A caipirice essencial da esquerda

Recentemente tenho pensado muito no que Alexandre Soares Silva duas vezes observou (falando de uma matéria da Folha de SP e dos comentários sobre os vídeos com o pessoal do Apostos) sobre a caipirice da esquerda e me admiro com o poder explicativo daquilo que parecia uma piada. Creio que é hora de radicalizar e propor a hipótese de que a caipirice é um componente essencial e definidor do esquerdismo. E não estou brincando.

Digo isso porque nunca deixo de me admirar com a quantidade de gente de esquerda que reclama do “fim das utopias”, do “vazio das ideologias” e condena o presente em nome de um passado nada remoto, i.e., que condena a juventude de hoje por não ser a juventude de ontem. O reacionário que acusa o presente de não ser a Idade Média que existe em sua cabeça pode ser igualmente desmiolado, mas em comparação com os esquerdistas ao menos tem o mérito de procurar um referencial fora de si e de seu grupo. Para ressentir-se de o século XXI não ser o XIII é preciso ter alguma idéia de como foi o XIII, e para isso é preciso fazer algum esforcinho imaginativo, mas para ter 60 anos e ressentir-se de 2009 não ser 1969, bem, basta ter 60 anos. O que não é nenhum mérito.

Porque o que impressiona não é só a insistência da reclamação do “fim das ideologias” etc, mas a incapacidade de perceber que as famosas “ideologias” apenas animaram uma parte da classe média universitária de certos países durante algumas décadas. O fenômeno é relativamente isolado, e só parece ter grandes proporções para quem está acostumado a ler jornais. Basta comparar as tiragens com os números do resto da população para ver sua irrelevância numérica. Uma geração tenta ser o grande parâmetro da história humana, fracassa e fica reclamando, e isso porque eles não foram capazes nem mesmo de imaginar a existência de pessoas completamente diferentes, com motivações completamente diferentes.

E cabem duas observações, que na verdade são uma só. A primeira é que às vezes surge uma geração que muda muita coisa, como os pintores renascentistas italianos ou os founding fathers americanos. Um punhado de pessoas vira uma referência histórica e meio que sabe que é isso mesmo que vai acontecer. Mas nesses casos essas pessoas estão buscando um retorno, uma recuperação de uma experiência perdida, não a criação de um mundo novo. Para os pintores renascentistas e para os founding fathers a idéia de natureza era fundamental. Sim, natureza, algo estável que deve ser redescoberto pela inteligência instável. A segunda é que não há outra maneira de sair da “caipirice” senão fazer o sacrifício de si próprio. É preciso admitir que as suas preferências subjetivas são só suas preferências subjetivas, não uma referência universal; mas, para isso, é preciso crer firmemente que há uma natureza objetiva.

Isso se reflete no próprio estilo literário esquerdista, que usa primordialmente o aposto. O aposto tem essa função de ir preenchendo os vazios de percepção com a tentativa de reevocar o mesmo objeto por mil ângulos já considerados. Como não há olhos para a natureza e a dúvida é antes uma ostentação do que um verdadeiro estado subjetivo, o esquerdista vai apenas reconfirmando e repetindo a si mesmo com o mesmo vocabulário que só interessa a quem quer ser igual a ele.

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