Richard Dawkins contra Papai Noel

Graças ao Sol – que é uma pessoa, aliás um amigo, e não um corpo celeste – tive contato com o livro de Richard Dawkins, Deus, um delírio, publicado em apressada tradução pela Companhia das Letras. Admito logo que já conheci muitos ateus muito inteligentes, e achava que o livro, para causar tanta celeuma, fosse capaz até de abalar este sujeito aqui, que nasceu e cresceu crente e católico numa família tão indiferente à religião quanto qualquer outra.

Fiquei decepcionado. Fui direto na parte em que Dawkins pretendia refutar as cinco provas de São Tomás de Aquino – para quem não sabe, estão no terceiro artigo da segunda questão da primeira parte da Suma Teológica, sob o título “Deus existe?” Já tinha ouvido falar de argumentos sérios contra essas provas, e gostaria de lê-los, sinceramente. Só pediria que o caridoso leitor que os enviasse a mim não esperasse uma resposta imediata, uma catarse de ateísmo. São coisas que eu posso querer meditar por muito tempo.

Enfim. Dawkins é banal. Agrupa as três primeiras provas de São Tomás em um grupo e crê refutá-las – mas não as refuta. Essas três provas, para usar seus termos, tratam de uma “regressão infinita”: o movimento supõe algo que cause o movimento sem ter sido movido, todo efeito remete a uma causa e portanto a uma causa primeira. Dawkins admite que isto é razoável, e contesta o que São Tomas não diz no texto daquela questão: a onisciência e a onipotência de Deus. É verdade, São Tomás vai falar disso depois. Por que dar a entender que São Tomás fez um pacote completo de afirmações? Francamente, é o caso de perguntar: será que Richard Dawkins chegou a simplesmente ler a Suma Teológica, ou só leu a respeito dela em algum lugar? O livro está disponível em qualquer livraria e até na internet. Em latim, aliás.

Depois Dawkins contesta o argumento de grau (o argumento “platônico”) de maneira pueril. São Tomás diz que a idéia de qualquer bem vem de uma idéia perfeita daquele bem. O chocolate supremo. A fôrma que fez a Eva Green. Mas Dawkins vem falar do fedor. Não parece muito difícil perceber que o fedor não é um bem, e a doutrina agostiniana do mal como privação do bem, anterior de oito séculos a São Tomás, parece ter sido absorvida até pelo senso comum das classes menos iletradas. O fedor é apenas a privação de um odor agradável – e não existe a ausência de odor. Portanto, ele também é medido por um bem. Não é tão difícil. Não sei qual o problema. É só ler a tal da Suma Teológica.

Por fim, Dawkins pretende atacar o que ele chama “argumento do design”. São Tomás de Aquino apenas pretendia dizer que em tudo o que existe, mesmo nos corpos desprovidos de inteligência, parece haver uma finalidade; porém, como o senso de finalidade só pode ser proporcionado por quem tenha inteligência, parece haver alguma inteligência que tenha dado aos corpos desprovidos de inteligência a sua finalidade. Creio que seria possível questionar a existência de uma finalidade nos corpos sem inteligência – mas Dawkins não questiona isso, preferindo simplesmente dizer que Darwin destruiu “o argumento do design”. Isso me parece duplamente idiota: não apenas Dawkins ignora o que diz São Tomás, como parece fingir que não sabe que a idéia de evolução pressupõe a idéia de finalidade. Mesmo que se admita – o que, pessoalmente, não afirmo nem nego (meu interesse pelo assunto é muito reduzido) – que a origem de uma mudança numa espécie seja aleatória, a perpetuação dessa mudança se deve à maior eficiência com que satisfaz à finalidade da sobrevivência. Portanto, o argumento de São Tomás de Aquino tal como enunciado por São Tomás de Aquino – e não na versão bizarra de Richard Dawkins, que chega a citar um poema inteiro neste trecho, mas jamais abre aspas para o teólogo mais famoso do Cristianismo – é compatível tanto com a existência de uma evolução biológica quanto com a inexistência da mesma evolução.

Nem vale a pena comentar o fato de que Dawkins, certamente sem saber, imita São Tomás de Aquino, que já tinha atacado o argumento ontológico de Santo Anselmo.

Há muito tempo tenho vontade de escrever sobre como me parece pernicioso que pessoas religiosas tratem os ateus como se fossem pessoas intrinsecamente erradas, e, pior ainda, que ousem negar a sua experiência. Toda a possibilidade de um diálogo verdadeiro, para ficar no clichê, se baseia em respeito, só que o respeito pressupõe aceitar literalmente o que o outro diz. Um dos lados não pode assumir o papel de analista e o outro o papel de objeto; dialogar é responder, pressupondo que as idéias da outra pessoa são tão sinceras quanto as suas. É claro que se pode discutir a relação entre experiência, psique e idéias, mas a regra de que só é possível discutir se há acordo em relação aos princípios continua valendo. Ou, em termos mais óbvios, eu não posso esperar que um ateu ouça pacientemente e concorde com uma explicação que pretende apenas mostrar que ele é um mutilado espiritual, do mesmo modo que um religioso mandaria lamber sabão o ateu que apenas quisesse mostrar que ele é um coitado iludido.

O problema do livro de Dawkins é que ele não é, pelas poucas páginas que li, um capítulo de um diálogo sério entre ateus e religiosos. É, como sempre, um ataque àquilo que a religião não é, àquilo que a religião não diz; é o professor de Cambridge contra a interpretação da tia velha, não o professor de Cambridge contra o catedrático de Teologia da Universidade de Paris do século XIII. E por isso mesmo é banal, repetindo a velha impressão de que muitos ateus são apenas crianças malvadas que se comprazem em destruir nas outras, mais inocentes, a crença em Papai Noel. Como crianças, fazem isso também por achar que a descoberta de que Papai Noel não existe é o verdadeiro e último salto para a maturidade.

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