Sonetos da portuguesa: 14


Elizabeth Barrett Browning
Tradução: Manuel Bandeira

Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
o seu sorriso, o modo de falar
honesto e brando. Amo-a porque se sente

minh’alma em comunhão constantemente
com a sua”. Por que pode mudar
isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
de tuas mãos enxuga, pois se em mim
secar, por teu conforto, esta vontade

de chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
me hás de querer por toda a eternidade.

Estrela da vida inteira

Uma ressalva inicial: é preciso ter algum conhecimento da história de Robert Browning e Elizabeth Barrett para entender por que os Sonnets from the Portuguese que ela escreveu são os “Sonetos da Portuguesa”: como Barrett tivesse um pé na Jamaica, parecia um pouco mestiça, e Browning a chamava de “minha portuguesinha” (my little Portuguese), mostrando que a nossa miscigenação brasileira tem raízes mui antigas.

A própria história do casal é muito interessante. Ele, poeta publicado, ela também. Ele lê os poemas dela e tenta entrar em contato. Apaixonam-se por correspondência, apesar de viverem na mesma cidade – Londres – e terem amigos em comum. Ela, doente, quase inválida, mal se levanta da cama, por isso tem vergonha de recebê-lo. Mas a insistência do rapaz – 10 anos mais novo que ela – produz o encontro e as visitas passam a ser quase diárias, o que não interrompe a correspondência. Um pai ciumento proíbe a relação, apesar de a filha já ter seus quase 40 anos. E como o pai a proíbe de fazer uma viagem para um clima mais ameno, a fim de curar-se, Robert Browning e Elizabeth Barrett casam-se em segredo e no dia seguinte partem para Paris, onde ficarão pouco tempo antes de estabelecer-se em Florença, morando num apartamento que ficou conhecido como Casa Guidi. Tiveram um filho e viveram 10 anos juntos, até que a morte dela os separou. A história foi transformada numa peça de Rudolph Besier, The Barretts of Wimpole Street, que por sua vez virou filme homônimo duas vezes, feito pelo mesmo diretor, com o mesmo roteiro, só atores diferentes. Não gosto do filme sobretudo por ter uma canalhice, que é a suspeita de incesto lançada sobre o pai de Elizabeth Barrett.

A parte que me interessa é a de “até que a morte os separe”. Uma parte da poesia medieval nos legou a idéia de amor eterno e de endeusamento das mulheres. Claro que todas essas mulheres endeusadas eram jovens e bonitas; aliás, o mais comum era serem louras e terem olhos verdes. Idealmente, seguindo Simonetta Vespucci, morreriam bem jovens. Qualquer um sabe: é mais fácil jurar amor eterno a uma jovem deusa do que a uma velha mulher. Aliás, “deusa” é a palavra-chave. Abominável idolatria? Isso mesmo.

Quem pensasse um pouco sobre essas convenções – que vieram a moldar todo o imaginário amoroso ocidental – veria que o que estava em jogo era um amor pelo próprio amor. Como eu disse antes, uma das marcas distintivas de estar apaixonado é a sensação de onipotência e de eternidade. Viver sem “amor” é viver na miséria. O moralismo estrito desse culto de fidelidade imposto pelo amor – ou pelo Amor, Eros em pessoa, como em Vita Nuova – acabou se entranhando na própria idéia de amor cristão. É muito interessante que, embora a própria Igreja Católica nunca se tenha deixado contaminar por essa idéia, entre os poetas a promiscuidade entre a idolatria do amor e o imaginário cristão foi muito forte. Para fazer um comercial, discuto isso em um de meus textos para a próxima Dicta&Contradicta, a partir de um poema de António Ferreira.

O valor desse poema de Elizabeth Barrett Browning é abrir o jogo totalmente. “Não quero ser amada por quem sou, quero ser amada por causa do amor.” É impossível não ler o poema como uma bela máscara da insegurança, uma mudança de assunto. “Não sou tão bonita (ela não era mesmo), sou 10 anos mais velha, você é mais talentoso, mas ainda assim quero ser amada. Aliás, para sempre. Por toda a eternidade. Como uma deusa.” Eu poderia dizer que qualquer mulher deseja isso, mas acho que todo homem também. É mais fácil querer ser amado como um deus do que aceitar que devemos amar a Deus e que Deus vai nos amar para sempre, mas não como deuses. Por isso a mistura imaginária entre cristianismo e “amorismo” é tão interessante: tanto poetas quanto musas querem rivalizar com Deus, o único objeto desse amor dado e recebido de maneira absoluta e eterna. Mas foi a própria serpente quem disse: “Sereis como deuses.” Abominável idolatria.

O leitor pode defender Elizabeth Barrett Browning e dizer que seu pedido por ser amada pelo amor é na verdade cristão, e não um desejo de ser endeusada. Mas o amor cristão é sob um certo aspecto indiferenciado; amando pelo amor (de Deus), ama-se tanto essa pessoa como aquela. O único amor eterno é o que Deus terá por você, e o que você pode ter por Deus.

Acredito que alguns autores contemporâneos lidam com o amor de maneira muito mais realista e sã do que esses autores antigos. Existem poemas e romances que podem beirar ou chegar ao pornográfico, dependendo do seu nível de pruridos. Eles têm razão, porque, ao contrário do que pede Elizabeth Barrett, é muito mais humano apaixonar-se por um olhar, um sorriso, um modo de falar (gosto particularmente de “modos de falar”) e pela sintonia ou rapport, que se pode chamar pomposamente de “comunhão de almas”. Amar o amor somente, e amar eternamente alguém por isso, é angélico. Há mais perversão em Tristão e Isolda do que em todos os carnavais. Vejam como exemplos O cancioneiro de Sebastian Arrurruz (que já traduzi), de Geoffrey Hill, e O animal agonizante, de Philip Roth.

Será então que escolhi um poema apenas para atacá-lo? Apesar de repelir todas as atitudes presentes nele, reconheço que sua síntese “ideológica” é perfeita e elegante, com linguagem simples e direta, e não é sempre que se fala tão abertamente do que se deseja – sobretudo em poesia. Talvez essa seja uma das marcas distintivas entre os poemas menores e maiores. Os maiores não são meros subterfúgios, sacrificando alguma coisa em prol de uma mentira agradável. Elizabeth Barrett pode querer algo que em si é uma mentira, mas seu desejo é bastante real. Ela quer ser identificada com o próprio amor e com isso ser amada para sempre. Seu poema traz a radicalização e a explicitação necessárias para um confronto legítimo. Apesar dela mesma, ele vale quase como uma auto-denúncia. Take away the fool? Take away the lady (Twelfth night, Ato I, Cena 5).