O fanatismo é a impotência para crer

George Bernanos, La France contre les robots, cap. 2 (grifos meus). No link acima, você pode comprar a tradução brasileira, feita por Lara Christina de Malimpensa, deste livro fundamental.

Em Mallorca, durante a Semana Santa de 1936, enquanto as gangues encarregadas do expurgo percorriam as aldeias para liquidar os mal-pensantes, à média de dez vítimas por dia, vi a população aterrorizada apertar-se contra as santas mesas, a fim de obter o precioso certificado de comunhão pascal. Entendo perfeitamente que um incréu coloque essas horrendas empreitadas sacrílegas na conta de um catolicismo exaltado. Ainda jovem, eu mesmo, na inocência de minha idade, teria tomado seus autores por fanáticos que o zelo levava além do bom senso. A experiência da vida desde então me convenceu de que o fanatismo, neles, é apenas a marca de sua impotência para crer em qualquer coisa, para crer em qualquer coisa com um coração simples e sincero, com um coração viril. Em vez de pedir a Deus a fé que lhes falta, preferem vingar-se contra os incréus pelas angústias cuja humilde aceitação os teria salvo, e, quando sonham em reacender as fogueiras, é com a esperança de poder reaquecer ao pé delas sua mornidão — aquela mornidão que o Senhor vomita. Não! A opinião clerical que justificou e glorificou a sangrenta farsa do franquismo nada tinha de exaltada. Era covarde e servil. Empenhados numa aventura abominável, aqueles bispos, aqueles padres, aqueles milhões de imbecis, só teriam podido sair dela prestando homenagem à liberdade; porém, a verdade lhes colocava mais medo do que o crime.

O inequívoco sinal da picaretagem…

… é, como eu conversava outro dia com o Diogo Costa, iniciar qualquer argumentação evocando o “consenso científico”.

Já falei disso dezenas de vezes. Se a ciência é a busca da verdade; de alguma verdade; da explicação da natureza e das causas de algum objeto concreto ou abstrato; se há diversas pessoas envolvidas nessa atividade, cada uma delas dotada de uma inteligência individual; e se existe a possibilidade de progresso científico, que só pode se dar pela superação de alguma idéia consensual; se o próprio “consenso” não pode ser mais do que uma generalização, isto é, alguma idéia que supostamente muitos cientistas de uma área tomam como verdadeira; se nada impede que algo consensual seja falso (“o mundo é plano”, “coisas podres geram mosquitos”); e, novamente, se a própria atividade científica se define pela própria superação de um consenso atual sobre um determinado tema, como é possível que a contestação de um suposto consenso seja tão estigmatizada?

Vejam que não estou falando de especialistas. Estou falando de jornalistas e blogueiros que têm tanta capacidade técnica de avaliar se existe – por exemplo – aquecimento global quanto a lagartixa que bizarramente tem me visitado dia sim, dia não. Para todos os não especialistas, a questão é só de fé. Não no sentido teologal, mas no sentido de credibilidade. Você pode ter fé em pessoas de jaleco branco e se sentir moderno e sensato, aproveitando para zombar de pessoas como eu, que crêem na transubstanciação etc. Eu suspeito que você só faça isso para se sentir moderno e razoável, porque eu também acho que quando um conservador fica zombando das modernidades do mundo ele também está apenas resolvendo seu pobrema de auto-afirmação.

Os blogueiros e jornalistas que querem brandir o “consenso científico” hoje são as gêmeas não tão secretas daquelas que querem ou queriam brandir a autoridade religiosa. “Creia em mim ou sofra as conseqüências!” E assim como estas podem lamentar a desunião entre Igreja e Estado, aquelas lamentam a falta de união entre “ciência” e Estado. Os dois discursos são desculpas em defesa do interesse próprio. Os dois tipos de pessoas têm seus lobbies nos Congressos do mundo. Para não dizer que estou atacando só os cientistas com e sem aspas, observemos a repulsiva união entre leigos católicos e o governo do estado do Rio, e agora do município do Rio. Gratificar – o verbo que eu queria era to pander to – o reacionarismo também dá votos. Alguém ainda precisa dizer que certas manifestações são uma espécie de parada gay da reacice.

Mas já divago demais. Só que deixo o leitor com uma interrogação que sempre me volta à mente. Se a proclamação do “consenso” da sua preferência é a marca inequívoca do lumpenproletariado intelectual e/ou da maquiagem de algum interesse escuso, para que perder tempo com essa denúncia? Denunciar é chato, é cansativo e gera mau humor. Não será melhor ater-se ao que é bom, falar do que se ama? Aparentemente sim, mas a primeira ativiade também é necessária. Porque hoje só cresce o número de pessoas que pretendem criminalizar a contrariedade aos “consensos”. Mesmo que você creia num “consenso” ou simplesmente não esteja interessado, nada impede que amanhã alguma coisa importante para você seja criminalizada. E isso vale para todo mundo.

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