Vinte anos esta manhã

Vinte anos atrás, em 19 de novembro de 1997, O Indivíduo foi publicado em papel na PUC do Rio de Janeiro, provocando uma tentativa de linchamento imediata por parte dos alunos. Eu, Sergio de Biasi, e Alvaro Velloso fomos salvos pela rápida intervenção da segurança, que não conseguiu conter algumas cusparadas e um soco no lado direito do meu rosto — nunca sequer vi quem foi o autor. Fizemos boletim de ocorrência contra os alunos, que foram investigados; e a justiça brasileira proibiu a PUC de tomar qualquer medida contra nós. O motivo de tudo pode ser consultado pelo menu; deixo ao leitor o trabalho de informar-se.

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Passei a dizer que O Indivíduo foi nossa banda de rock. A vida intelectual brasileira dos anos 1990 era um tédio infinito. Sem a publicação de O Imbecil Coletivo ou dos livros de Bruno Tolentino, teria sido necessário abandonar o país e fazer do português a segunda língua. Ou você entrava no movimento punk da época, ou ficava comendo sanduíches de pepino. Ao menos se você fosse carioca e esquentado.

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A confusão na PUC aconteceu na verdade por causa do texto de Cláudio Lévi’s Lee (eu) sobre o “Coletivo Cultural” (vinte anos depois, ainda é muito difícil não rir do nome “Coletivo Cultural”), mas o motivo alegado foi o texto sobre a Semana de Consciência Negra. Vinte anos depois, colorir uma consciência ainda me parece altamente sospechoso, mas admito que o movimento liberal do qual vim a fazer parte deveria ter tratado o assunto com mais seriedade.

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Talvez eu tenha tido a ilusão de que, nesses vinte anos, uma bolha foi estourada, o mainstream se tornou mais amplo. De um lado, sim. De outro, não. As affirmative actions copiadas dos EUA foram apenas uma das modas que passaram a vir mais rápido, e com mais força, graças à internet. A grande imprensa pode ter-se aberto para algumas vozes conservadoras e liberais, mas nesses vinte anos ainda não vi um debate começar: o debate é sempre abortado pelas acusações.

O efeito é um tanto deprimente. Se você quer escrever, está condenado a só falar para quem já concorda com você, para pavonear sua capacidade de expressar melhor aquilo que as pessoas nem sabem que pensam, ou pode dialogar com pessoas que realmente discordam de você?

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Em 1997, eu, Sergio, e Alvaro brincávamos: há mais discordâncias entre nós do que entre nós e nossos linchadores.

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Desde criança, uma atitude sempre me causou repulsa e me pareceu um sinal inequívoco de que o desejo de segurança psicológica era maior do que a curiosidade: o pavoneamento do menoscabo, aquela dismissive attitude de quem enfia um sanduíche de pepino na goela, te dá um tapinha nas costas e diz que não precisamos ouvir os bárbaros. Uma espécie de predestinação intelectual: se uma ideia é mainstream, então é porque é boa; se é marginal, como ousa ter se aproximado da margem? Vamos varrê-la de uma vez.

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Outro equívoco meu foi ter achado que, nesses vinte anos, a bolha tivesse sido estourada por pessoas como nós de O Indivíduo — mas parece que a bolha diminuiu, recuou, enrijeceu. O menoscabo hoje não consegue nem mais parecer um menoscabo, mas já se tornou um desespero histérico, martelado todos os dias, com o estudo de novas poses, de novas expressões.

No entanto, é apenas uma bolha.

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Ou quem dera fosse apenas uma bolha. Algumas linhas atrás falei do dilema: vou agora escrever só para quem pensa como eu? É o caso de desesperar da possibilidade de contato com os famosos outros lados e desistir?

Claro que não. É apenas uma bolha.

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