Uma tradição de há séculos

Sobre a decisão de ontem do STF, de manter a Lei de Anistia, e ao lado de quaisquer considerações jurídicas, que não sou capaz de tecer, apenas recordo que a própria Lei de Anistia já era parte da grande tradição brasileira de evitar conflitos. Compramos nossa independência por 2 milhões de libras em vez de entrar em guerra com Portugal. Derrubamos a monarquia e fizemos a república em poucas horas — o próprio imperador queria evitar derramamento de sangue. Demos um golpe militar e acabamos com ele. Antes que o leitor indignado venha me acusar de menosprezar a violência envolvida nesses atos, vamos recordar com que violência os EUA e as colônias espanholas ganharam sua independência, e a França mudou de regime (algumas vezes, até ficar cansada). O fato é que, no Brasil, a violência é ocasional, molecular; tirando a Farroupilha, vai das revoltas da Regência às bombas da guerrilha — respondidas com torturas militares — e às ocupações de morros pelo tráfico.

O que está em jogo no caso específico da Anistia é se vai prevalecer a versão de que homens honrados lutavam pela democracia contra tiranetes assassinos, ou se homens honrados foram eventualmente obrigados a usar meios sujos para conter guerrilheiros totalitários. O que está em jogo não é a verdade, nem nunca é a verdade, porque a verdade é sempre que gente ruim, alegando talvez até motivos razoáveis, fez coisas ruins contra outra gente ruim, que também poderia ter lá suas razões, e isso é muito complicado de aceitar, porque nossa identidade é fundada na crença de que pertencemos ao grande clube das pessoas puras o bastante para poder julgar todas as outras. A idéia de que you can’t handle the truth, como diz aquele Jack Nicholson descabelado àquele Tom Cruise engomadinho, é exatamente essa, que você não só não descende de um Adão sem pecado, como ainda deu suas contribuições.

Como exercício, o fim da Anistia aos torturadores acirraria os ânimos de uma direita que questionaria com ainda mais força o perdão dado aos terroristas. Uma pessoa pura e boa observaria que o certo seria processar todo mundo, de todos os lados. Uma pessoa não necessariamente má observaria que o Estado brasileiro não existe no vácuo, assim como nenhum outro Estado, e que fiat justitia, pereat mundus.

Solução? Não há. O Brasil fez a opção histórica de ir pagando seus tributos ao Moloch civil em prestações, em vez de pagá-los de uma só vez. Morros ocupados, torturadores e terroristas e assaltantes soltos, balas perdidas. Vamos lá, já estou ouvindo a música do Leonard Cohen na sua boca: você está vendo o futuro no país do futuro, e ele é o assassinato.

O pensamento mágico

Olhando essa capa da Veja nas bancas, senti-me um Lévi-Strauss olhando um silvícola de desenho animado, com direito a ossinho amarrado na cabeça, lábios e orelhas perfuradas, cantando seu uga-buga para hipnotizar a tribo. Ou, se preferirem, pensei (porque sempre penso, é verdade), em Édipo rei: a peste assola Tebas. Édipo manda Creonte, o cunhado, ao oráculo de Apolo. Vem a resposta: “a peste assola Tebas porque o assassino de Laio está em Tebas.” O espírito de Laio não pode descansar enquanto o culpado não for encontrado. Temos de punir o assassino de Laio.

Não é possível — ou é perfeitamente possível, e mais do que coerente — que os responsáveis pela Veja não entendam que são eles mesmos que ficam em paz com a condenação dos acusados pelo assassinato da pobre Isabella Nardoni. Colocar esse tipo de chamada na capa só reforça o pensamento mágico do primitivismo: vamos nós descarregar nossa violência contra alguém, e, quando isso nos trouxer alívio e conciliação, vamos dizer que o espírito da vítima a quem trouxemos justiça pode descansar. Vamos dizer que a nossa sede de sangue é a sede de sangue de uma alma desencarnada.

A frustração trágica nas séries americanas

Há algum tempo gosto de definir o dilema trágico da seguinte maneira: você não pode obter aquilo que mais deseja se não deixar de ser quem é. O preço dos objetos desejados é a identidade atual. O maior desejo de Édipo era encontrar o assassino de Laio, mas, se este fosse encontrado, Édipo deixaria de ser o Rei de Tebas. Creonte queria que a lei do Estado fosse a repulsa a toda espécie de inimigo. Por isso, se desistisse da proibição de enterrar Polinices, enfraqueceria sua própria autoridade. Clitemnestra foi ingênua ao pensar que poderia vingar a morte da filha matando o próprio marido e que tudo terminaria por aí…

Esse é o mesmo dilema de séries como Gossip Girl e House. Blair Waldorf e Chuck Bass não podem continuar a ser manipuladores, reis dos próprios mundos, e submeter-se a outro rei, de outro mundo. Houve um episódio em que Chuck declarou isso abertamente. O Dr. House não pode ter um relacionamento razoável com uma mulher de quem ele goste porque para isso precisa abdicar de sua personalidade cáustica — a mesma personalidade que atraiu a mulher, aliás. Esse cabo de guerra pode acontecer interiormente, na alma dos personagens, como falei até agora; mas também pode acontecer exteriormente, como na disputa entre House e Tritter, ou nas disputas permanentes de House com sua equipe, ou nas disputas entre as meninas de Gossip Girl.

O maior problema dessas séries é que seus criadores têm o talento e a intuição necessárias para criar situações legitimamente trágicas, mas parecem estar eivados de idéias românticas e por isso não conseguem ou não podem resolvê-las satisfatoriamente. Isso porque as resoluções satisfatórias seriam a morte ou a transformação do personagem.

Claro que se pode alegar que 1. se o personagem morrer, a série acabará e 2. se o personagem mudar, os espectadores deixarão de ver a série e ela acabará. Também é possível dizer que a solução normalmente encontrada para fazer a série continuar — um mero esvaziamento da situação devido a algum fator externo (e isso vale até para Deadwood) — é totalmente realista, porque em nossas vidas conseguimos arrastar por anos a fio nossos defeitos sem que eles causem problemas obviamente grandiosos. Só quando olhamos para trás é que podemos ver quanto tempo foi perdido; mas agora, nesse momento, como o céu não está caindo, então está tudo bem. Porém, essa desculpa é a de pior qualidade dramática, porque a ação dramática, como diz Aristóteles, tem começo, meio e fim (e mesmo que você seja o mais pós-modernoso dos dramaturgos, essa definição permanece como parâmetro tácito, natural à cognição humana), e ficar vendo grandes conflitos resvalarem no vácuo pode até trazer alívio na famosa vida real, mas na TV isso é deveras frustrante.

A origem da tragédia: Brasil x EUA na OMC

Que a coisa assume para quem não é governo a figura da tragédia, é óbvio: os EUA não abrem mão dos subsídios, o Brasil vai revidar, os EUA podem revidar a isso e, como em todo cabo de guerra trágico, o raio da destruição só vai aumentar. A diferença é que os EUA podem agüentar muito mais do que o Brasil, o que também é óbvio.

Dois aspectos que ainda não vi mencionados, porém, parecem não ser óbvios — ou já teriam sido mencionados.

1. Por mais que o Brasil cresça aos olhos do mundo, ainda não tem poder para enfrentar o Golias americano sozinho. Uma coisa é retaliar porque tem o direito, outra coisa é simplesmente prever as conseqüências das próprias ações. Os EUA têm os famosos “excedentes de poder” e podem mandar a OMC pastar quando lhes convém. No entanto, o Brasil sempre prefere (ou declara preferir) agir multilateralmente. Deveria ter dado um jeito de bolar um ataque concertado com outros países. Como, eu não tenho a menor idéia. Mas sei perfeitamente que um dos principais problemas do não-“primeiro-mundo” é o excesso de competitividade. A Alemanha e a França passaram séculos esfaqueando uma à outra e hoje conseguem ser mais amigas do que Brasil e Argentina… Os EUA, é claro, valem-se da fragmentação e da competitividade da periferia.

2. Infelizmente, o comércio sempre foi politizado, e a OMC é uma arena mais civilizada para as disputas comerciais. Daí é que surge um paradoxo interessante. Se a OMC tivesse poder para acabar com os subsídios americanos ao algodão, isso poderia ser pontualmente bom para os consumidores de algodão dos EUA, e poderia ser bom para os produtores de algodão de outros países, mas queremos mesmo uma instância regulatória mundial? No papel isso parece bonito, mas como será que esse órgão seria usado? O que é melhor, uma OMC superforte ou uma margem maior para a política?

Agora, por trás disso tudo, há um simples tabu, que é o da extensão da ação governamental. Se o Brasil tivesse uma legislação melhor, se os laços entre políticos e empresários fossem menos fortes, se o Estado corporativo fosse mais fraco, os produtos brasileiros poderiam competir com os americanos com muito mais facilidade. Em vez de imitar os EUA naquilo que eles fazem de ruim, que é politizar o comércio, poderíamos imitá-los naquilo que já fizeram de melhor, que é ter uma legislação mais liberal. Mas isso seria a atitude anti-trágica por excelência: admitir a virtude do adversário e imitá-la.

Liberdade, ordem & paz

Li os artigos de Olavo de Carvalho e de Diogo Costa sobre ordem e liberdade e devo dar uma terceira opinião — talvez mais próxima da opinião de Olavo de Carvalho, por fazer com que a ordem de certo modo anteceda a liberdade. Minha opinião, porém, depende de um certo entendimento de “ordem” e de um certo entendimento de “liberdade”. No momento, não tenho os meios de reunir o que os dois disseram e procurar um denominador comum. Esperemos que alguém possa fazê-lo. Quiçá o Bruno Garschagen.

Num texto anterior, falei de como um dos problemas do Brasil era o excesso de competitividade: competimos no trânsito, nas ruas, nas pequenas transações cotidianas, partout. Como o espaço de não-competitividade é muito pequeno, não concentramos nossa inclinação para competir em nenhum terreno em particular — nos negócios, por exemplo — e por isso parecemos dispersivos. Gastamos nossa alma com raiva do sujeito que andou no acostamento, que contou uma mentira para tentar ganhar uma esmola, que simplesmente brandiu a lei e cobrou um imposto abusivo. Estamos nos defendendo o tempo todo, sempre cientes de que o gafanhoto pode vir e comer o pouco que acumulamos. Temos a sensação de ter pouca liberdade.

Por isso é que vou definir “liberdade” como a possibilidade de ação sem revide violento, observando que, por “revide violento”, entendo atos contra a vida, a saúde e as propriedades, e “ordem” como a possibilidade de aplicar uma violência unânime — isto é, “legítima” — contra aqueles que praticam a violência individualmente, em revide ou de motu proprio. Nesse sentido, “garantir a ordem” e “garantir a liberdade” seriam a mesma coisa: aliás, a função primária do Estado. Se existe a possibilidade de ação sem revide violento, posso inventar um produto que destrua indústrias inteiras e acreditar que não serei assassinado. Posso dizer o que penso sem ser linchado; posso até dizer o que não penso e supor que não serei linchado, ou ao menos que os linchadores sofrerão sanções violentas legítimas.

Uma vez que o Estado cumpra a sua função de conter e gerenciar a violência — aquilo que Adam Smith chamou de “uma administração tolerável da justiça” — , as pessoas podem competir de modo frutífero, e não sanguinário. Essa contenção da violência, porém, pressupõe a possibilidade perene de administrar a violência contra o transgressor interno e contra o inimigo externo. Não se pode fingir que os vizinhos não cobiçam o território que se ocupa; eu mesmo creio que os vizinhos do apartamento ao lado ocupariam rapidamente o apartamento onde moro se acreditassem que a minha resistência seria insignificante.

Nesse ponto, é preciso explicitar um pressuposto. Todo o meu raciocínio depende de crer que a violência é o estado natural do ser humano. Sim, eu creio nisso. Falo em garantir a ordem como se isso fosse igual a garantir a liberdade, e creio que as duas coisas estejam muito próximas de garantir a paz. Se você julga que o ser humano é naturalmente pacífico e não violento, um verdadeiro Adão recém-criado, não um filho de Caim, então de fato não temos bases comuns.

Retornando, e aproveitando para recomendar um post de Mencius Moldbug que toca no assunto, é preciso salientar que a ordem nasce da proteção contra o inimigo externo. A manutenção de qualquer sociedade depende de que seus membros efetivamente acreditem em certos mitos. Ser americano não é simplesmente acreditar na liberdade e no princípio de no taxation without representation, mas acreditar nisso contra o Rei George III. Houve, num dado momento, a possibilidade de atribuir o mal a um inimigo e combatê-lo; se antes ele não era exatamente externo, depois passou a ser. Foi “morto”, banido, sacrificado como bode expiatório. Foi a vitória das colônias na Guerra de Independência que criou a land of the free and home of the brave. Assim, parafraseando Adam Smith, o padeiro e o açougueiro americanos não estão apenas seguindo o seu interesse próprio ao vender pão e carne, estão também seguindo seu interesse comum de manter os ingleses longe e de viver segundo o esquema de diferenciações — a ordem jurídica, com todos os seus títulos de propriedade — que nasceu da violência que os expulsou.

O surgimento da ordem após a violência contra o bode expiatório é perfeitamente “espontâneo”. É um fenômeno universal. Não sei se é desse tipo de “espontaneidade” que Hayek está falando, mas tendo a suspeitar de que ele se refere às ordens espontâneas que surgem uma vez que existam proteções eficazes contra a violência, e a mais eficaz destas é o direito de propriedade. Nunca consegui aceitar a idéia de uma qualidade “metafísica” da propriedade, como se este computador em que escrevo fosse meu por alguma configuração intrínseca à minha pessoa e à natureza deste objeto individual. Não: basicamente, ele é meu porque se alguém tentar tomá-lo de mim a lei brasileira me autoriza a reagir e, em última instância, promete jogar o aparato violento do Estado contra essa pessoa. A propriedade é uma diferenciação social.

***

Reparem em como parecemos ter chegado a uma crítica marxista. Marx dirá que as proteções contra a violência, aquilo que eu e você entendemos como “direitos humanos” — o direito de não ser torturado, escravizado etc. — são meros direitos burgueses. Reduzindo a crítica marxista a termos girardianos, entendemos que há nela a noção de que a proteção contra a violência precisa ser estendida a outras áreas, sobretudo a área do trabalho. Eis a disputa do século XX a respeito da elaboração entre uma Carta de Direitos Humanos no âmbito da ONU, com os países ocidentais querendo incluir os direitos humanos “tradicionais” e a URSS querendo incluir direitos econômicos, sociais e culturais. Liberais (ou conservadores) podem crer que a sociedade é “justa” se os direitos humanos e os direitos de propriedade e igualdade perante a lei estiverem assegurados; marxistas dirão que isto é muito pouco e, na verdade, é apenas uma manipulação da burguesia para assegurar seu status (vide a importância do direito de propriedade). Talvez, aliás, possamos dizer que a diferença entre direita e esquerda é justamente que a direita tem um entendimento limitado da violência e pretende contê-la até um determinado ponto (por exemplo, não seria violência uma empresa vencer outra sem usar roubo e assassinato), e a esquerda tem um entendimento muito mais amplo do que seja a violência e de como ela deve ser administrada. A idéia de que a “história acabou” com a consolidação das democracias liberais seria a idéia de que todos os direitos que deveriam ser assegurados já foram assegurados; a idéia de que a história não acabou é a idéia de que é preciso continuar lutando para assegurar mais direitos e, com isso, uma certa espécie de ordem, “mais justa” que a atual.

É nesse sentido que o esquerdismo parece uma paródia do Cristianismo, um verdadeiro anti-Cristianismo: por esperar que as condutas não-violentas (como oferecer a outra face) que Cristo pediu a cada indivíduo sejam realizadas por lei, por um sistema jurídico, que, com a abolição da propriedade, instalaria uma situação violentíssima, porque aquilo que é de todos não é de ninguém, e pode ser usado de qualquer maneira sem temor de sanção violenta e legítima porque unânime.

Invictus e as causas liberais

Fui ver Invictus. É um filme excelente. É um filme que segue o princípio que enunciei ontem: os inimigos se unem em torno de um outro inimigo que lhes seja comum. Mandela une brancos e negros na África do Sul por meio da vitória da seleção nacional de rugby contra as seleções estrangeiras. A vitória esportiva é uma espécie de violência de mentirinha que tem um efeito similar à violência coletiva verdadeira. As competições esportivas se baseiam nisso. Os torcedores delegam sua identidade aos jogadores e, por meio da vitória destes, sentem sua identidade coletivamente afirmada. Creio, aliás, que os jogos da seleção brasileira exerçam tanto efeito sobre a população exatamente porque não temos a memória de uma violência real que nos unisse contra um inimigo externo. Por isso, de quatro em quatro anos os brasileiros vão em busca de afirmação.

Tornando à história do filme, que vou presumir que é fundamentalmente verídica, um liberal como eu poderia pensar que não é função do presidente da república ficar apertando mão de jogador, nem pedindo a capitão de time que vá vencer a Copa de rugby, mas uma pessoa sensata como eu espero ser não pode negar que o primeiro problema da África do Sul pós-apartheid e pós-eleição de Mandela era evitar uma tensão racial permanente que se transformasse numa guerra civil ou numa violência alastrada à la Zimbábue. A questão não é abstrata, não é decidir se cabe a um presidente fazer isso ou aquilo, mas entender que se o governo, os representantes da violência legítima (isto é, unânime, como a violência contra criminosos), não apaziguar as tensões internas da África do Sul não vai haver federação, não vai haver direitos, não vai haver nada. Seria o apogeu da idiotice dizer que as manobras de Mandela não passam de um abuso de seu cargo.

E aqui chego às causas que propus ontem. Elas seriam causas, não exatamente “idéias”. Não seriam maneiras de fazer com que os liberais concordassem entre si, porque não creio que isso seja possível, e não tenho muito interesse no impossível. Elas não devem ser analisadas pela ótica da competição pelo Maior Grau de Pureza Libertária. Elas representariam apenas um passo estratégico, de retórica coletiva, e ficaria feliz se elas fossem discutidas assim. Acho que a discriminação entre preço e imposto traria às pessoas uma consciência de que carecem imenso: a consciência de que o governo lhes custa muito mais, individualmente, do que imaginam. Na hora em que todo mundo começasse a sentir no bolso o quanto as coisas custam, talvez começassem a achar excelente que o governo não oferecesse tantas coisas. A supressão de propagandas estatais, além de economizar muitos recursos (por que não perguntar, ainda que de modo pouco libertário, quantos doentes deixam de ser atendidos a cada vez que passa um comercial na TV?), daria ao cidadão uma percepção mais seca do governo, cuja função, certamente, não é a de seduzir as pessoas. A adoção de algo como a probable cause melhoraria até as relações raciais — o policial seria obrigado a dizer que está parando um sujeito porque ele tem excesso de melanina e pensaria duas vezes.

Talvez estas não sejam as melhores causas (talvez sejam infactíveis), nem as mais prioritárias. Mas a questão não é essa. A questão é que alguma causa é prioritária, e sua prioridade vem do mero fato de estar entre as opções disponíveis, aliado ao fato de ser aquilo que mais contribui para uma estratégia de longo prazo. Não vai existir uma vanguarda leninista liberal que tome o poder, dissolva o governo e grite: “Privatizai o mundo!” Todavia, há algo que se pode fazer. Um belo dia foi possível optar entre o Plano Real e o desenvolvimentismo à antiga. Será o Plano Real um sonho libertário? Essa questão é menos relevante do que escolher entre aquilo que o cardápio oferece, a relativa estabilidade e a inflação galopante associada a maluquices do governo. Ficar no sonho é entrar no restaurante e não comer nada, indignado, esperando que o pé-sujo em que você se encontra se transforme na alta gastronomia que você só consegue imaginar.

Judeu, bode expiatório por excelência

Parece que o judeu é a vítima arbitrária por excelência — o que é demonstrado, insisto, pelo fato de que toda pessoa que quer assumir o papel de vítima se compara aos judeus, como que para pegar um pouco de seu “prestígio”. A idéia de que “os judeus mataram Cristo”, usada na Idade Média e até alguns séculos depois para justificar a perseguição aos judeus, é um belo exemplo de como o mecanismo do bode expiatório consegue seqüestrar qualquer coisa, inclusive a mensagem que o denuncia, inserindo uma parcialidade criminosa — ou mítica — no olhar. Só é aceitável dizer que os judeus mataram Cristo se recordarmos imediatamente que os judeus também ajudaram Cristo a carregar a cruz, que os judeus defenderam Cristo, que os judeus espalharam a mensagem de Cristo pelo mundo. Os “judeus” ali não são o povo judeu, mas nós todos: não são eles, os linchadores; somos nós, os linchadores. Essa visão devidamente completa, por sua vez, traria uma honestidade e uma complexidade redentoras: você, quem quer que seja, também fez o mal, também matou Cristo, mas não deixou de fazer o bem, de contribuir com sua obra.

No entanto, se ontem falei de como o nazismo pode ser o último grito da religião arcaica, hoje devo ressaltar um aspecto segundo o qual a perseguição aos judeus é moderníssima. Se a modernidade é a defesa das vítimas, a perseguição aos judeus dentro do próprio cristianismo foi a primeira perseguição “moderna”, isto é, justificada por um mito (o mito é sempre a versão do criminoso) moderno. Em vez de alegar a defesa do interesse nacional, como no caso de uma guerra, ou uma necessidade qualquer, alega-se um crime cometido no passado. “Perseguimos os judeus porque eles perseguiram Cristo primeiro”, o que é diferente de “entraremos em guerra com a Alemanha porque necessitamos da Alsácia-Lorena” ou “vamos dividir 40% do território paraguaio com a Argentina para manter certos interesses políticos e comerciais”. Isso é diferente também porque a perseguição aos judeus não assume a forma de uma guerra contra um povo estrangeiro, mas de uma perseguição dentro do território de um Estado (território esse estendido virtualmente pela guerra ou não). Essa estrutura anuncia as perseguições — decerto infinitamente mais brandas — politicamente corretas, isto é, aquelas que se justificam por uma opressão cometida primariamente no passado, seja ela real e terrível, como a escravidão, ou um tanto psicológica, como “o domínio do patriarcado”.

A passagem, digamos, do “espírito arcaico” para o “espírito moderno” está na persuasividade do mito. O mito anterior encobria a violência. As guerras falam em interesses nacionais. A perseguição contemporânea é justificada desde o ponto de vista de um direito de vingança adquirido pela vítima — direito de vingança que, é claro, é “justiça”. O nazismo combina os dois elementos: de um lado, um mecanismo claramente arbitrário de seleção das vítimas, e por isso tosco e repulsivo aos olhos modernos; de outro, o aproveitamento do povo que primeiro sofreu a violência em nome de um suposto direito das vítimas à revanche.

Uma hipótese sobre por que o nazismo tem fama pior do que o comunismo

Há muito procuro a resposta para a seguinte pergunta: por que o comunismo, tendo matado muito (muito) mais gente do que o nazismo, não tem uma reputação tão ruim quanto este último? De início pensei no mero esforço de propaganda da KGB, na longa marcha da esquerda etc. Também pensei na onipresença de filmes sobre o massacre dos judeus na Alemanha nazista. Nenhuma das duas respostas me parecia suficiente.

Devo dizer, antes de prosseguir, que renuncio, no caso, a qualquer espécie de competição pelo maior número de vítimas. “Ah, foram tantos milhões de judeus? Pois foram tantos mais milhões de cristãos.” O número não torna nenhuma dessas perseguições mais aceitável.

O que penso, hoje, é o seguinte. O nazismo causa uma repulsa mais imediata e visceral porque representa, no Ocidente, a última manifestação grosseira do espírito da religião arcaica, a mesma, aliás, denunciada pelos profetas hebreus e por Jesus Cristo. O comunismo se baseia na seleção de bodes expiatórios de ocasião, escolhidos segundo a conveniência (ou o “pensamento dialético”); o nazismo, ao selecionar os judeus, expõe a arbitrariedade do mecanismo de seleção das vítimas de modo muito mais evidente do que qualquer outro sistema. Culpar os banqueiros / os burgueses / os reacionários / os religiosos é mais sofisticado porque eles são uma classe abstrata de pessoas, as quais podem ser selecionadas a cada dia, em cada circunstância, em cada país onde se trava uma luta comunista. Além disso, elas admitem complexidade; você pode ser banqueiro e amigo do governo, um reacionário que faz concessões, um burguês que ao menos tem a decência de tecer a corda com que será enforcado etc. Mas o judeu é simplesmente judeu e não pode deixar de ser judeu. Um católico pode largar a religião e deixar de ser católico. Mas um judeu, até onde entendo, mesmo que não tenha o menor interesse pela religião, e até seja ateu (e zombe do judaísmo de tal modo que seria chamado de nazista se não fosse judeu) continua tão judeu quanto o mais ortodoxo dos rabinos.

Por isso, quando as pessoas repetem a onipresente acusação de “nazista”, o que elas querem é dizer que alguém está selecionando vítimas de modo totalmente arbitrário e irrelacionado ao problema que se pretende resolver. Acreditar, mantendo o exemplo, que os judeus eram responsáveis pelos problemas alemães era acreditar num mito em sentido estrito, isto é, uma falsa acusação que encobre uma violência: os nazistas queriam era tomar as propriedades judaicas e dirigir o ódio da população a um grupo de pessoas, permitindo que a população se sentisse limpa, inocente, pura, superior, e ainda enriquecesse. Mas o método escolhido para isso já era transparente demais para a sensibilidade cristianizada, que vê as coisas do ponto de vista das vítimas. Por isso, todas as pessoas que se sentem perseguidas vêem um Hitler em seu algoz.

O comunismo, por sua vez, com suas perseguições, é, nesse sentido muito mais moderno, ou até pós-moderno. É uma ideologia que fala de um inimigo difuso, que atende mais à sutileza do mal-estar romântico, das pessoas que acham que têm direito a tudo e são oprimidas pelo mundo. Sacrificar esse bode expiatório não será suficiente; será preciso continuar sacrificando, e cada vez mais. Claro é que, se o nazismo não tivesse sido derrotado, teria chegado à mesma conclusão. O comunismo começou um ou dois passos adiante. Não custa lembrar que mesmo que Stálin cause repulsa a um anticomunista, ele não parece tosco como um oficial nazista. O assustador nessa sensibilidade é que isso demonstra que precisamos apenas de desculpas melhores, de mitos mais sofisticados, para praticar a violência. O nazismo é um assassino que sai de casa já sabendo quem vai matar e anuncia isso. O comunismo é um assassino que vai decidindo pelo caminho, justificando depois. Aparentemente, há muito mais tolerância para o segundo do que para o primeiro, porque queremos nos reservar o direito de selecionar nossas vítimas segundo nossas conveniências.

Antinomias

This thing of darkness I acknowledge mine.
— Prospero

Tudo aquilo de que gostamos é complexo, único, irredutível e cheio de nuances. Não pode ser perfeitamente rotulado. Tudo aquilo de que não gostamos pode ser perfeitamente rotulado, explicado e reduzido.

O passado sempre pode ser uma fonte de memórias gloriosas, o futuro pode ser o depositário das mais sublimes esperanças. O presente, este momento que se possui imediatamente, é banal e comezinho. É apenas você e um computador.

Desde a Ilíada já encontramos quem diga — no caso, o velho Nestor — que “no meu tempo as coisas eram bem melhores, vocês não viram nada”. Você já ouviu isso dos seus avós, dos seus pais, e eu tenho vontade de estapear 120% das pessoas que começam a falar que “infância tem de ter bodoque e bola de gude”, ainda que eu mesmo pense que hoje em dia, essas crianças, sei lá. E já querem me estapear. Com razão, provavelmente.

Quando você faz algo bom, espera no mínimo uma medalha. Quer dizer, você conta para alguém o seu bom ato e espera a aprovação. Quando outra pessoa faz algo de bom, nunca é mais do que a obrigação. O seu bem é um ato de graça; o dos outros é simplesmente devido.

Quando você faz algo mau, foi compelido pelas circunstâncias. Quando outra pessoa faz algo de que você não gosta, ela é simplesmente malvada.

Quando você defende uma coisa pura e boa – a verdade! a vida! a democracia! a igualdade! a liberdade! as bolsas ecológicas! – , sempre faz isso pelas mais puras razões imagináveis, nunca jamais porque sua vida é chata, você está com raiva e, em vez de mostrar que é um ressentido, quer assumir o papel do anjo vingador, da promotoria do juízo final, alertando para a destruição iminente se os homens não endireitarem suas veredas. Quando outra pessoa defende alguma coisa de que você não gosta, ela é má, tem objetivos escusos, ou, na melhor das hipóteses, é uma tolinha iludida que merece a sua magnânima condescendência.

Você se reúne com seus amigos num clima de amizade e confraternização. Os outros de quem você não gosta só sabem falar mal das pessoas. Coisa que você nunca faz, claro.

Você não tem inveja. Por definição, esse é o sentimento que só pode ser atribuído aos outros. Você só sente no máximo aquela “boa inveja” afrescalhada, uma maneira de confessar admiração e demonstrar uma vulnerabilidade charmosa.

Não foi você quem começou. Foram eles. Você está só reagindo.

A diferença fundamental entre você e os outros, enfim, é que você está certo; suas motivações são puras.

Isso é o que me interessa agora. A formação dos duplos. Todo mundo pensa a mesma coisa a respeito de todo mundo e todo mundo está simultaneamente certo e errado. Todo mundo tenta demonstrar que é único e individual enquanto seus adversários são joguetes de forças maiores. Isso leva a uma denúncia universal, não a uma percepção da sua própria relatividade.

Girard cita um trecho de Proust que diz que “todo escritor só se torna verdadeiramente grande quando interrompe em sua mente o monólogo de suas próprias justificações”. Ou algo assim. Você entendeu — espero.

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