nem reivindicações progressistas nesse movimento. Há, sim, fanatismo e ignorância, recusa a qualquer autoridade e espírito de desordem.

Quando a nossa esquerda progressista elege como ídolo um sujeito como Conselheiro, é que perdeu completamente a noção dos fatos. Até porque o movimento foi reacionário, anti-progressista. Conselheiro criticava as mudanças introduzidas pela República, pregava a volta do Império e se aproveitava do sentimento religioso popular. A atração que exerceu – e exerce – vem da necessidade de ter algum modelo, de depositar as esperanças em alguma figura pública. Mais ainda, em alguém que se diz investido de poderes divinos.

Citemos a maior autoridade no assunto, Euclides da Cunha, mesmo correndo o risco de destruir doces ilusões: “Canudos ia se tornando o homizio [esconderijo] de famigerados facínoras.” De fato, o que Euclides observa no movimento é o desrespeito ao que quer que seja, aliado a uma devoção fanática a um líder messiânico, a quem foram atribuídos até milagres.

Não pensem que apóio o massacre. Pelo contrário. Tão ou mais selvagens que os sertanejos foram os militares, que não se esforçaram nem um pouco para compreender o movimento e nem refletiram sobre a imprevidência de suas ações.

O próprio Euclides os advertira que o extermínio de Canudos levaria a uma guerra longa e sangrenta. “O sertanejo é antes de tudo um forte” e lutou até o fim de suas forças. Ignorando esse fato, o sucessivo envio de tropas do Exército para a região levou a três conseqüências problemáticas, mutuamente relacionadas: a exaltação dos sertanejos, que culminava com o aumento do prestígio de Conselheiro; a morte (perfeitamente evitável) de milhares de soldados e a dizimação da população de Canudos; e o crescente atrelamento do poder político ao poder militar. A Nova República se tornava refém de seu braço armado.

Esse breve resumo pretende mostrar que não nos cabe dar à revolta de Canudos um status de luta do Bem contra o Mal. Reconheçamos que houve erros de ambas as partes, da mesma forma como ambas tinham suas razões. A terra é uma reivindicação legítima, desde que não se faça disso um instrumento para a instalação do caos – e, vale ressaltar, o discurso de Conselheiro tende mais para o caos do que para a legitimidade. Da mesma forma, a segurança nacional é uma causa legítima, deixando de sê-lo quando o poder armado incorre em abusos – caso no massacre de Canudos. Endeusar qualquer um dos lados é uma imprevidência e uma estupidez. Satanizar o outro, idem.

Mas será que adianta o apelo à razão, quando o público universitário está enceguecido pelas trevas da ideologia, e a ânsia de poder político se sobrepõe a qualquer outra aspiração da alma?

(Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1997)

Ciência versus filosofia?

Iniciamos com este artigo uma coluna cujo assunto será a consideração das relações mútuas entre os desenvolvimentos da ciência e da filosofia.

Vivemos em uma época na qual os filósofos, em sua maioria, estão muito afastados dos cientistas. Historicamente, ciência e filosofia surgiram juntas e durante muito tempo se confundiram; a própria física começou como filosofia natural. À medida em que o tempo passou, e a ciência ganhou uma complexidade cada vez maior, e nossa compreensão do mundo e do universo – pelo menos a nível fenomenológico – se expandiu, porém, uma atividade ficou cada vez mais distinta da outra. À medida em que o território da ciência se expandiu, suas fronteiras – para além das quais está a metafísica e a filosofia – pareceram cada vez mais distantes, para muitos, da quase totalidade da atividade científica. Desse modo, chegamos a uma cisão suspeitíssima na qual acredita-se que é possível produzir ciência de alta qualidade sem nunca gerar qualquer pensamento filosófico novo e que seja possível filosofar sobre a realidade (supondo que exista uma) sem conhecer ou se reportar à ciência.

Ora, em ambos os sentidos estamos cometendo erros crassos, e prejudicando – em certos casos impedindo – tanto o progresso da ciência como o da filosofia. Por um lado, a ciência não pode avançar – ou sequer existir – sem a filosofia. As estruturas filosóficas, conscientes ou não, constituem a ferramenta através da qual tentaremos interpretar a realidade – e isso vale tanto para um bebê recém nascido como para um grupo de pesquisa em física nuclear. Até aí, poderíamos conceber a filosofia como fundamento implícito mas dissociado do objeto da ciência. Só que o conhecimento não consiste apenas em preencher com percepções e experiências uma forma já pronta. Ao contrário, os grandes saltos de compreensão se dão quando reformulamos nossas formas (geralmente ao depararmos com percepções que não sabemos onde encaixar). De fato, o tipo de conhecimento que a ciência pretende obter sobre a realidade está muito mais nas estruturas que descobre serem “adequadas” para interpretá-la do que no acúmulo infinito de percepções. Assim, todo grande avanço na ciência – aquele tipo de avanço que alarga suas fronteiras – não só requer mas consiste em uma mudança nas estruturas filosóficas através das quais pensamos a realidade.

Por outro lado, em particular pelo exposto acima, a filosofia não pode ficar alheia aos avanços da ciência. À medida em que a ciência avança, ela penetra em domínios que antes pertenciam à filosofia. Nossa apreensão da realidade se altera através das eras e, aos poucos, questões que antes pertenciam por excelência ao domínio do debate filosófico puro, e demarcavam até mesmo os limites do cognoscível, passam a poder ser tratadas cientificamente. Dessa forma, questões como “Que são as estrelas ?”, “O que é a luz ?”, “Será o universo infinito ?”, “De onde surgiram os seres humanos ?”, “O tempo passa com a mesma velocidade em todos os lugares ?” que em diferentes épocas já foram – e facilmente esquecemo-nos disso – questões filosóficas, hoje são tratadas pela ciência. Tal mudança de situação não impede incursões da filosofia pura em nenhum desses assuntos – porém é fundamental que quem se disponha a fazê-las considere – e para tanto precisará conhecê-los – os argumentos científicos relevantes. Já outras questões como “O que é o bem ?”, “Por que estamos aqui ?”, “Existe um Deus ?”, “O futuro está predeterminado ?”, ainda hoje são, eminentemente, competência da filosofia. Talvez algum dia se torne possível tratá-las no âmbito da ciência, talvez não; a filosofia é mesmo mais abrangente que a ciência. No entanto, o filósofo deve perceber que as descobertas científicas revolucionárias não apenas apresentam conseqüências filosóficas profundas, mas mais do que isso, consistem em reformulações filosóficas, e muito bem fundamentadas.

A ciência expandiu-se tanto nos últimos séculos que muitas vezes filósofos e cientistas perdem de vista que são atividades com uma fronteira – freqüentemente nebulosa – em comum, e que quanto mais a filosofia fala sobre a realidade concreta, mais próxima ela está da ciência, assim como quanto mais a ciência se universaliza, mais próxima está da filosofia pura. Pretender conhecer a realidade e fazer ciência sem empregar a filosofia é como tentar construir a cobertura de um prédio antes de lançar as fundações. Porém, fazer filosofia ignorando a ciência é como estudar o problema genérico das fundações ignorando os arranha-céus que já estão construídos por aí.

Por mais forte e clara que seja essa ligação, há porém uma forma de sabotá-la, que desfruta de considerável popularidade : negar não só a acessibilidade mas a própria existência de uma realidade objetiva, concreta, suposição básica sem a qual a ciência se torna não só desconectada da filosofia mas completamente inviável. A conseqüência direta dessas concepções subjetivistas e relativistas é um universo no qual todas as opiniões têm o mesmo valor e ninguém está efetivamente “com razão” sobre coisa alguma. Deliciosamente “democrático” ? O que de fato ocorre é que demolida a distinção entre o pensamento/sentimento de cada um e tudo o que está fora de nós, entre o que projetamos nos outros e o que vem de nós mesmos, fica, de fato, impossibilitada a comunicação e compreensão do outro, dado que estamos efetivamente negando seu direito de existir independentemente. E, como nada faz sentido mesmo, estamos isentos de qualquer responsabilidade e só o que pode prevalecer é nossa vontade pessoal. Em uma tal situação, só nos resta submeter (a marretadas) continuamente tudo e todos a nossas ilusões e fantasias (ao invés de, ao contário, adaptar nossas concepções e representações internas ao que vemos),num orgasmo de egocentrismo esquizofrênico.

Felizmente, essa visão de mundo se revela não somente dantesca mas também de pouca consistência. Afastada a possibilidade da unificação de todas as nossas realidades subjetivas em uma única e universal realidade objetiva, qualquer proposta filosófica fica transformada em um fim em si, em um delírio exclusivamente formal. E, de qualquer forma, não adianta espernear e dizer que não é possível fazer o que já está efetivamente sendo feito. A evidência mais contundente da existência de algum tipo de realidade objetiva é justamente o gigantesco e cada vez maior sucesso que a ciência vem obtendo em operar baseada nessa suposição.

Reflexões após os escombros

(Este era o título, hoje renegado, deste poema que deixo aqui antes como curiosidade histórica – PSC, 18 de novembro de 2006)

A sombra de haver

sentido de ser

supera o pesar.

O sonho do outro,

se é que há outro,

está em se dar.

Além da medida

comum dessa vida

que é de lascar.

O resto é saudade:

tristeza que invade

a falta de amar.

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