A Hidra de Lerna da filistinice é a acusação de esnobismo. É cansativo, após ter cortado a sua cabeça em algum momento da adolescência, vê-la voltar, voltar e voltar.
Dessa vez é uma matéria do Guardian – que recebi como link, porque, ao contrário de 120% dos blogueiros brasileiros de esquerda, não tenho o hábito de ler nada no Guardian nem no NY Times – que, ao falar da escassez de professores de latim, diz que “até alguns professores consideravam-no ultrapassado, e objeto de preservação por uma elite esnobe”.
Filistinismo é isso: sugerir que alguém estuda latim só para esnobar os outros.
Depois, essa mesma gente reclama do capitalismo (afinal, é o Guardian) e do utilitarismo. Na concepção filistina, você só pode fazer algo que não tem o propósito imediato de ganhar dinheiro se esse algo servir a algum prazer sensorial imediato, ou se você mesmo considerá-lo uma fonte de prazer. Você pode estudar latim exatamente como alguém se dedica a tomar sorvete; as duas coisas devem ser equiparadas. Cada um tem direito a seu “gosto”. Ninguém pode admitir que, sim, existem coisas superiores.
Quando o Guardian fala em “até alguns professores”, simplesmente estende a eles a presunção do que seria o senso comum. Na cabeça de um jornalista do Guardian, é claro que o latim é ultrapassado e esnobe.
Pois eu digo que sentir-se humilhado (isto é, tornado mais humilde) e esnobado pelo conhecimento de latim de outra pessoa pode ser o primeiro passo para o caminho do bem. Se não soubermos admirar o bem nos outros, como vamos desejá-lo para nós mesmos? Você pode até não ter a menor vontade de estudar latim – tudo bem –, mas não pode negar que ter a possibilidade de contato direto com todas as obras escritas em latim é um tremendo bem, e não por uma perversão literária. Aliás, é outra característica filistéia achar que tudo é perversão literária. Talvez Derrida não fale sobre nada, mas normalmente os livros tratam de coisas, e ao ter contato com a cultura clássica você percebe a velhice de muita novidade. O filisteu quer estar, para usar uma expressão filistéia, na crista da onda; a pessoa normal prefere entender como as ondas são produzidas.
Perto do final, a matéria ainda sugere que seu autor não tem mesmo nenhum conhecimento das línguas clássicas; quem as estuda sabe que seu benefício não está em ver raízes de palavras (para isso há o dicionário, mas o filisteu só o abre para fazer citações) nem em repetir que elas dão “uma compreensão maior das línguas européias modernas”, mas em, percebendo sua sintaxe, admirar sua economia e expressividade, ver como ficam mais claras as relações lógicas entre os termos da oração e, como mera decorrência natural, tornar-se mais capacitado para o estudo das línguas modernas. O estudo das línguas e da cultura clássica tem mais o efeito de um tonificante psíquico do que qualquer coisa – e esse tônus adquirido é apenas o efeito de uma busca por uma certa perfeição. E é preciso amar a imperfeição, porque somos imperfeitos; mas só os filisteus rejeitam a perfeição enquanto modelo.
Uma das maiores dificuldades espirituais está justamente em conseguir resistir ao ataque lento, diário e amável da inércia da filistinice. A cada alto propósito manifestado ou realizado, sempre vem aquela voz melíflua dizer que, se você não piorar um pouco, nunca satisfará a ninguém, que é um “elitista”, um “esnobe”. A mesma voz contra a qual ninguém te advertiu, e que requer uma resistência infinita.