Lembro de quando o Papa João Paulo II começou seus pedidos de desculpas. Achei absurdo. Pensava que a Igreja tinha de manter-se altiva, e botar na mesa suas realizações. Hoje acho o contrário. Alegro-me com o pedido de desculpas e acho que valorizar a religião por “contribuições civilizacionais” é não entender nada, porque “de que adianta a um homem ganhar o mundo se ele perder sua alma?” (Mateus XVI, 26). O mundo precisa de reconciliação, mas não é possível recomendar a reconciliação sem no mínimo dar o exemplo.
Essa reconciliação não pode vir, também, se não houver uma aceitação do próprio mal. Boa parte do catolicismo de internet, em que obviamente me incluo, pode ser resumido a um embate de identidades públicas sob a aparência de um debate. Ou, para lembrar Bruno Tolentino, sob a parecência de um debate. Neste ponto, os grupos opostos e rivais se tornam idênticos: quanto mais agarram-se às suas supostas diferenças, mais parecidos ficam. Foi este o sentido da minha piada de ontem: entre um panfleto católico “ultraconservador” que fale contra o mundo moderno e textos que defendam o feminismo contra o machismo, o ressentimento é igual e só as palavras são diferentes. Com isso, é óbvio que não digo que o conteúdo de um ou de outros sejam invalidados; só digo que cada um dos grupos simplesmente postula a bondade intrínseca da sua própria identidade, identidade essa cada vez mais sutil, e tira daí as consequências.
Hoje em dia tendo a considerar os discursos dos movimentos de minorias como uma ultrassensibilidade à ideia de violência, ultrassensibilidade que decorre da própria ideia cristã. Afinal, o que eles fazem é denunciar formas de violência que nós outros nem sabíamos que existiam, que nem cogitávamos. Seguindo o princípio de que quem decide se houve agressão ou não é o agredido, como dizer que eles estão errados? No entanto, não posso deixar de observar que esse é um dos discursos mais antigos do mundo. Ninguém bota a mão no peito e diz: “eu sou o agressor”. Todos estão sempre reagindo a uma agressão prévia, inserindo-se num ciclo de violência que só não é infinito porque a raça humana é finita.
What huge imago made
A psychopatic god:
I and the public know
What all schoolchildren learn,
Those to whom evil is done
Do evil in return.
Mesmo que você hoje esteja apenas tomando aquilo que lhe é devido, as consequências disso podem ser nefastas. Talvez até eu mesmo já pareça nefasto por estar dizendo isso, por estar supostamente incitando a um conformismo e a uma perpetuação de uma situação de violência. Mas veja que não estou me dirigindo a movimentos de minorias em particular, mas também aos católicos e demais religiosos, que partilham de idêntico ressentimento. Se não rompermos o ciclo da violência, bom, não romperemos o ciclo da violência. O que é justo para você é uma violência arbitrária aos olhos dos demais.
A melhor coisa do Natal é que nada disso precisa ser assim. “Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas pecadores” (Mateus, IX, 13). Esse sacrifício era o sacrifício ritual, o mesmo que, antropologicamente falando, continuamos a realizar quando nos juntamos com nossos amigos para falar mal daqueles que nos causam repulsa, “sacrificando” essas pessoas para que nos sintamos bem. Se o Natal marca uma nova era, então que seja a era em que, nós, pecadores, abdicamos disso e entregamos nosso ressentimento e nossa falsa concepção de pureza própria àquele que disse: “Meu jugo é suave, e meu fardo é leve” (Mateus XI, 30), e que é o Grande Desmistificador do “deus psicopata” que simplemente gerencia a violência. Nós podemos nos livrar de tudo isso. Se o lobo pode dormir com o cordeiro, o católico também pode abraçar a feminista.
Feliz Natal a todos.