Não existe debate público sobre aborto

Se eu fosse professor, e quisesse ensinar meus alunos a enxergar polaridades, sugeriria que olhassem para a questão do aborto. Não existe a menor possibilidade de os defensores da legalização do aborto se entenderem com os defensores da manutenção de sua ilegalidade. E, para deixar claro de uma vez, e isso porque acho full disclosure um negócio bacana, recordo que eu mesmo faço parte do segundo grupo. Acho que o aborto deve ser ilegal e, veja que escândalo, acho que as mulheres que praticam aborto devem ser penalizadas judicialmente, porque crime sem punição é palhaçada. Acho também que dizer que eu só digo isso porque sou homem é tão legítimo & arguto quanto eu dizer que você não pode estudar matemática porque é mulher. Mas não é isso que me interessa aqui; não quero convencer ninguém, ao menos não nesse momento, da validade da minha posição.

E, por favor, durante este texto, a palavra “aborto” significará “legalização do aborto”. Tenho certeza de que você é grandinho e já aprendeu na escola uma figura de linguagem chamada metonímia. Pelo menos antes de o ministro Paulo Renato inventar seus temas transversais e de Fernando Haddad fazer sabe-se lá o quê, era isso que a gente aprendia.

Considere como os defensores do aborto se rotulam nos EUA: pró-escolha. Os que são contrários, pró-vida. Não são rótulos que se referem ao mesmo objeto. São duas formulações totalmente distintas do problema. Não existe entre elas um debate. Existe só competição retórica. (Claro que você pode achar que o “mercado de ideias” é a solução para tudo, e se você achar isso eu recomendo que recorde que o livro mais vendido de todos os tempos é a Bíblia, que a maior parte das pessoas no Brasil e provavelmente no mundo é contra o aborto etc.) Competição retórica não é debate. O fato de um assunto morrer não significa que um punhado de teses foram refutadas. O fato de alguma crença pegar mal não significa que ela é falsa. Tem gente que acha corajoso e bonito ver que outra pessoa ainda se diz comunista. Ou monarquista. Prestígio social depende do meio social. E prestígio social não é validade intrínseca, nem veracidade. Escolhemos a maioria dos nossos argumentos como quem escolhe roupas. Na melhor das hipóteses, só conseguimos examinar bem mesmo um punhadinho das nossas ideias. Esse ar de “pensamentos idos e vividos” que tentamos dar ao nosso discurso é pura pose.

Um defensor do aborto vai falar em saúde pública, em mulheres que morrem ou que sofrem consequências negativas por terem feito abortos em más condições. Nada disso é falso. Alguém contrário ao aborto vai dizer que desde a concepção existe uma vida humana, o que também não me parece falso, se você considerar que um óvulo fecundado, deixado no útero de uma mulher saudável, virá a ser um bebê.

O lado pró-escolha vai dizer que o lado “pró-vida” negligencia a vida das mulheres adultas. Esse lado pró-vida vai dizer que o lado pró-escolha negligencia a vida dos bebês. Basicamente, um lado está chamando o outro de assassino, seja de bebês ou de mulheres adultas.

Nesse momento, se você defende o aborto e chegou até aqui, talvez tenha ficado indignado porque acha que eu estou chamando uma mera massa celular de “bebê”. Na pior das hipóteses, anunciei qual era meu lado logo no primeiro parágrafo. Na melhor, você poderia ter reparado que estou tentando preservar o vocabulário de cada um dos lados da disputa.

Os dois lados, enfim, veem um ao outro como um bando de assassinos. E existe debate com assassinos? Não, né? Por isso que sempre se vai pedir para “mudar o foco” da questão do aborto. Mas essa mudança de foco é uma petição de princípio. Se a prática do aborto ilegal é ou causa um problema de saúde pública, bem, temos de resolver os problemas de saúde pública, não é mesmo? Quem é que pode dormir à noite com um problema de saúde pública? E o que fazer com essa gente que se nega a resolver um problema de saúde pública? Chicoteá-los? Por outro lado, se aborto é assassinato de bebês, bom, eu não quero que bebês sejam assassinados. Temos de pegar esses assassinos de bebês e botá-los todos na cadeia. É claro. Diga não ao assassinato de bebês parece um slogan óbvio até demais.

É por isso que não existe debate público sobre o aborto. Até as garrafas vazias de vinho na lixeira lá fora já sabem que, quando alguém vem dizer que a sociedade tem de debater o aborto / as drogas / as micaretas (peraí, elas já são legalizadas, tinha esquecido), isso significa: você tem de pensar exatamente como eu penso. De repente é preciso lembrar às pessoas que um debate começa com premissas comuns e supostamente termina com conclusões comuns, não que um debate começa com conclusões repetidas ad nauseam até convencer o outro lado. Até porque nunca vi uma pessoa chamada de assassina subitamente se convencer da posição de seu interlocutor.

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