Vitimados pelos presentes

A gratidão é a mãe de todas as virtudes.
— Cícero

Tudo começou quando eu li uma matéria do Times a respeito do “horror” de dar e receber presentes. A matéria fala de namoros e famílias arruinadas por presentes. Presentes que foram dados com boa intenção. Fiquei chocado, mas pensei: esses gringos são todos hipersensíveis mesmo. Admito que, de modo geral, uma das coisas que aprecio no Brasil é que não somos tão sensiveizinhos assim.

Logo depois veio esse post no blog da Camila Lopez, que me lembrou de que a parte dos brasileiros que, como costumo dizer, só usa o português para falar com o caixa do supermercado, isto é, cujas referências culturais vêm todas do mundo anglo, também pode partilhar da mesma sensibilidade.

Claro que há uma ironia em eu começar citando o Times de Londres e depois “culpar” as referências em inglês. Mas vou ampliar a ironia porque, antes que eu pudesse fazer um comentário, acabei encontrando num insuspeito blog de moda, também em inglês, parte da resposta que eu queria dar:

…hordas de princesinhas estão sendo criadas achando que têm o direito de receber presentes de Natal perfeitos, exatamente como querem — essa é a impressão que eu tenho.

De um lado, é óbvio que alguns presentes denunciam que a pessoa que deu apenas cumpriu uma obrigação social. Mas ela poderia não ter cumprido, não é? Por que você acha que é tão especial que merece que todo mundo conheça você bem o suficiente para se antecipar a cada um dos seus desejos? No consultório do Dr. Pedro, eu recomendaria que todo mundo se olhasse no espelho de manhã e dissesse: “Eu não sou especial. Eu não sou especial. Eu não sou especial. Eu serei grato por tudo que tenho. Ninguém me deve coisa nenhuma.”

Esse é um belo exemplo do “sentimento paranóico” de que venho falando. Uso as aspas não por amar as aspas, mas para tirar a impressão de uma paranóia tensa e nervosa, embora a estrutura seja a mesma: a impressão de um eu bom contra um mundo mau, de um eu justificado, nuançado, particular, irredutível, genuinamente individual, I did it my way, contra um mundo “padronizado”, em que as pessoas agem segundo padrões previsíveis, e são desindividualizadas, uma vasta multidão pronta a linchar a inocente e pura consciência do indivíduo que se recusa a se submeter.

A menina cuja frase traduzi falava só em princesinhas. Façam um teste: se um texto contra ganhar presentes fosse escrito por um homem, o que ele pareceria? Ah, mas a Camila Lopez citou um personagem homem. E o que é que ele parece?

A idéia de trocar presentes por dinheiro, proposta por ele, parece boa à primeira vista. Dar dinheiro é dar a outra pessoa mais controle sobre a própria vida, mas também é fechar-se à oportunidade de ser afetado pelos outros e ao inesperado. Há nisso uma apologia oculta da auto-suficiência. Tenho um sério problema com isso porque alguns presentes que não pedi me afetaram muito: desde roupas que eu não teria tido a idéia de comprar até músicas e livros que mudaram a minha vida. Por exemplo, este blog só existe hoje por causa de um desses presentes. Em 1996 ou 1997, Leopoldo Serran me deu O jardim das aflições, de Olavo de Carvalho, e eu só comecei a ler o livro porque achei que o Leopoldo encheria a minha paciência se eu não lesse. Já conhecia Bruno Tolentino então, mas foi só através de Olavo de Carvalho que o conheci pessoalmente e que conheci diversos outros autores, como o übercitado do momento, René Girard. Diariamente agradeço ao falecido Leopoldo Serran por ter-me dado um livro que não quis e que comecei a ler a contragosto, para cumprir uma obrigação de gentileza.

Tenho a impressão de que no passado éramos mais estimulados a estar abertos para os outros, ou ao menos que a capacidade de aproveitar o que se recebia era mais prestigiada socialmente. Talvez isso tenha mudado, talvez sejam só esses textos. Mas há em coisas que não pedimos a possibilidade de uma educação, e todo presente merece alguma boa vontade. Parece que há 10 anos isso que agora digo seria um clichê. Hoje soa meio revolucionário.

O efeito apocalíptico do Natal

Não é possível não recomendar enfaticamente a leitura da entrevista que o Times de Londres fez com um dos três assassinos de Ceausescu (pronuncia-se “Tcháuchescu”), ditador romeno de 1974 a 1989. Ceausescu foi morto a tiros ao lado de sua esposa há exatamente 20 anos.

Todos os fundamentos da cultura propostos por René Girard, bem como sua denúncia pelo Cristianismo, estão no texto, esquematicamente. Primeiro, a rivalidade espalhada pelo país. Segundo, o grupo de pessoas que se une para praticar uma violência em nome de todas as outras pessoas — a violência unânime que é o fundamento mesmo das identidades, e que acaba com as rivalidades, porque é praticada por todos contra um, seja esse “um” apenas um indivíduo, um pequeno grupo, ou um grande grupo abstrato, como o exército inimigo. O resultado tem de ser um distanciamento: eles, vencidos e malvados, estão lá, e nós, vencedores e bonzinhos, estamos aqui.

O julgamento farsesco de Ceausescu corresponde ao mito. Todos os males da Romênia são atribuídos a ele. A própria esposa dele se espanta com o fato de que chamam a morte de 34 pessoas de “genocídio”. Pode ser um massacre, e ninguém está defendendo o ato, mas que a linguagem está sendo abusada, está. Agora, o julgamento farsesco já é um mito extremamente moderno. Os responsáveis sabem que não podem ser considerados linchadores, ou sua violência seria deslegitimada, isto é, não seria unânime. Por isso um julgamento, que é a forma moderna de lavar as mãos da violência a ser aplicada. Agora, se o julgamento fosse sério, provavelmente Ceausescu seria culpado de muitas coisas, mas não de todo o mal do universo. Mesmo nos julgamentos de Nuremberg, até onde sei, ninguém foi levado às pressas para o pelotão de fuzilamento.

O que é mais especificamente moderno é o seguinte: há alguns séculos, teríamos acreditado nessa violência, e entendido que, após nos livrarmos do rei malvado, ou de termos enforcado o último burocrata com as tripas do último comissário do povo, poderíamos viver em paz e seguir nossas vidas de lindeza e amor. Na verdade, alguns de nós ainda acreditamos; tenho certeza de que entre os leitores há aqueles meio escandalizados porque até agora eu não falei que o ditador comunista era o Darth Vader e merecia até uma torturazinha só para ver o que é bom, como se os torturados da Romênia não merecessem a sua vingança.

Não, hoje nós percebemos que a violência é apenas a violência. O homem que matou Ceausescu poderia, em tempos antigos, ser considerado um herói. Hoje ele mesmo vem a público dizer: “Ceausescu pode ter sido mau, mas nós agimos como uma turba ensandecida e assassina”. Essa violência não pode mais fundar a cultura.

É inevitável, também, que a desmistificação continue. Mais e mais estudos mostrarão que o que houve no dia 25 de dezembro em Bucareste foi uma carnificina. Mais e mais pessoas, devidamente ponderadas, recordarão que Ceausescu também não era um anjinho e isso impedirá que sua figura volte, como se ele fosse um salvador. O assassino de Ceausescu, que hoje diz seguir a Bíblia, não se alegra na noite de Natal, porque nessa noite ele se lembra de que cometeu um assassinato. É Cristo quem denuncia sua violência: assim como a turba se uniu para pedir o assassinato de um homem indefeso, também ele agiu em nome da turba.

Essa é a modernidade. Sabemos que o comunismo não foi varrido da Romênia pelas forças do Bem. Nem mesmo um dos homens mais importantes na abolição do comunismo acredita nisso. O assassino sabe que é assassino. Em Júlio César, Bruto diz a Cássio: “sejamos sacrificadores, não açougueiros”, “dirão que fomos expurgadores, não assassinos”. Aqueles que mataram Ceausescu gostariam que acreditássemos nisso, mas não conseguimos, nem conseguiremos, e nem mesmo eles conseguem continuar acreditando.

Esse é o efeito apocalíptico do Natal. Após Cristo, não podemos mais inventar mitos, nem acreditar na violência.

Temo que o que disse acima soe um pouco denso demais. Para quem quiser se aprofundar, alguns textos já citados aqui:

Are the Gospels Mythical?, de René Girard.

On War and Apocalypse, de René Girard.

Two Songs from a Play, de W. B. Yeats.

Limites da fotografia de moda

Subitamente percebi que a freqüência de ambientes feios, sujos e destruídos em fotos de moda pode ser facilmente vista como mais uma projeção do que chamo de “complexo de Jesus Cristo” e como maneira de enfatizar o duplo angélico, isto é, tanto a idéia de que o sujeito individual é um puro e inocente cercado de sujeira por todos os lados, quando a idéia de que ele afeta sem ser afetado. Afinal, é a modelo linda no ambiente sujo que confere prestígio a ele, que só serve mesmo para fazer contraste. A modelo afeta o ambiente, sem ser afetado por ele. As diferenças são realçadas e o sujeito nunca questiona a si mesmo, porque está ocupado demais em questionar o mundo.

Seria exagerado, porém, sugerir que a fotografia de moda tenha alguma culpa especial ou maior do que as demais artes em, sem qualquer esquerdismo, que vocês me conhecem, vender mentiras para o famoso grande público. Até porque quase sempre a fotografia de moda está a serviço do propósito de vender roupas, e é muito melhor que as pessoas sejam inspiradas pela beleza na hora de escolher as próprias roupas do que o contrário. É quase que a finalidade própria da fotografia de moda oferecer duplos angélicos no sentido de “a melhor versão daquilo que se pode ser”. Estou apenas dizendo que a freqüência do uso de fundos feios para realçar modelos bonitas parece um sintoma da difusão do sentimento paranóico; todos, afinal, acham que são a reserva moral desse mundo vil.

Curioso é que essa bondade nunca se apresente de forma ativa. Por exemplo, nunca vi uma campanha ou um editorial em que as pessoas lindas e bem-vestidas estivessem realizando atos caridosos, como dar esmolas, servir comida aos pobres, ou mesmo dando as próprias roupas. Seria bom que essa campanha ou editorial trouxesse a bondade verdadeira, não a mera adesão ao cânone politicamente correto do dia, isto é, que mostrasse o amor ao próximo, não aquela pose de quem acha que está “contribuindo para salvar o planeta” — ou seja, de quem se acha mais um Jesus Cristo, um salvador do mundo. Agora, talvez essas fotos de moda não existam porque elas não venderiam roupas, e eu já passei da idade de ficar lamentando esse tipo de coisa.

Por outro lado, não sei se seria possível que uma campanha ou um editorial de moda questionasse diretamente a individualidade e a autonomia do desejo. É muito engraçado que trabalhos fotográficos caríssimos só sejam possíveis porque existe uma indústria da moda, que é a mesma coisa que a massificação. Mesmo que as peças nos editoriais e campanhas de maior prestígio não sejam para todos, a idéia (na verdade por trás de toda propaganda) de vender individualidade e exclusividade para as massas é engraçadíssima, sobretudo porque funciona.

É claro que ter determinados propósitos não impede a fotografia de moda de ser realmente bonita, assim como é claro que existe uma arte verdadeira ali. A qual, como qualquer arte, tem suas limitações. Se a moda é o oferecimento de modelos, talvez só mudando de ramo se possa explorar melhor certas nuances do desejo e das interações humanas. Veja-se por exemplo algumas das obras da artista Marina Weffort, obras que vêm diretamente questionar a individualidade: nelas, as figuras mantêm sua individualidade, ainda que se toquem, se contaminem, questionando suas próprias autonomias. As imagens tendem a um centro que não está exatamente em nenhuma figura específica, mas está nelas todas. Esse centro, parece-me, é o desejo. Na fotografia de moda, ele já se cristaliza como modelos a ser admirados e imitados; nas artes plásticas, pode aparecer numa representação mais direta.

Ainda cânon x obra: a era da paranóia

Recordo que nas primeiras vezes em que fui a grandes museus tive a mesma sensação de quando me aproximei pela primeira vez de grandes obras literárias sancionadas pelo cânon: parecia que eu tinha contato direto com uma celebridade. De um lado, pensava: “então é isso.” De outro, “por que é bom?” E pensava que, assim como pessoas treinadas podem descrever os sabores de um vinho, ou dizer quais os problemas e virtudes de um automóvel, alguém tinha selecionado aquelas obras para o cânon. A questão que se coloca para quem quer sair da condição (nada pejorativa, por favor) de “público em geral” para a de apreciador mais qualificado é como apropriar algo daquela experiência que motivou os selecionadores do cânon — seja para concordar ou discordar deles.

Não posso deixar de observar que o modelo do desejo mimético está presente aqui. De um lado, o modelo é o juiz do cânon; por ele é que apropriaremos as obras de arte. Quando repetirmos sua experiência, o juiz do cânon pode se tornar nosso rival, e a deferência com que um dia o tratamos pode sumir, mas penso que é justo que seja transformada, em muitos casos, em gratidão. Afinal, o modelo foi imitado antes de ser derrubado. Não digo “todos os casos” porque acho que há maus modelos, ou modelos deliberadamente maus, que pretendem usurpar o lugar de prestígio no cânon para promover suas modinhas pessoais – esse parece o caso das vanguardas do século XX, que insistem em não perceber seu esgotamento. Agora, outro aspecto do desejo mimético aqui presente é o desejo de auto-afirmação, de diferenciação da maioria, de poder sentir que não se é um qualquer que entra num museu como mero turista que vai visitar celebridades “culturais”, ou que fica citando textos bobos como se fossem de Shakespeare, Machado de Assis ou Fernando Pessoa (ou, pior ainda, Arnaldo Jabor).

Assim, o desejo de ser um consumidor qualificado de arte comporta os aspectos positivo —mediação externa, com modelo distante: o selecionador do cânon — e negativo — mediação interna, de rivalidade com as pessoas próximas: os turistas dos museus — do desejo mimético. O aspecto negativo obviamente explica as rivalidades entre as tribos e as rotulações mútuas, sobretudo com aspectos pejorativos, como no caso onipresente de conservadorismo x progressismo. Ele não passa de um desejo de diferenciar-se, de afirmar-se único etc. Por outro lado, sempre que se fala em “crise da arte”, é o aspecto positivo que está em jogo, ou melhor, em xeque: se a modernidade é marcada por uma recusa de modelos, enão não há modelos a imitar, e portanto não há guias. Há o vazio, o tédio e, como René Girard apontou em Anorexia e desejo mimético, a bulimia da arte contemporânea, que passa por ecletismo, mas que não passa de um vômito de influências adquiridas aleatoriamente e devolvidas sem um projeto unificador, isto é, sem um modelo.

Por sua vez, a ausência de modelos amplia a rivalidade. A ausência de modelos é também uma ausência de critérios comuns; um efeito disso é que os critérios fiquem cada vez mais sutis, tão sutis que chegam a ser ininteligíveis. O artista tem de ser isso ou aquilo; tem de ser as antenas da raça, psicografando o Zeitgeist, mas, sem modelos comuns, cada pessoa tem um Zeitgeist distinto. Há quem julgue que o mundo progride a passos lentos, quem viva em pleno apocalipse, quem não esteja nem aí. Até eu tenho a minha opinião sobre o Zeitgeist, ainda que lute para não participar desse espírito em particular: creio que todos os grupos são unidos pelo que chamo de “complexo de Jesus Cristo”, que posso descrever assim: “eu sou bom, inocente; se fiz o mal, tive minhas razões; os outros é que são maus; o mundo é mau; o mundo precisa ser salvo; salvo por mim, ou por pessoas parecidas comigo, que devem existir.” Isso fica bem claro na lamentação pela “morte das utopias”, isto é, meia dúzia de professores universitários simplesmente não conseguem enxergar que só eles acreditavam nas tais das utopias; em suma, tanto os professores quanto os demais grupos partilham uma visão “eu-cêntrica” do mundo que pressupõe a inocência do eu. É a era da paranóia. Ninguém se pergunta: “será que eu sou bom para meu semelhante?”, apenas “será que os outros estão sendo bons?”

Retomarei o assunto, como parte de uma meditação para o tempo do advento. Por ora, vale observar que não parece ser de outra coisa que Yeats fala em seu famoso poema “The Second Coming”:

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?

Mentira romântica e verdade romanesca

Dia 11, em SP, na É, palestra com James Alison (presidente da Fundação Imitatio, voltada para a obra de René Girard) para lançar Mentira romântica e verdade romanesca. É pena que eu não possa ir do Rio a SP para assistir.

Abaixo, a orelha que escrevi para a tradução brasileira deste primeiro livro de Girard.

***

Aquilo que habitualmente é catalogado como “crítica literária” pode ser dividido em dois grandes grupos: de um lado, as tentativas de teorias efetivamente científicas da literatura, que discutem e classificam as obras segundo sua natureza; de outro, textos talvez mais impressionistas, em que muitas vezes as obras são pretextos para se falar de assuntos relacionados. O primeiro grupo costuma ficar restrito à academia; o segundo circula entre o grande público, e pode ter um grande valor para a formação, não apenas intelectual, mas também do caráter.

A obra de René Girard estabelece uma curiosa interseção. É científica na medida em que oferece um critério objetivo para a divisão das obras literárias em românticas ou romanescas. O modelo do desejo mimético — neste primeiro livro mais frequentemente chamado desejo triangular — também pode ser aplicado às relações de praticamente quaisquer personagens, à relação entre autor e leitor, entre autor e narrador, entre autor e autores, entre o autor e o desenvolvimento de sua obra etc. Mas a obra de Girard, fazendo teoria da literatura, mostra que a literatura é uma tentativa de teorizar o desejo. Se a ciência explica a literatura, a literatura explica a vida. Aquelas impressões e intuições esparsas que norteavam a formação do caráter como faróis numa noite escura são como que unificadas numa única grande luz.

Exagero? Apenas se considerarmos que a modernidade, como costuma dizer o próprio Girard, costuma prometer a abolição de todas as certezas, e até simplesmente declará-la, sem jamais questionar a certeza inquestionável sobre a qual ela mesma se funda: a sacralidade do desejo. Basta que um querer seja apresentado como sincero e espontâneo para que mereça tratamento deferencial, como se o desejo verdadeiro fosse um deus que criasse a si mesmo e não precisasse dar justificativas. As identidades têm uma forte relação com o desejo: os sofisticados se diferenciam dos toscos pelos objetos que desejam, assim como os intelectuais dos não-intelectuais etc. É por isso que o pequeno grupo dos adoradores de um autor, cineasta ou músico “secreto” não gosta que seu segredo seja descoberto pelo grande público: subitamente, o prestígio da exclusividade e da diferenciação se desfaz como o ouro que, em certas fábulas, vira pó.

Girard explicita e sistematiza uma lição que a propaganda já aprendeu: muitas vezes não desejamos um objeto por uma qualidade que lhe seja intrínseca, mas para nos tornarmos iguais a um modelo. No entanto, se esse modelo for distante, como por exemplo Cristo para um cristão (imitador de Cristo), Amadis de Gaula para D. Quixote, Sófocles para um autor de teatro contemporâneo, a relação de mímese é boa e produtiva. A imitação do modelo distante não é exclusiva; se eu imito Cristo ou Sófocles, você pode imitá-lo do mesmo jeito, sem que eu tenha prejuízo. Porém, se seu modelo for seu amigo, seu vizinho, seu colega, então a relação tem grandes chances de tornar-se uma rivalidade, uma vez que o objeto que confere prestígio ao modelo e lhe dá sua identidade não pode ser dividido. Não posso dividir com meu amigo sua namorada, sua casa ou seu emprego. Portanto, ao questionar o desejo e a suposta inocência do “eu desejante”, Girard questiona a própria modernidade e, ao invés de criticar seus ícones, como Freud e Marx, desde um ponto de vista meramente conservador, mostra que, apesar de seus amplos poderes de observação, falta-lhes uma abordagem suficientemente radical.

A partir dos fundamentos lançados em Mentira romântica e verdade romanesca e A violência e o sagrado (Paz e Terra), Girard estabeleceu novas interpretações do teatro grego, de Shakespeare e de diversos outros autores que simplesmente não podem ser ignoradas. O que o leitor tem em mãos é uma chave interpretativa da literatura, de sua relação com a literatura, de sua relação consigo mesmo, e de si próprio. Havendo vontade de conhecer-se a si mesmo, René Girard pode ser para o leitor aquilo que Virgílio foi para Dante Alighieri.

Memórias do subsolo

Memórias do subsolo

Um dos livros que melhor ilustram as questões que apresentei nos textos anteriores é Memórias do subsolo, de Dostoievski. Agora, é importante ter em mente o seguinte: Dostoievski apresenta o esplendor da mesquinharia de seu narrador como recurso poético, porque sem ele, curiosamente, não conseguiríamos ler o livro. Qualquer pessoa que se depare com “Sou um homem doente… Um homem mau” pensa logo: “esse não sou eu”. Por isso vemos o narrador-protagonista de Memórias do subsolo como um outro, e muitos críticos ainda falam da densidade filosófica da obra. Cuidado. Isso tudo são cortinas de fumaça usadas para tornar palatável a verdade impalatável: numa certa medida, nós, exceto os santos, somos o personagem de Memórias do subsolo.

Quando eu falo em “certa medida”, não estou me referindo a algo incerto. A medida certa é a medida em que pretendemos afirmar nossa autonomia a qualquer custo e encontrar uma espécie de autofundamento do eu, como se pudéssemos criar a nós mesmos, dar a nós mesmos a nossa identidade, estimar a nós mesmos como se não houvesse nada em torno — e como seria possível estimar o valor de alguma coisa sem compará-la a outra? A insistência mesma em ser “especial” é apenas uma maneira elegante de dizer que alguém (você mesmo, normalmente) é melhor do que os outros. E então, quando as pessoas se deparam com alguém cuja vaidade é ainda maior, mais estudada, mais eficaz, e são afetados por alguém que elas não conseguem afetar, dizem: ele é vaidoso, ele é arrogante, ele se acha melhor do que todo mundo etc.

Veja no trecho abaixo quantas estratégias o narrador e o autor usam para diferenciar-se e criar uma dissonância cognitiva*. Você quer ouvir o relato de um homem doente e mau? Não. Mas como se trata de um livro publicado, o prestígio faz com que você siga adiante. Depois, o narrador se diferencia dos médicos; ele simplesmente os recusa, mas também mostra que está plantado na realidade, e que sua vontade de continuar doente é inflexível, isto é, não é afetada por ninguém, nem pelos médicos.

Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.

(p. 15)

No trecho abaixo, o narrador discute com o utilitarismo inglês, e a idéia econômica de que as pessoas querem maximizar sua satisfação (ou, como dizem os economistas, a utilidade marginal). Querem as pessoas ser felizes? Não: elas querem é mostrar-se independentes. Querem sentir que dão o fundamento à própria vida.

Uma vontade que seja nossa, livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos, nossa própria imaginação, mesmo quando excitada até a loucura — tudo isso constitui aquela vantagem das vantagens que deixei de citar, que não se enquadra em nenhuma classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham continuamente, com todos os diabos! E de onde concluíram todos esses sabichões que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de uma vontade sensata, vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa vontade…

(p. 39)

Como agora só gostaria de estimular o leitor aqui do site a ler o pequenino romance de Dostoievski, e voltar aos meus inúmeros afazeres, deixo apenas mais uma nota, porque é muito importante. Nessas divagações todas a respeito de auto-imagem, auto-estima à luz da teoria mimética de René Girard, em nenhum momento eu (nem Girard) pretendo sugerir que as coisas tenham de ser necessariamente assim. De fato, eu não acho possível, nem metafisicamente, encontrar um autofundamento para o eu, mas isso não quer dizer que a infelicidade é obrigatória. Ela é obrigatória apenas para quem insistir até o fim da vida na vã tentativa de fingir que não está se comparando a ninguém, que só olha para si mesmo, e que nunca fez nada de tão grave assim. Enquanto você achar que pode sim atirar a primeira (ou a segunda, ou a centésima segunda) pedra, e que, na história da Paixão de Cristo, você está mais perto do crucificado do que do crucificador, realmente a infelicidade é obrigatória. Mas você pode renunciar a isso tudo a qualquer momento. Pode admitir que compete quando acha que não compete, pode parar de pensar que só os outros são violentos, pode parar de desejar a afirmação da própria independência de tudo e de todos, e pode, por fim, tirar você mesmo do centro das suas atenções. Não faz muito tempo que dedicar-se aos outros era considerada uma definição bastante incontroversa de amor. Se você prefere acreditar em Hollywood, bem vindo ao subsolo.

*Provavelmente estou usando o termo de modo mui lato…

Auto-estima, auto-imagem, duplo angélico

Todo o que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; e todo o que a perder, salvá-la-á. (Lucas, 17, 33)

Creio que ainda preciso explicar mais meu pensamento a respeito da questão da auto-estima x hetero-estima. O problema aqui é que estou usando diversos termos num sentido peculiar, às vezes peculiar somente ao meu próprio pensamento. Vamos lá, pois.

Você quer ser único. Encontrar o próprio fundamento do eu. E nem estamos falando de um fundamento do eu cognitivo, que, ainda que seja individual, também é “genérico”. Quer dizer, cada um tem o seu intelecto, mas esse intelecto é igual para todo mundo. As pessoas todas têm a mesma inteligência. Não vamos confundir isso com aptidões; claro que Aristóteles e Pelé têm “inteligências” diferentes, mas, sem aspas, têm a mesma inteligência. São animais racionais. Por isso, retomando, você quer encontrar algo muito particular em si, talvez o famoso “eu sou eu e minha circunstância” de Ortega.

Você também quer encontrar a particularidade de tudo. Ao ler um livro, quer ver um conflito de pessoas realmente opostas. Quer acreditar que você e seus inimigos (ou as pessoas que você despreza, aquelas de quem você está muito acima, e que nunca te afetam, lembra?) são as pessoas mais diferentes possível. Faça um exercício. Observe outras pessoas. Veja como elas falam mal de outras, atribuindo-lhes intenções e explicando os atos delas sem a menor cerimônia. Depois, observe como as mesmas pessoas, ao falar de si próprias, justificam-se, enxergam em si nuances sutis, dizem que só fizeram isso ou aquilo por engano ou má influência. Depois ainda, observe como você mesmo faz isso, o tempo todo. O que as pessoas mais fazem é produzir longas e intermináveis explicações a respeito da própria inocência, justificando-se sem parar.

Isso é o que leva à identificação com Cristo. Nada mais comum do que isso: uma pessoa imaginar-se a vítima inocente de linchadores indiferenciados, o grande e bom herói esmagado pelas engrenagens do sistema, do mau gosto alheio, do Brasil, dos EUA, do ocidente decadente, do kali-yuga, do inimigo impessoal à escolha do freguês.

Isso também leva à formação do duplo angélico. Duplo angélico é um termo que René Girard criou para designar a versão perfeita de você mesmo que você gostaria de projetar. Uma das primeiras características do duplo angélico é que ele é um modelo, isto é, ele afeta sem ser afetado. Ele não recebe prestígio de ninguém, ele apenas confere prestígio. O duplo angélico não é um objeto. Veja a diferença entre a fotografia de moda para mulheres e a fotografia de mulheres para homens. Na fotografia de moda, as mulheres são modelos: estão representando um mundo perfeito e estão lá para ser admiradas, afetando quem as vê sem ser afetadas. No mundo da fotografia de moda, até a dor é mais pungente, mas sempre pode ser redimida pela beleza do quadro. Enquanto isso, quem vê as fotos de moda está na banalidade suprema do seu lar, ou de um consultório, ou até mesmo de um salão — nos bastidores da beleza, por assim dizer. Agora, nas fotografias de mulheres para homens, as mulheres aparecem como objetos. Não estão lá para ser admiradas, mas para ser usadas, seja via onanismo, seja via o sonho de possuí-las, o que é a mesma coisa. Quando uma mulher que se considera chique (e todas se consideram) demonstra ressentir-se de outra, normalmente é porque a outra está se apresentando como objeto. Quando essa mulher chique vê outra que ela considera um modelo melhor, ela sente inveja. E, é claro, jamais admite isso. Porque só as pessoas vulgares e ridículas, aquelas que são afetadas pelos outros, sentem inveja. O fato de todos — e isso vale para homens também — quererem ser modelos leva a uma competição universal de indiferença.

A quase totalidade das obras artísticas, de novelas da Globo a poemas ininteligíveis, podem ser explicados como projeção de um duplo angélico. Uma novela da Globo traz duplos angélicos para pessoas de pobreza cognitiva (pobreza causada por preguiça mental, sei lá — isso é irrelevante agora). Um espectador contumaz de novelas concebe a versão perfeita de si mesmo como alguém rico, de vida fácil, que freqüenta os lugares da moda, enfrenta suas dificuldades com altivez, cercado dos melhores amigos que existem, e termina bem no final. A função do vilão é apenas tentar atrapalhar a vida das pessoas perfeitas e ser esmagado, reforçando a identidade do duplo angélico.

House

Uma pessoa cognitivamente mais sofisticada prefere uma série americana como House. O Dr. House é um duplo angélico de quem se acha inteligente. Não só ele resolve todos os casos, como tem status especial diante dos outros personagens e, enquanto os outros sempre acham que podem manipulá-lo, ele é que os manipula — ele é que afeta sem ser afetado, como já discuti no texto “O transgressor eficiente”. Dr. House nunca muda. É verdade que o criador da série, David Shore, disse que a diferença entre o protagonista de uma série de TV e o de um filme é que o primeiro nunca muda, mas o segundo muda. Pode ser um princípio de trabalho, mas isso não invalida o que estou dizendo, porque estou tentando explicar apenas porque o público gosta de House.

Pessoas que se acham ainda mais sofisticadas gostam de séries ou romances ou poemas etc. em que não haja um modelo com o qual identificar-se, porque elas se acham tão sofisticadas que não admiram ninguém — sabem que o papel de modelos cabe somente a elas. Uma série como The Wire depende de o espectador colocar-se por cima de todos os personagens para apreciá-la. O mesmo vale para Deadwood. Mesmo o trabalho excelente dos atores faz com que você goste dos personagens como quem gosta de um bicho de estimação.

(A propósito: eu gosto, e muito, de House, The Wire e Deadwood.)

Quem se acha sofisticadíssimo prefere a arte ininteligível. Confesso que já matutei muito a respeito da existência da arte ininteligível. Por que as pessoas escreveriam poemas que não significam nada exceto para elas mesmas, por que imaginariam mundos estáticos com exóticas combinações de elementos? Pela mesma razão que as pessoas que gostam de um artista semi-oculto preferem que ele continue assim. Todos temos uma consciência perene de que este momento, este aqui que estamos vivendo, imediatamente agora, é banal. É sempre o outro tempo, o outro mundo que parece bom — aquele tempo que será uma sucessão infinita de momentos perfeitos, seja na chiqueza dos restaurantes da moda, na deliciosa dureza da onipotência diagnóstica, ou na gélida e altiva superioridade de quem, a essa altura, só pode observar o baixo mundo dos vis mortais. Os sofisticadíssimos querem olhar para todos, todos mesmo, e imaginar algo que ninguém possa imaginar, uma resposta peculiaríssima a uma visão de mundo peculiaríssima. É a idéia mesma de um terreno comum com qualquer outra pessoa que causa repugnância.

Agora, o duplo angélico é sempre negociado e particular; pouca gente quer ser um novo Leonardo da Vinci, atuando em todas as áreas. Algumas pessoas querem o prêmio Nobel; outras, um emprego na TV; outras, ainda, apenas ser magras e ter roupas bonitas. Quando se fala em auto-imagem, normalmente se fala da versão perfeita que se concebe para si mesmo. Então surge a percepção de que essa versão também é determinada pelos outros — alguém disse a você alguma vez que você era inteligente ou escrevia bem, ou era bonita e devia ser modelo, ou sei lá o quê, e você acreditou. Em algum momento da sua vida, você percebe que essa auto-imagem fracassa. Você não é tão glamuroso quanto queria. Se você é mulher, sabe que as personagens de Sex and the City só existem na TV — na vida real, elas se casam com homens pouco seletivos e/ou ficam amargas. Se você é homem, ou mulher, e quis basear sua vida numa inteligência transgressora como a do Dr. House, manipulando todo mundo, já viu que muitos fatores lhe escapam. Se você quer apenas assistir e dar uma de superior, você tem um blog que só serve para jogar ácido em todo mundo, enquanto na famosa vida real todo mundo só te acha um ressentido. E se você se acha the ultimate bolacha do pacote, nem você se entende, mas ainda assim você espera uma bolsa do governo, porque voluntariamente ninguém vai pagar por algo ininteligível.

O efeito maléfico de muitas obras de arte, de filmes mais bobos a Sex and the City e House, é perpetuar a impressão de que a vida ideal é aquela em que bancamos o nosso duplo angélico e vencemos o mundo. Só que aqueles protagonistas são só personagens de um roteiro, vividos por atores que têm à disposição os melhores fotógrafos, maquiadores etc. do mundo. Todos esses personagens vivem segundo a própria hybris, zombando das circunstâncias e inventando as próprias regras, criando o próprio mundo auto-suficiente, seja repleto de sapatos e roupas, seja repleto de inteligência e perspicácia. Eu jamais diria que não se deve assistir a essas séries; mas, como já falei, se você sabe que comer um determinado alimento tem um efeito sobre seu corpo, também deveria saber que consumir um determinado produto cultural tem um efeito sobre a sua alma, e ficar atento. Gostar de séries e filmes em que o duplo angélico vence o mundo mau, com essa estrutura paranóica (eu sou bom, os outros são maus), é a mesma coisa que gostar de brigadeiro. É bom, é simples, tem efeito rápido, mas engorda. O brigadeiro engorda o corpo e o duplo angélico engorda a alma. Você fica cheio de si.

Posso falar de duas obras recentes em que o duplo angélico é questionado. A primeira é o livro O animal agonizante, de Philip Roth. Agora percebo que o título é ainda mais preciso do que eu imaginava. O protagonista, um professor universitário, concebe a vida segundo uma perspectiva puramente física, animal: o negócio é ter prazer e colecionar alunas no quarto. Mas, se o prazer depende do corpo, e se a vida perfeita depende do corpo, o que fazer quando o corpo se vai? O livro não tem resposta nem redenção. Algumas pessoas podem achar corajoso admitir um impasse; eu me pergunto por que eu precisaria de coragem para admitir que estou agora olhando para a tela do computador, para admitir que o que está na minha frente é o que está na minha frente.

A outra obra, que vai muito além do livro de Roth, é o filme Two lovers, de James Gray. Um sujeito coloca sua vida nas mãos de uma mulher de prestígio — ela tem prestígio porque o convida a entrar em seu mundo, mas não o suficiente, como se ficasse para sempre na vitrine. Você pode ver e sonhar, mas não pode encostar nem possuir. Ao final, o sujeito fica com outra mulher, uma oportunidade mais encaixada em sua realidade. Minha única crítica ao filme é que a transição de uma mulher para outra se dá em mais ou menos cinco minutos, e isso é muito pouco tempo para a verdadeira noche oscura em que consiste essa transição. Não se cai na real em cinco minutos. Não se abandona a idéia e a esperança do duplo angélico pessoal, em que se possui certeiramente os objetos de maior prestígio, em nome da famosa vida real, assim tão rapidamente.

Tudo isso significa que a auto-imagem deve ser abandonada? Francamente, sim. O que quero dizer é que a busca direta por uma auto-imagem que tenha um fundamento absolutamente próprio é uma futilidade. Ela vai sempre redundar na criação de um duplo angélico, porque ser “você mesmo” é “não ser os outros”, e você quer que esse fundamento tenha o poder de afetar os outros sem que você seja afetado. Perguntar-se por um fundamento do eu é a mesma coisa que perguntar: “em que ponto eu apenas afeto e ninguém me afeta?” Eu acho que é preciso abdicar dessa pergunta, e que alguma coisa verdadeiramente sua apenas surgirá quando você parar de pensar no assunto e se concentar em fazer alguma coisa muito bem. Todos os grandes autores, por exemplo, estavam obcecados pelos assuntos de que tratavam, não por “deixar sua marca pessoal”. Essa marca veio como decorrência de seu amor por outra coisa, exatamente como o orgasmo vem em decorrência do desejo pela outra pessoa, e não do desejo pelo orgasmo; ou como o bom paladar vem do desejo do cozinheiro de agradar o cliente, e não do desejo de impor sua própria concepção de comida. Nossa imagem, aquela que afeta mais aos outros, e positivamente (já repararam que o mal sempre parece impessoal? Isso vem de seu caráter de privação), aparece quando nos preocupamos com as coisas que fazemos e com os próprios outros, e não quando tentamos fazer algo diretamente pessoal.

Ainda auto-estima x hetero-estima

O texto abaixo foi escrito após eu ter visto que aquilo que escrevi como boutade (ainda que de conteúdo sério — é mesmo a minha opinião) foi discutido com grande atenção por pessoas que eu estimo.

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O que mais chama a atenção em relação à famosa auto-estima é que só parece haver duas atitudes em relação a ela: ou você simplesmente não pensa no assunto, ou você acha tem problemas de auto-estima. Eu estou entre os que não pensam no assunto. Não porque eu me considere uma pessoa incrível e sensacional que paira acima dessas vis questiúnculas, mas porque estou interessado demais em outras coisas, como Shakespeare, teoria mimética, grego, política. Isso não significa, é claro, que eu não tenha uma idéia de mim mesmo, nem que eu não me compare com outras pessoas; significa, isso sim, que tenho meus modelos, sei quem eles são, e esforço-me para imitá-los. No mínimo, imitá-los no sentido de ver o que eles viram. Shakespeare, sempre; René Girard, Sófocles, Geoffrey Hill, Bruno Tolentino, Lawrence Flores Pereira, e mais. Eu sei que a minha auto-estima é uma hetero-estima. Aqui eu chego a algo que posso considerar uma espécie de paradoxo da humildade. Não posso querer ser igual aos meus modelos, e não posso deixar de querer ser igual aos meus modelos. Não posso fugir desse dilema dizendo que na verdade eu deveria querer tentar “ser eu mesmo”. Todos os meus modelos também tiveram modelos. A grandeza deles veio da humildade diante dos modelos. Humildade genuína que, sim, tem a ver com humilhação. Isso, aliás, me lembra da parábola presente em Lucas, 14:

8 Quando por alguém fores convidado às bodas, não te reclines no primeiro lugar; não aconteça que esteja convidado outro mais digno do que tu;

9 e vindo o que te convidou a ti e a ele, te diga: Dá o lugar a este; e então, com vergonha, tenhas de tomar o último lugar.

10 Mas, quando fores convidado, vai e reclina-te no último lugar, para que, quando vier o que te convidou, te diga: Amigo, sobe mais para cima. Então terás honra diante de todos os que estiverem contigo à mesa.

11 Porque todo o que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado.

Agora, se você tem problemas de auto-estima, você está se debatendo com a seguinte pergunta: “Por que eu não consigo gostar de mim mesmo, mesmo quando outras pessoas gostam?” Claro que aqui estou supondo que você consegue acreditar que as outras pessoas realmente gostam de você, mas isso não faz muita diferença para o que direi a seguir. Creio que o problema da auto-estima vem do desejo de autonomia absoluta, que continua a ser uma hetero-estima. Você olha para o meio, para as pessoas em torno. Percebe que elas atribuem prestígio a certas coisas e decide diferenciar-se, atribuindo prestígio a outros objetos. Você passa a competir para ver quem vai conseguir imantar os objetos de prestígio. Será que, no seu meio social, as pessoas continuarão a valorizar aquele tosco autor semi-conhecido da classe média, ou valorizarão aquele autor de que você gosta — e que você, por gostar dele, sente que está unido a uma classe superior de pessoas, a um outro mundo, necessariamente melhor?

Mesmo que — e sobretudo se — você tiver sucesso, ainda assim você verá que tornar-se o modelo que cobre os objetos de prestígio não fará muita diferença na sua vida. Nenhum dos objetos é mágico. Além disso, se as pessoas passam a seguir você, imediatamente elas perdem prestígio, e você nem sabe mais onde encontrar aquele prestígio perdido. O prestígio precisa ser renovado sempre, e sempre sutilmente. Se uma mulher diz a outra que seu marido é indesejável, essa primeira mulher apenas parece ressentida. Se muitas mulheres de prestígio (bonitas e inteligentes e chiques etc.), derem a entender indireta e continuamente que seu marido é indesejável, ele vai começar a perder prestígio. Você pode, é claro, dar uma de superior e reafirmar seu desejo por ele. Mas também vai lembrar que tudo era mais gostoso quando só você tinha aquilo que muitas desejavam e quando não tinha de retirar todo esse desejo por alguém só de si mesma.

É por tudo isso que os problemas de auto-estima vão atingir mais evidentemente aquelas mulheres bem-sucedidas, bonitas e magras, isto é, aquelas que são modelos para as outras. Ocupar o papel de modelo e afirmar a sua (pseudo-)autonomia não vai resolver o problema de ninguém, porque isso é a morte do desejo. O desejo, por sua vez, é o que as pessoas querem. Mais do que possuir, elas querem desejar: é por isso que se valoriza tanto a “jornada” e a idéia de que “não se pode parar”. O desejo competitivo, porém, não traz felicidade. Se você realiza o desejo, ele morre. Se não realiza e insiste, fica frustrado. A única coisa a fazer, paradoxalmente, é renunciar ao desejo competitivo e buscar modelos claros e explícitos que possam ser compartilhados.

Um problema bastante contemporâneo, sobretudo entre os overachievers, é exatamente este tédio. Tendo obtido tantas coisas, quem poderá conferir prestígio? Como você faz para deixar de ter uma opinião tão sublime de si próprio que cria uma camada impermeável aos elogios alheios? Paradoxalmente, mais uma vez, admitindo as próprias limitações. Por mais overachiever que alguém seja, sempre há áreas inexploradas, idéias não-pensadas.

Ninguém é tão particular assim também. Se Sófocles pode falar conosco quase 2500 anos depois, é porque ele abdicou de suas idiossincrasias para poder encontrar algo de universal. Por outro lado, Blair Waldorf só será considerada chique por uma certa camada de nossa geração, e por meia dúzia de arqueólogos da moda no futuro. Mesmo o mais particular dos estilos pessoais de se vestir depende de um princípio universal, que é o princípio da adequação. Ninguém se veste bem sem que sua roupa esteja adequada a si mesmo e à circunstância. Analogamente, mesmo que você tenha uma alma individual, sua personalidade não é tão única assim a ponto de beirar o ininteligível. A parte dela que beira o ininteligível é irrelevante e querer definir-se por ela é certeza de infelicidade. Vejam lá se eu agora vou passar a dizer às pessoas que, em vez de eu ser o sujeito que estuda grego, sou o sujeito que gosta de Tic-Tacs de cereja e menta.

Há alguns parágrafos o que eu estou dizendo pode soar como um bando de clichês de auto-ajuda. Mas esses sentimentos estão na base da tragédia e da hybris. Eu poderia dizer um tanto poeticamente que a hybris é o desejo de refundar o mundo com base no próprio ego. Danem-se as leis, as convenções, os papéis sociais; quero fazer tudo do meu jeito. Assim você se hibridiza, se confunde e, naturalmente, passa a desconhecer a própria identidade. Porque, invariavelmente, a hybris nada mais é do que uma reação mimética negativa. Não posso negar que minha camisa anti-Che tem o propósito de bagunçar o consenso (imbecil) em torno de um suposto heroísmo de Ernesto Guevara. É um jeito que tenho de me diferenciar e de criar a impressão de que estou acima do meio, que “eles” são uns burrões, um bando de maria vai com as outras que segue sem pensar o consenso esquerdista, enquanto eu sou o grande Sócrates da parada, questionando tudo indomitamente. A camiseta é bastante inofensiva, mas a mesma estratégia pode estar presente de modo muito mais sutil. Posso dizer que gosto de Husserl e não de Foucault. Ou de Geoffrey Hill e não de Clarice Lispector. Tudo depende de o meu gosto ser mais ou menos afetado pela opinião que eu quero que as pessoas tenham de mim por eu gostar dessas coisas. Naturalmente, quero que os vulg
ares me odeiem e os melhores me aplaudam. A extensão do quanto eu quero isso (ou do quanto eu quero uma pessoa) é a extensão de quanto meu desejo é competitivo e mimético.

Vou encerrar com uma história, porque é sábado e o trabalho é grande — daí eu ter andado meio sumido aqui. A história, real, me foi contada por seu protagonista há uns 10, 11 anos, e me marcou muito. Era uma vez, nos anos 1970, um homem que trabalhava com mídia que estava cansado do mundo capitalista e mau. Decidiu mudar-se para uma minúscula cidadezinha no interior da Amazônia. Chegando lá, diz ele, “na hora em que eu vi que não tinha ninguém para me aplaudir por eu ter decidido levar aquela vida, só não voltei para Manaus imediatamente porque o barco só passava no dia seguinte”. De Manaus, ele veio para o Rio e arrumou um emprego na Rede Globo. Hoje, ele é um empresário bem-sucedido.

Por isso, se você tem problemas de auto-estima, talvez você esteja na sua cidadezinha minúscula do Amazonas, só que dentro da sua cabeça. As pessoas à sua volta te aplaudem, mas você não acha que elas têm prestígio, não quer admitir que talvez seja preciso encaixar-se no mundo existente em vez de viver segundo uma regra imaginária e especial que transformaria a sua vida numa sucessão ininterrupta de momentos perfeitos. Admita sua competitividade e suas limitações, e pegue o barquinho de volta para Manaus.

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