Cheguei a um ponto em que creio que nem os terroristas islâmicos são fundamentalmente islâmicos. Quer dizer, claro que são islâmicos, mas eu não acredito nem por um segundo que o fato de serem islâmicos seja a causa principal de serem terroristas (como se a o fato de a maioria dos muçulmanos não ser terroristas já não tivesse demonstrado isso, mas bem).
Estou dizendo tudo isso porque hoje cedo tive uma ideia, que pode ser lançada ao cosmos para que alguém a estude, ou talvez eu mesmo, no futuro. Seria preciso reunir uma grande bibliografia e por isso vou falar algumas coisas de orelhada agora. O ideal seria ter um ano ou dois para entregar à pesquisa.
Bem. Já ouvi algumas vezes que até os anos 1960 ou 1970 ninguém no mundo islâmico se lembrava de que as cruzadas existiram. Foi só depois dessa época (não por acaso, a época em que, se não me engano, começou a influência da intelectualidade europeia moderna sobre os países árabes) que surgiu o ressentimento difuso contra o Ocidente por causa das cruzadas. E, claro, há também no mundo islâmico diversos ressentimentos internos. Aqui deste lado do planeta lembramos mais dos atentados de NY, de Madri e de Londres, mas houve muito mais atentados por lá mesmo (do Egito à Índia, sem contar os atentados contra as forças de ocupação americanas).
Passemos aos EUA dos anos 1990. De repente, todo mundo sofreu abusos sexuais na infância. E começam as investigações, os processos. Todo homem adulto passa a ser visto como pedófilo em potencial.
Há coisa de uns dois anos, acho, surgiu no Brasil a narrativa do bullying, barbarismo que indica os valentões que intimidam as outras crianças. Isso acontece, claro. Assim como as cruzadas aconteceram, e também os abusos sexuais. Mas a narrativa, a transformação do bullying em problema social diagnosticado, reconhecido e oficial (o jornal O Globo de hoje põe na capa que 84,5% dos alunos das escolas foram “afetados” pelo bullying, metade tendo sofrido e metade conhecendo alguém que sofreu) cria a impressão de um vale de lágrimas e de horrores e alimenta os ressentimentos das vítimas. As quais poderiam estar passando relativamente bem e ter praticamente esquecido o que sofreram.
Eis aonde quero chegar: antes de cada ataque, surgiu uma narrativa que colocava certas pessoas como vítimas de uma violência absurda, e que assim legitimava sua vingança. Eu não estou nem dizendo que essa narrativa seja intrinsecamente falsa. Na verdade, aí é que está o impasse trágico. Contar uma verdade, expor uma narrativa de violência, parece produzir mais violência, e acirrar a disposição para o duelo contra o agressor. Mas por que deveríamos deixar de dizer uma verdade?
Já citei aqui, vale a pena repetir:
I and the public know
What all schoolchildren learn:
Those to whom evil is done
Do evil in return.
Isso tudo, creio, é o reino do Anticristo. Como já falei, se Cristo é a vítima que diz: “Pai, perdoa-os”, o Anticristo é a vítima que volta para se vingar. Hoje em dia, todos se vêem como vítimas que julgam ter adquirirido o direito de praticar alguma violência: os gays e os cristãos, as vítimas de bullying e os pobres, os muçulmanos e os judeus. A ênfase está em “que julgam ter adquirido o direito de praticar alguma violência”. E claro que isso é uma generalização, que não se aplica a todos os indivíduos. Na verdade, se você sentir uma profunda indignação ao ler isso, creio que estará demonstrando que a generalização se aplica exatamente a você.
Por isso também me parece fútil procurar as causas dessas atitudes no conteúdo específico de alguma ideologia, ou de uma religião. A estrutura básica é a de uma narrativa que corre paralela à da Paixão de Cristo e que parte de uma situação como aquela descrita no versículo 16 do Salmo 22 (lido ontem, na liturgia do Domingo de Ramos): “Pois cães me rodeiam; um ajuntamento de malfeitores me cerca…”
Estamos diante de um impasse trágico porque as violências sofridas pelos grupos não são imaginárias, mas reais, e o fundo judaico-cristão da nossa cultura é um convite a que violências sejam desenterradas ininterruptamente. Se você quiser ver uma diferença entre a sociedade arcaica e a nossa, pode ler a Odisseia. O grande herói Ulisses pilha cidades e mata um bocado de gente sem que a narrativa (e até nós mesmos!) demonstre a menor reprovação. Hoje seria impossível escrever uma história assim sem que no mínimo algum leitor ou crítico a chamasse de “niilista”. Se o personagem de prestígio da Antiguidade era o herói que matava sem remorsos, o personagem de prestígio da nossa cultura é a vítima inocente, ou percebida como inocente. Mas mesmo nós, após 2000 anos de cristianismo, não estamos prontos a oferecer a outra face. Queremos ver a vítima inocente voltando para se vingar, isso é, para “fazer justiça”.
Neste momento devo dizer que, se eu tivesse interesse pelo género dos filmes de terror, escreveria uma história em que bebês abortados ressuscitariam com metralhadoras e tomariam Nova York. Fetos mutilados zumbis assassinos esquartejando os membros da Planned Parenthood. O subtítulo, seguindo o estilo acadêmico, seria: Retaliar e retalhar. Se você riu ou sentiu algo ao ler isso, foi o desejo de vingança que se movimentou e, quem sabe, começou a ser purgado.
Agora, voltando, o pior disso tudo que estou dizendo é que minha hipótese pode ter comprovação empírica. Quando uma nova narrativa de vitimação adquirir prestígio — por ser, por exemplo, sancionada pela comunidade de psicanalistas — , surgirá um novo grupo de pessoas dispostas à violência vingativa, a qual terá, obviamente, o nome de “justiça”. A extensão do estrago dependerá dos meios disponíveis, e vocês podem tirar daí as piores consequências que conseguirem imaginar. Eu mesmo já estou rezando para não estar por perto quando a primeira dessas vítimas vingativas adquirir uma bomba atômica que caiba numa valise.
*Este texto não foi escrito com a intenção de servir de comercial para o curso de James Alison (chamado justamente “A vítima que perdoa” — nada melhor para a Semana da Paixão), mas, se eu estivesse em SP, tentaria fazê-lo.