Todo o que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; e todo o que a perder, salvá-la-á. (Lucas, 17, 33)
Creio que ainda preciso explicar mais meu pensamento a respeito da questão da auto-estima x hetero-estima. O problema aqui é que estou usando diversos termos num sentido peculiar, às vezes peculiar somente ao meu próprio pensamento. Vamos lá, pois.
Você quer ser único. Encontrar o próprio fundamento do eu. E nem estamos falando de um fundamento do eu cognitivo, que, ainda que seja individual, também é “genérico”. Quer dizer, cada um tem o seu intelecto, mas esse intelecto é igual para todo mundo. As pessoas todas têm a mesma inteligência. Não vamos confundir isso com aptidões; claro que Aristóteles e Pelé têm “inteligências” diferentes, mas, sem aspas, têm a mesma inteligência. São animais racionais. Por isso, retomando, você quer encontrar algo muito particular em si, talvez o famoso “eu sou eu e minha circunstância” de Ortega.
Você também quer encontrar a particularidade de tudo. Ao ler um livro, quer ver um conflito de pessoas realmente opostas. Quer acreditar que você e seus inimigos (ou as pessoas que você despreza, aquelas de quem você está muito acima, e que nunca te afetam, lembra?) são as pessoas mais diferentes possível. Faça um exercício. Observe outras pessoas. Veja como elas falam mal de outras, atribuindo-lhes intenções e explicando os atos delas sem a menor cerimônia. Depois, observe como as mesmas pessoas, ao falar de si próprias, justificam-se, enxergam em si nuances sutis, dizem que só fizeram isso ou aquilo por engano ou má influência. Depois ainda, observe como você mesmo faz isso, o tempo todo. O que as pessoas mais fazem é produzir longas e intermináveis explicações a respeito da própria inocência, justificando-se sem parar.
Isso é o que leva à identificação com Cristo. Nada mais comum do que isso: uma pessoa imaginar-se a vítima inocente de linchadores indiferenciados, o grande e bom herói esmagado pelas engrenagens do sistema, do mau gosto alheio, do Brasil, dos EUA, do ocidente decadente, do kali-yuga, do inimigo impessoal à escolha do freguês.
Isso também leva à formação do duplo angélico. Duplo angélico é um termo que René Girard criou para designar a versão perfeita de você mesmo que você gostaria de projetar. Uma das primeiras características do duplo angélico é que ele é um modelo, isto é, ele afeta sem ser afetado. Ele não recebe prestígio de ninguém, ele apenas confere prestígio. O duplo angélico não é um objeto. Veja a diferença entre a fotografia de moda para mulheres e a fotografia de mulheres para homens. Na fotografia de moda, as mulheres são modelos: estão representando um mundo perfeito e estão lá para ser admiradas, afetando quem as vê sem ser afetadas. No mundo da fotografia de moda, até a dor é mais pungente, mas sempre pode ser redimida pela beleza do quadro. Enquanto isso, quem vê as fotos de moda está na banalidade suprema do seu lar, ou de um consultório, ou até mesmo de um salão — nos bastidores da beleza, por assim dizer. Agora, nas fotografias de mulheres para homens, as mulheres aparecem como objetos. Não estão lá para ser admiradas, mas para ser usadas, seja via onanismo, seja via o sonho de possuí-las, o que é a mesma coisa. Quando uma mulher que se considera chique (e todas se consideram) demonstra ressentir-se de outra, normalmente é porque a outra está se apresentando como objeto. Quando essa mulher chique vê outra que ela considera um modelo melhor, ela sente inveja. E, é claro, jamais admite isso. Porque só as pessoas vulgares e ridículas, aquelas que são afetadas pelos outros, sentem inveja. O fato de todos — e isso vale para homens também — quererem ser modelos leva a uma competição universal de indiferença.
A quase totalidade das obras artísticas, de novelas da Globo a poemas ininteligíveis, podem ser explicados como projeção de um duplo angélico. Uma novela da Globo traz duplos angélicos para pessoas de pobreza cognitiva (pobreza causada por preguiça mental, sei lá — isso é irrelevante agora). Um espectador contumaz de novelas concebe a versão perfeita de si mesmo como alguém rico, de vida fácil, que freqüenta os lugares da moda, enfrenta suas dificuldades com altivez, cercado dos melhores amigos que existem, e termina bem no final. A função do vilão é apenas tentar atrapalhar a vida das pessoas perfeitas e ser esmagado, reforçando a identidade do duplo angélico.

Uma pessoa cognitivamente mais sofisticada prefere uma série americana como House. O Dr. House é um duplo angélico de quem se acha inteligente. Não só ele resolve todos os casos, como tem status especial diante dos outros personagens e, enquanto os outros sempre acham que podem manipulá-lo, ele é que os manipula — ele é que afeta sem ser afetado, como já discuti no texto “O transgressor eficiente”. Dr. House nunca muda. É verdade que o criador da série, David Shore, disse que a diferença entre o protagonista de uma série de TV e o de um filme é que o primeiro nunca muda, mas o segundo muda. Pode ser um princípio de trabalho, mas isso não invalida o que estou dizendo, porque estou tentando explicar apenas porque o público gosta de House.
Pessoas que se acham ainda mais sofisticadas gostam de séries ou romances ou poemas etc. em que não haja um modelo com o qual identificar-se, porque elas se acham tão sofisticadas que não admiram ninguém — sabem que o papel de modelos cabe somente a elas. Uma série como The Wire depende de o espectador colocar-se por cima de todos os personagens para apreciá-la. O mesmo vale para Deadwood. Mesmo o trabalho excelente dos atores faz com que você goste dos personagens como quem gosta de um bicho de estimação.
(A propósito: eu gosto, e muito, de House, The Wire e Deadwood.)
Quem se acha sofisticadíssimo prefere a arte ininteligível. Confesso que já matutei muito a respeito da existência da arte ininteligível. Por que as pessoas escreveriam poemas que não significam nada exceto para elas mesmas, por que imaginariam mundos estáticos com exóticas combinações de elementos? Pela mesma razão que as pessoas que gostam de um artista semi-oculto preferem que ele continue assim. Todos temos uma consciência perene de que este momento, este aqui que estamos vivendo, imediatamente agora, é banal. É sempre o outro tempo, o outro mundo que parece bom — aquele tempo que será uma sucessão infinita de momentos perfeitos, seja na chiqueza dos restaurantes da moda, na deliciosa dureza da onipotência diagnóstica, ou na gélida e altiva superioridade de quem, a essa altura, só pode observar o baixo mundo dos vis mortais. Os sofisticadíssimos querem olhar para todos, todos mesmo, e imaginar algo que ninguém possa imaginar, uma resposta peculiaríssima a uma visão de mundo peculiaríssima. É a idéia mesma de um terreno comum com qualquer outra pessoa que causa repugnância.
Agora, o duplo angélico é sempre negociado e particular; pouca gente quer ser um novo Leonardo da Vinci, atuando em todas as áreas. Algumas pessoas querem o prêmio Nobel; outras, um emprego na TV; outras, ainda, apenas ser magras e ter roupas bonitas. Quando se fala em auto-imagem, normalmente se fala da versão perfeita que se concebe para si mesmo. Então surge a percepção de que essa versão também é determinada pelos outros — alguém disse a você alguma vez que você era inteligente ou escrevia bem, ou era bonita e devia ser modelo, ou sei lá o quê, e você acreditou. Em algum momento da sua vida, você percebe que essa auto-imagem fracassa. Você não é tão glamuroso quanto queria. Se você é mulher, sabe que as personagens de Sex and the City só existem na TV — na vida real, elas se casam com homens pouco seletivos e/ou ficam amargas. Se você é homem, ou mulher, e quis basear sua vida numa inteligência transgressora como a do Dr. House, manipulando todo mundo, já viu que muitos fatores lhe escapam. Se você quer apenas assistir e dar uma de superior, você tem um blog que só serve para jogar ácido em todo mundo, enquanto na famosa vida real todo mundo só te acha um ressentido. E se você se acha the ultimate bolacha do pacote, nem você se entende, mas ainda assim você espera uma bolsa do governo, porque voluntariamente ninguém vai pagar por algo ininteligível.
O efeito maléfico de muitas obras de arte, de filmes mais bobos a Sex and the City e House, é perpetuar a impressão de que a vida ideal é aquela em que bancamos o nosso duplo angélico e vencemos o mundo. Só que aqueles protagonistas são só personagens de um roteiro, vividos por atores que têm à disposição os melhores fotógrafos, maquiadores etc. do mundo. Todos esses personagens vivem segundo a própria hybris, zombando das circunstâncias e inventando as próprias regras, criando o próprio mundo auto-suficiente, seja repleto de sapatos e roupas, seja repleto de inteligência e perspicácia. Eu jamais diria que não se deve assistir a essas séries; mas, como já falei, se você sabe que comer um determinado alimento tem um efeito sobre seu corpo, também deveria saber que consumir um determinado produto cultural tem um efeito sobre a sua alma, e ficar atento. Gostar de séries e filmes em que o duplo angélico vence o mundo mau, com essa estrutura paranóica (eu sou bom, os outros são maus), é a mesma coisa que gostar de brigadeiro. É bom, é simples, tem efeito rápido, mas engorda. O brigadeiro engorda o corpo e o duplo angélico engorda a alma. Você fica cheio de si.

Posso falar de duas obras recentes em que o duplo angélico é questionado. A primeira é o livro O animal agonizante, de Philip Roth. Agora percebo que o título é ainda mais preciso do que eu imaginava. O protagonista, um professor universitário, concebe a vida segundo uma perspectiva puramente física, animal: o negócio é ter prazer e colecionar alunas no quarto. Mas, se o prazer depende do corpo, e se a vida perfeita depende do corpo, o que fazer quando o corpo se vai? O livro não tem resposta nem redenção. Algumas pessoas podem achar corajoso admitir um impasse; eu me pergunto por que eu precisaria de coragem para admitir que estou agora olhando para a tela do computador, para admitir que o que está na minha frente é o que está na minha frente.
A outra obra, que vai muito além do livro de Roth, é o filme Two lovers, de James Gray. Um sujeito coloca sua vida nas mãos de uma mulher de prestígio — ela tem prestígio porque o convida a entrar em seu mundo, mas não o suficiente, como se ficasse para sempre na vitrine. Você pode ver e sonhar, mas não pode encostar nem possuir. Ao final, o sujeito fica com outra mulher, uma oportunidade mais encaixada em sua realidade. Minha única crítica ao filme é que a transição de uma mulher para outra se dá em mais ou menos cinco minutos, e isso é muito pouco tempo para a verdadeira noche oscura em que consiste essa transição. Não se cai na real em cinco minutos. Não se abandona a idéia e a esperança do duplo angélico pessoal, em que se possui certeiramente os objetos de maior prestígio, em nome da famosa vida real, assim tão rapidamente.
Tudo isso significa que a auto-imagem deve ser abandonada? Francamente, sim. O que quero dizer é que a busca direta por uma auto-imagem que tenha um fundamento absolutamente próprio é uma futilidade. Ela vai sempre redundar na criação de um duplo angélico, porque ser “você mesmo” é “não ser os outros”, e você quer que esse fundamento tenha o poder de afetar os outros sem que você seja afetado. Perguntar-se por um fundamento do eu é a mesma coisa que perguntar: “em que ponto eu apenas afeto e ninguém me afeta?” Eu acho que é preciso abdicar dessa pergunta, e que alguma coisa verdadeiramente sua apenas surgirá quando você parar de pensar no assunto e se concentar em fazer alguma coisa muito bem. Todos os grandes autores, por exemplo, estavam obcecados pelos assuntos de que tratavam, não por “deixar sua marca pessoal”. Essa marca veio como decorrência de seu amor por outra coisa, exatamente como o orgasmo vem em decorrência do desejo pela outra pessoa, e não do desejo pelo orgasmo; ou como o bom paladar vem do desejo do cozinheiro de agradar o cliente, e não do desejo de impor sua própria concepção de comida. Nossa imagem, aquela que afeta mais aos outros, e positivamente (já repararam que o mal sempre parece impessoal? Isso vem de seu caráter de privação), aparece quando nos preocupamos com as coisas que fazemos e com os próprios outros, e não quando tentamos fazer algo diretamente pessoal.
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