O transgressor eficiente

Minhas brincadeiras com corte e colagem de links criaram uma verdadeira bagunça. Fiz diversas correções no texto… Agora parece que está tudo bem. Qualquer coisa, gritem.

Existe um tipo, um mesmo personagem sob vários aspectos, presente em diversas obras americanas de sucesso. Um tipo que vou chamar de “transgressor eficiente”, caracterizado por produzir um bem tangível usando métodos heterodoxos e passar quase o tempo todo na clave do duplo angélico (na fórmula de René Girard), afetando sem ser afetado. Quanto mais tangível e indiscutível for o bem realizado, mais simpatia teremos pelo personagem. Se ele chega a ser minimamente afetado por algo, nossa simpatia por ele também aumenta.

A primeira temporada de Boston Legal tem Alan Shore, um advogado de argúcia aparentemente ilimitada, que não só vence todos os processos como consegue todas as mulheres (nas temporadas seguintes o personagem vira duplo angélico do esquerdismo americano, como os personagens de The West Wing). O tempo inteiro Shore mostra a diferença entre o que se pode obter dentro do sistema e aquilo que deveria ser feito segundo um critério ético maior. O arquifamoso Dr. House faz algo análogo: a busca da verdade por quaisquer meios – o que ainda parece estar mais de acordo com um ideal de ciência – pode salvar vidas, fazendo com que o respeito aos protocolos e direitos dos pacientes pareçam uma frescura. Como salvar vidas é um bem maior e mais tangível (genericamente falando) do que vencer processos, o personagem do Dr. House parece muito menos ambíguo, digamos. Mas o médico nada mais é do que o Alan Shore do diagnóstico. A situação é a mesma do Batman de O cavaleiro das trevas, que, enquanto Batman, vence as batalhas, afeta sem ser afetado, usando métodos que só funcionam para ele mesmo. Quem mais segue a fórmula? O Capitão Nascimento. Com o uniforme do BOPE, ele é superpoderoso. Sem o uniforme, ele passa por crises, como Bruce Wayne. Ou como o Dr. House sozinho em casa, tomando seu Jack Daniels longe de todos.

Sinto-me tentado a dizer que a idéia de “fazer o bem, custe o que custar” vem da leitura que a universidade americana faz de Antígona. Mas antes preciso explicar que uma das coisas que me desagradam (o que não vale por uma condenação) no modelo da “educação liberal” é a transformação das obras de arte em temas. Não é que as obras não tenham temas – e muito menos que certas obras não tenham sido construídas a partir de temas, como as séries de TV e o filme Tropa de elite – acho que o caso de O cavaleiro das trevas é diferente. Mas as melhores obras têm personagens e conflitos antes de ter temas. A idéia de transformar todo espectador em um juiz dos dilemas, ou advogado de uma das partes, ou mesmo em apreciador da complexidade ética, serve sobretudo para deixar de lado a apreciação da obra dramática enquanto obra dramática. Ao dizer isso não estou fazendo apologia da “arte pela arte’, mas simplesmente lembrando que obras de arte não são apenas pretextos para discussões morais, políticas ou filosóficas. Entender porque uma obra de arte funciona, e como ela funciona, seria o propósito de uma educação para a apreciação da arte, e não ser capaz de falar dos temas que se relacionam com ela.

Volto à Antígona. Não agüento mais sequer ouvir falar que a peça é sobre uma menina que ousou fazer o que era certo contra a vontade de um tiranete ensandecido. Creonte tinha não só razões religiosas como civis para proibir o enterro de Polinices. Além disso, tinha uma razão pessoal, com a qual é difícil não simpatizar, para querer livrar-se de Antígona, que era evitar que sua própria linhagem se misturasse com a linhagem maldita de Édipo – seu filho pretendia casar-se com ela. Não havia na Tebas arcaica um estado de direito que Antígona pudesse representar, e ela só pode se tornar símbolo da adesão a princípios universais contra os caprichos dos governantes através de muitas mediações culturais.

O erro de Creonte foi achar que, apenas porque venceu a luta contra os invasores de Tebas, pode querer dar um fim à toda violência em vez de admitir que a violência só pode ser administrada. Não é possível praticar uma espécie de “violência final’, ganhando a guerra e matando todos os inimigos, porque a rede de relacionamentos humanos é intricada demais para que não haja contágio. O máximo que podemos fazer é inventar maneiras melhores de administrar a violência. Mas hoje é comum ver uma inversão: as razões atribuídas a Antígona são usadas para justificar os atos de Creonte. Quando George W. Bush declara estratosfericamente que vai “rid the world of evil” [acabar com o mal no mundo], não diz que vai fazer isso porque é poderoso, mas porque é o certo. Ele também espera ser um transgressor eficiente e justificado pelos resultados.

Mas mesmo aqui já começo a transformar Antígona em tema – apenas outro tema. O importante é perceber essas motivações e ver como elas movem os personagens e como eles podem enganar a si mesmos. Certamente não se pode deixar de remeter as obras ao “mundo” para entendê-las, mas é preciso voltar a elas.

Como, aliás, volto agora à minha questão inicial: a funcionalidade dramática do transgressor eficiente. É possível até falar de uma receita de bolo (e antes de você falar uma besteira e afetar superioridade ante as “receitas’, lembre-se de que a tragédia clássica tem uma receita bem certinha): transgressor eficiente como protagonista, com eventuais cenas de “humanização” + diálogo sarcástico + personagens inteligentes o suficiente para denunciar e confrontar o transgressor, mas não para vencê-lo, incluindo ao menos um personagem que fará a interface entre o transgressor e o “sistema’, respaldando-o e legitimando-o (Denny Crane em Boston Legal, Wilson e Cuddy em House, Comissário Gordon em Batman). Os melhores episódios, ou as melhores histórias, sempre são aquelas em que os conflitos de “quem pode mais” ficam mais explícitos e já percebemos que o “tema” é quase uma pista falsa. Penso em House contra Vogler (o bilionário que se torna chefe do conselho do hospital), House contra Tritter (o policial da terceira temporada), e, obviamente, em Batman contra Coringa. Se o leitor conseguir perceber que a disputa entre House e seus antagonistas é idêntica à disputa entre Batman e Coringa, verá que a questão da transgressão versus estado de direito (ou “protocolo”) é apenas mais uma variação sobre o tema do cabo de guerra. Gostamos de um personagem, identificamo-nos com ele, queremos que ele vença. As questões levantadas pelo caminho podem atender a justas demandas da sensibilidade de pessoas cultas e dar uma aparência de intelectualidade chique a esse desejo primal, mas ele é que está no centro. Na identificação entre personagem e espectador, só o que conta é a questão: “vamos vencer?”

Tanto é que é perfeitamente possível ter essas disputas sem essas questões. Veja por exemplo o sensacional Meninas malvadas, um filme de high school em que uma menina, para diferenciar-se, inveja e imita outras, iniciando uma disputa que, como em todos os casos acima, deixa uma infinidade de vítimas colaterais, e a grande crise coletiva é resolvida de maneira ritualística. Estruturalmente, o “superficial” Meninas malvadas, com a mal falada Lindsay Lohan, não é tão diferente do profundo e badalado O cavaleiro das trevas.

Entender por que tantos roteiristas preferem formular esses conflitos sob a aparência de “transgressão eficiente versus regras aceitas pela comunidade ou estado de direito” é uma outra questão, e certamente uma questão interessante. Mostra, em primeiro lugar, que não há tolerância para o transgressor ineficiente – o que aliás sugere que os americanos estão dispostos a continuar tirando os sapatos nos aeroportos e lendo notícias sobre tortura enquanto não houver mais ataques em seu próprio solo, aceitando uma versão pós-terrorista da velha atitude do “rouba, mas faz”. Nas séries, porém, não é só isso. O protagonista não apenas “rouba” no sentido de usar procedimentos heterodoxos, mas destrata a todos a sua volta e vive segundo uma lei privada. Boa parte do drama está em ver quais são as estratégias desenvolvidas pelas pessoas à volta do protagonista para tolerá-lo, e quais são as estratégias que ele mesmo inventa para passar a perna no sistema e sugerir que a via de dependência é de mão única. As obras podem diferenciar-se um pouco nesse ponto: o Batman sabe que Gotham City é que precisa dele, e oferece sua ajuda um pouquinho a contragosto, mas o Dr. House diria que a principal função do hospital em sua vida é apenas fornecer o chiclete mental que ele aprecia.

O que leva, por fim, a algo ainda mais primal do que o desejo de vencer que une personagem e espectador: o desejo de ser perfeito, invulnerável, capaz de afetar sem ser afetado, de só ser perfeitamente compreendido por aqueles poucos melhores a quem concedemos o privilégio de nossa intimidade, aliado ao desejo de que todos reconheçam que essa é nossa natureza. “Eu poderia ser o Dr. House, se quisesse. Eu poderia ser o Batman. A minha vida é a melhor das vidas possíveis.” Esse desejo, por sua vez, remete infalivelmente ao pecado original. A identificação com um personagem perfeito, um duplo angélico, ainda que por alguns minutos de suspensão e transporte imaginário, é a realização da promessa da serpente: “sereis como deuses”. Talvez os roteiristas tenham hoje tanto interesse no tema para ver se encontram um jeito aceitável de seu protagonista (e seus espectadores) não ser expulso do Paraíso.

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