Scherer de um lado, Dolan de outro?

Ontem, Sandro Magister, com um tom que não me parece muito comum em seus artigos (link para a tradução em português do indispensável Fratres; lembro que Magister publica em italiano, inglês, francês e espanhol), começou a soltar informações e a especular, citando como fontes apenas “vazamentos”. O que achei interessante foi que Robert Moynihan ecoou algumas das especulações, então vale um pequeno comentário.

Mas antes de tudo, o comentário mais importante é: pelo menos nos dois últimos conclaves, todos os jornalistas e vaticanistas erraram muito feio. Ninguém esperava o papa polonês, ninguém esperava o papa alemão. Acredito que isso deveria bastar para colocar alguma humildade nas especulações. Porém, Magister e Moynihan são jornalistas com público garantido; se eles especularem e acertarem, ponto para eles; se errarem, você vai parar de lê-los? Nem eu.

Magister (parece um nome de personagem, Sandro Professor) ainda traz uma informação interessante (supondo que seja verdadeira): o número de votos de cada escrutínio do último conclave, e ainda números dos escrutínios de alguns conclaves do século XX, todos confirmando, supostamente, que o conclave sempre começa com um favorito e que esse favorito ganha. E vou insistir: Ratzinger teria saído como favorito desde o primeiro escrutínio e isso confirma o descompasso entre a mente da imprensa, inclusive dos vaticanistas mais sérios, e a mente do colégio de cardeais.

O que Magister diz, em suma, é que o cardeal Sodano estaria por trás de uma articulação para eleger Dom Odilo Scherer como papa. Assim, ele seria o candidato, digamos, da continuidade. Mas que ninguém por isso pense em Dom Odilo como uma marionete etc. Pouco sabemos do reservado Dom Odilo – mas sua defesa da Cruz na PUC de São Paulo é admirável. Magister também diz que Dom Odilo não é popular no Brasil e que sua candidatura à presidência da CNBB foi sumariamente vetada duas vezes (quem tiver fontes e quiser me escrever, agradeço). Nós aqui no Brasil conhecemos a CNBB e podemos tirar nossas próprias conclusões.

(Sensacionalismo sobrenatural: pelas famosas profecias de São Malaquias, tão precisas quanto as de Nostradamus, o próximo papa seria “Pedro Romano”. Dom Odilo se chama Dom Odilo Pedro Scherer.)

Do outro lado estariam o cardeal Dolan, arcebispo de Nova York, e o cardeal O’Malley, de Boston, que ainda fala português e espanhol. Mas o mais interessante é que estaria delineada uma disputa entre uma linha “ratzingeriana” (que ainda incluiria Ouellet) e outra “não-ratzingeriana”.

Agora, se os cardeais de maneira geral realmente pensarem que a Cúria está desgovernada e que a renovação é necessária, é difícil que Sodano vença. Simplesmente porque existem mais cardeais fora da Cúria do que dentro dela; mais cardeais fora da Itália do que dentro dela. Aliás, mesmo entre vaticanistas, duas coisas parecem ser ponto pacífico: João Paulo II não estava nem aí para a Cúria, e Bento XVI num dado momento desistiu de tentar reformar a Cúria.

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Vale fazer uma observação sobre o cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, que sempre vejo nas listas de papáveis. Do ponto de vista da Igreja, ele é… controverso. Teria anunciado o donwsizing da Igreja em Viena; arrumado confusão com o bispo de Medjugorje; e dado alguma declaração que rendeu, segundo li (quisera eu achar a fonte, mas creiam em mim), uma bronca tripla e conjunta, do papa Bento XVI, do cardeal Bertone (secretário de Estado) e do cardeal Sodano (decano do colégio de cardeais), que o esperavam numa salinha, aparentemente já de cara amarrada. A reunião do alto comando vaticano com o cardeal é confirmada por fontes oficiais (cliquem nesse link, vale muito a pena). O teor dela é que circulou entre os vaticanistas. E esse é o tipo de notícia que não circula na imprensa não-especializada, mas que circula entre os cardeais. Os cardeais jamais vão desrespeitá-lo. Mas daí a colocá-lo no trono de Pedro é outra história.

Por isso, se alguém quiser uma lista de papáveis com algum grau de realismo, precisa procurar esse tipo de informação. É preciso um currículo impecável. E nesse sentido mais vale ser alguém de quem se sabe pouco, como Dom Odilo, do que alguém de quem se sabe muito.

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Mais de uma pessoa me escreveu como que pedindo um destaque maior para Antonio Socci, que teria previsto a renúncia do papa. Vejam: sem querer desmerecer Socci (de modo algum!), desde Pio XII todos os papas prepararam documentos de renúncia. Entendo que Socci queira enfatizar que disse que Bento XVI renunciaria. Mas, de modo geral, a posição de prudência em relação a esse tipo de afirmação ainda me parece mais recomendada.

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Num ponto concordo com Sidney e Carlos: é bad form desejar que Chávez vá para o inferno. Amai os vossos inimigos etc.

Sobre o conclave que se aproxima

Admito que fiquei envaidecido quando vi Robert Moynihan fazer duas observações semelhantes às que eu fizera duas semanas antes: uma comparação entre os conclaves de 2005 e de 2013 nos termos que propus, e uma análise de como o contato entre os cardeais vai interferir no conclave.

Um problema de falar sobre o conclave é que se corre o risco de tentar ser mais esperto do que o colégio de cardeais e, em última análise, do que o próprio Espírito Santo.

Por isso, o melhor é tentar ser humilde e ater-se ao óbvio.

Os cardeais já estão se reunindo a portas fechadas. As reuniões formais só acontecem de manhã. Como o próprio Moynihan observou, isso significa que os cardeais estão querendo mais tempo para conversas informais. O conclave, por sua vez, é uma eleição formal e pode ser resolvido até no mesmo dia. Daí que, com tantas reuniões entre os cardeais, consigo imaginar dois cenários extremos: de um lado, o conclave já começa com um papa informalmente eleito; de outro, os cardeais veem que os problemas da Igreja são um buraco sem fundo e o conclave se arrasta. Francamente, não acredito muito nessa segunda hipótese, lembrando que ela é uma hipótese extrema.

Como já falei, a maior parte dos cardeais não tem qualquer função na Cúria Romana, e todos sabem que o anel do Pescador dá poderes de monarca absoluto. Mais ainda, se alguém quiser atribuir a Ratzinger um maquiavelismo genial que eu mesmo não lhe atribuo, sua renúncia gerou a narrativa do papa bom contra a Cúria corrupta. Isso dá força para qualquer cardeal de fora da Cúria. Num assunto como o conclave, quase tudo é misterioso, porque nem os mais tremendos vaticanistas têm acesso a dados fundamentais, mas eu arriscaria dizer que, se os grandes perdedores forem Sodano e Bertone, ninguém que tenha acompanhado o papado de Bento XVI vai ficar muito surpreso.

Por outro lado, o maior problema, que certamente afeta a mim mesmo, é acreditar que o conclave é pautado pelo que se lê na mídia. É um pouco inevitável que isso aconteça, porque tudo relacionado ao conclave é realizado em segredo. Ainda assim, é preciso manter sempre uma ressalva interior.

Sobre as coisas que saem na mídia, porém, é possível fazer alguns comentários, necessários porque os jornalistas aparentemente sequer se dão ao trabalho de pensar como alguém de dentro da Igreja.

Primeiro, a Igreja não é a Apple. A Apple pode ficar preocupada se as pessoas preferirem telefones Android aos iPhones, mas a Igreja não funciona assim, porque ela não está tentando gratificar a plateia em troca de dinheiro ou da ostentação de uma identidade. Eu sei, você acha que não, que a religião é mentira etc., mas será que você não acredita nem na sinceridade subjetiva?

Disso deriva outra coisa. O papa não será eleito por seu carisma potencial perante a plateia. Ontem mesmo li no jornal que Dom Odilo Scherer poderia ser eleito para reforçar a presença de Igreja na América Latina. O que leva alguém a escrever isso? Quem, senão Policarpo Quaresma, cogitaria converter-se porque o papa é da sua nacionalidade? A eleição de Ratzinger levou a um surto de catolicismo na Alemanha?

(Mas confesso que tive uma alucinação esses dias em que ouvia o nome de Dom Odilo anunciado na praça de São Pedro.)

Disso também deriva que, para os cardeais, pouca diferença faz que o papa seja negro, oriental ou o que for. Eu mesmo adoraria ver o cardeal Arinze eleito, ou Ranjith. Mas os cardeais realmente não vão pensar: “Caramba, hora de colocar um nigeriano no trono de São Pedro!”

Por fim, se há algo que dá genuinamente a impressão de um embate perpétuo entre Igreja e mundo, é a lenga-lenga que nunca para de sair na imprensa sobre exatamente… a Igreja e o mundo.

Saem aquelas afirmações gratuitas de que a Igreja perdeu fiéis porque não relaxou sua moral. Há o pressuposto de que a função da Igreja é falar o que as pessoas querem ouvir, e que a relação das pessoas com a religião é semelhante à que elas têm com seus carros, ou celulares etc.

Há aquelas afirmações que já pulo, por cansaço. A Igreja nunca vai aprovar o aborto, o divórcio, o casamento homossexual, a ordenação de mulheres (João Paulo II proibiu até que a ordenação de mulheres sequer fosse discutida). Nutrir uma vaga expectativa de que isso possa acontecer é condenar-se à frustração, isso supondo sinceridade da parte de quem diz esperar essas coisas. Mais ainda, a Igreja acha que ficar ouvindo essas reivindicações, ou ficar lendo que o próximo papa deveria ser um pouco mais parecido com um editorialista do New York Times, é apenas uma parte desprezível dos seus necessários incômodos terrestres. Eu imagino que os cardeais às vezes até se divirtam dando entrevistas: “Vou dizer ao jornalista que o papa tem de ser ‘um cara antenado’, ele vai botar isso em destaque!”

E continuemos a rezar.

Sobre o celibato clerical

Damian Thompson resolveu discutir o celibato dos padres. Só que, antes de eu entrar na discussão, preciso explicar uma coisa: o celibato dos padres não é um dos famosos “dogmas da Igreja Católica”. É apenas uma questão disciplinar. O papa pode acabar com o celibato obrigatório dos padres com uma mera canetada, sem qualquer abalo doutrinal. O celibato na Igreja Católica oficializou-se há cerca de mil anos e pode acabar, teoricamente, a qualquer momento.

Se um padre anglicano casado é ordenado padre católico, ele pode ser um padre católico casado. Nas igrejas ortodoxas orientais em que o “padre pode casar” e cujos sacramentos são considerados válidos pela Igreja Católica, não é exatamente o padre que pode casar. É o homem casado que pode ser ordenado padre. E esse padre casado não chegará a bispo. Mas vejam que o apóstolo Pedro, o primeiro papa, era casado. E, como até a Wikipedia sabe, na epístola a Timóteo, o apóstolo Paulo diz que o bispo deve ser “irrepreensível, marido de uma só mulher”. Então o negócio é meio complexo.

No indispensável O Sal da Terra, Peter Seewald pergunta ao então cardeal Ratzinger por que a Igreja Católica não libera o casamento para os padres. Ele, que certamente já tinha respondido mil vezes esse pergunta, e que já conhecia muito bem os problemas da Igreja, respondeu na lata: “Porque senão um mês depois eles pediriam também o divórcio.”

Essa resposta foge totalmente aos termos habituais do debate. É uma resposta eminentemente prática. Francamente, acho que conheço mais de um homem que só não entrou no seminário por rejeitar o celibato. Mas esses são os padres potenciais. A opinião de um zeloso cardeal que veio a ser papa sobre os padres já ordenados estava mais voltada para os problemas que seriam criados, não para os que talvez fossem resolvidos.

Por outro lado, tudo neste mundo é imperfeito. A solução de um problema sempre cria outros problemas que nem julgávamos existir. Se o próximo papa der o matrimônio aos sacerdotes, terá de estar preparado para os pedidos de divórcio – ou de anulação – que vão inundar o Vaticano. (Porque toda anulação de casamento é aprovada pelo Vaticano, veja bem. Parece até que a Igreja Católica inventou a burocracia.) E há ainda a questão da fidelidade, presente nos sacramentos do matrimônio e da ordem. Se a Igreja viu que o sacerdote não foi fiel a seu voto de castidade, por que ela deveria supor que ele seria fiel à sua esposa?

No debate, porém, observo que o argumento de que o celibato é causa da pedofilia é totalmente furado. Parafraseando uma expressão inglesa, há um elefante que ninguém enxerga, que é o fato de que os casos de pedofilia são eminentemente homossexuais. Não consigo entender como um homem heterossexual privado da companhia de uma mulher vá passar a desejar meninos púberes ou impúberes. Muitos homens vivem em celibato forçado (isso é, não são atraentes para praticamente mulher nenhuma) e nem por isso passam a desejar garotinhos.

Pessoalmente sou favorável ao fim do celibato obrigatório, mesmo que seja seguido o costume oriental de apenas celibatários serem ordenados bispos etc. Isso porque eu acho que, no dia-a-dia, nas paróquias, está faltando uma certa testosterona. Se os padres tivessem esposas, talvez a religião parecesse um pouco menos uma coisa de tia. Mas não sou cardeal nem nada, eu não tenho de ler relatórios sobre a situação da Igreja no mundo inteiro, e estou levando em conta apenas aquilo que vejo no Brasil. Lembro que na paróquia que frequentei em Paris, por exemplo, não vi problema nenhum.

P. S.: Sobre a questão “testosterona x Igreja”, recomendo a leitura de Goodbye, Good Men, de Michael S. Rose.

Pecado & preconceito

Anteontem, pequei gravemente.

Li uma notícia horrenda e achei que fosse verdade. A notícia foi a história que saiu na revista italiana Panorama, e depois no jornal italiano La Reppublica, e finalmente chegou à imprensa brasileira – e eu continuo me perguntando: o que faz um correspondente, se nunca temos nada diferente do que sai na grande imprensa estrangeira? Se nunca temos as coisas em português nem ao mesmo tempo em que saem na imprensa estrangeira?

Mas retorno ao assunto. Era a história do grande “lobby gay” corrupto dentro do Vaticano. Do tal dossiê que teria sido entregue ao Papa, feito por três cardeais. E pouco depois ainda recebi um link para um texto no blog Rorate Caeli que seria a tradução inglesa de um artigo em polonês publicado há alguns meses, com teor semelhante.

O problema? Isso tudo concordava com meus preconceitos. Tenho predisposição para crer que o papa é bom, mas há cardeais malvados, e suas maldades explicariam tudo. Aí estaria o bode expiatório. Eliminem-se os cardeais malvados, o tal “lobby gay”, e poderemos voltar ao mundo maravilhoso da tradição.

Robert Moynihan, que já recomendei, foi o único jornalista que teve um lampejo de sensatez. E mesmo esse lampejo lhe foi trazido por um padre. Creio que ele mesmo se deixou levar pela história no primeiro dia. No dia seguinte, publicou seu lampejo, e de certo modo se retratou.

Espero que o leitor saiba inglês e possa ler o desmonte da matéria de La Reppublica no texto de Moynihan. Mas posso adiantar que a matéria não cita fontes, não corrobora nenhuma das informações. Nesse sentido, ele vai na linha da peça de teatro O Vigário, que inventou o mito do Pio XII antissemita. Veja aí também o preconceito. Parece-lhe verossímil que o papa fosse antissemita em pleno século XX porque você não gosta do papa.

Tantos pecados estão envolvidos aqui. Primeiro, a vaidade. Quem crê na existência de algo como um “lobby gay” só precisa de um jornal que imprima a notícia de sua existência, mesmo que nenhuma informação seja corroborada. Assim funciona a sedução: você ouviu o que queria ouvir. Depois vem a ira contra o bode expiatório finalmente encontrado. E depois a vaidade de se achar mais papa do que o papa. Afinal, se o papa tem o dossiê, ele deveria fazer x ou y. Mas não somos católicos? Não vamos dar um voto de confiança nem ao papa? (Como filotradicionalista, eu sei que às vezes é preciso engolir uns sapos bem gordinhos. Mas humildade tem sim algo a ver com humilhação.)

O leitor há de perceber que aqui há dois assuntos. Até agora falei da desonestidade de um jornal de publicar acusações graves sem qualquer corroboração, sem qualquer sinal de prova, e de como somos cúmplices de tudo isso ao acreditar, só porque assim podemos separar, de um lado, os pervertidos cardeais, e, de outro, o papa e seus amigos do bem.

Mas resta a questão do dossiê. E se existir algo assim? O fato de um Robert Moynihan aparentemente ter caído na história por 24 horas mostra o quanto ela confirmaria as predisposições que nós, conservadores, temos, como a visão do papa que tenta de maneira discreta resolver problemas terríveis. Como eu disse hoje a um amigo, o pessoal da SSPX está preocupado com violão na missa e o papa pode estar preocupado com coisas muito piores. Até porque, e vale o parêntese, Ratzinger é um dos homens mais mansos que jamais existiram. A antiga visão de Ratzinger como Panzerkardinal, como “doberman de João Paulo II” é totalmente furada. É a reclamação do burraldo que se vê diante de uma inteligência e de uma alma superiores. Se Ratzinger, então, já falou em “imundícies” e em “gravíssimos pecados” dentro da Igreja, pode ter certeza de que essas palavras na boca dele têm um peso diferente. E ele é padre. É confessor. Como o padre Brown, o personagem de Chesterton, gosta de enfatizar, pouca maldade há que um confessor já não tenha ouvido. Mas também posso apelar para os preconceitos do leitor: você acha que, após décadas na Cúria Romana, ele não precisaria estar muito impressionado para usar palavras tão duras?

Sucessão papal: duas diferenças entre 2005 e 2013

A primeira diferença que noto entre a situação de agora e a de 2005 é que em 2005 havia um cardeal “estrela”, um cardeal high profile: Ratzinger. Assim, pode ter sido uma surpresa que ele tenha sido eleito, mas por outro lado não foi. Não havia nenhum outro cardeal que combinasse uma carreira impecável, uma obra influente e a experiência na Cúria. Ratzinger provavelmente era o único cardeal cujo nome até aqueles desinteressados por religião conheceriam. Só para dar uma ideia, bem antes do conclave de 2005 já existia o site do Ratzinger Fan Club. O status de celebridade de Ratzinger era perfeitamente devido. O homem não apenas leu tudo (inclusive o Antigo e o Novo Testamentos nos originais hebraico e grego) como nunca redigiu uma linha que parecesse burocrática, automática, irrefletida.

Essas considerações podem dar a impressão de que a eleição de Ratzinger era totalmente previsível – mas não era. Ninguém previu. Os “vaticanistas” disseram que a homilia com que Ratzinger abriu o conclave, e que ficou famosa pela expressão “ditadura do relativismo”, era um sinal de que o homem não queria ser papa e estava contra o mundo. Francamente, até eu tendi a interpretar as coisas desse modo. Mas esse é o maior risco: mesmo que achemos que não, vamos interpretando as coisas com os olhos do “mundo”. Se o homem diz algo que parece contrariar a plateia imaginária que temos na cabeça, a “opinião pública”, está se suicidando. Se joga algo para a plateia, parece alguém digno de louvor. Não é que pensar assim seja exatamente errado. O mais devido é dizer que essas categorias simplesmente não se aplicam a um conclave, nem que seja porque a plateia em questão é composta de pouco menos de 120 pessoas que provavelmente têm fortes individualidades ao mesmo tempo em que julgam que a eleição é guiada pelo Espírito Santo. Juro para vocês que a opinião do New York Times não é levada em conta na Capela Sistina.

Por isso, mesmo que hoje não exista ninguém com a projeção de Ratzinger, e mesmo que alguns cardeais tenham mais destaque do que outros – Arinze, Ouellet, Ravasi, Scola, Kasper – , esse destaque não garante nada.

A segunda diferença que noto vem de um detalhe que não vi muito comentado. João Paulo II realizou 9 consistórios em 27 anos de pontificado. Bento XVI realizou 7 consistórios em 8 anos. Um consistório nada mais é do que uma reunião de cardeais em Roma, na qual os cardeais também costumam ser “criados”, ou nomeados. Bento XVI fez isso por achar que os cardeais deveriam conversar mais entre si. E provavelmente anunciou a renúncia na abertura do último consistório que convocou para permitir que os cardeais já passassem bastante tempo em Roma conversando.

Isso significa que, ao contrário dos conclaves anteriores, em que os cardeais muitas vezes só se conheciam de vista, na melhor das hipóteses, agora os cardeais vão se conhecer bem melhor. E mais: estando em Roma, vão começar a saber mais dos problemas da diocese e da Igreja como um todo. Porque a Igreja é totalmente separada do ponto de vista administrativo. O Papa pode ter autoridade até para nomear os diáconos da última paróquia do quarto mundo (embora ele se restrinja a concordar com a nomeação de bispos), mas administrativamente essa paróquia está sozinha. Ela é que se sustenta. Ela é que lida com a justiça, com as autoridades civis locais. Por isso, a chance de um cardeal, ainda mais de um cardeal que também é bispo diocesano – e, se o cardeal não está aposentado, nem trabalha na Cúria, nem em alguma missão louca dada pelo papa, ele provavelmente é arcebispo de algum lugar e está afundado até a cabeça em questões administrativas – não saber praticamente nada dos problemas da Igreja universal é bem grande. E, diria eu, talvez não seja pequena a chance de ele ficar sabendo e achar que esses problemas são, digamos, grandes demais para que ele os queira para si.

Vou dar um pequeno exemplo: imagine um escândalo financeiro do IOR, o Instituto para Obras Religiosas, mais conhecido como Banco do Vaticano. Esse “um escândalo”, aliás, mais parece um escândalo permanente. Ele envolve cardeais, políticos, a máfia, outros banqueiros… E você, cardeal de não sei onde, não tinha nada a ver com isso, e só sabia por ouvir falar. Você pode também não ter nem experiência na Cúria. Como papa, você passa a estar no centro do problema. Caro leitor: tente pensar que uma coisa é eu falar disso em termos abstratos, e outra é conhecer o problema em termos de cifras, pessoas… Vamos dizer que nem todos podem olhar essa situação e achar que têm estômago e fé suficiente para lidar com ela.

Existem tantas previsões hoje que provavelmente alguma delas estará certa. Se der Ouellet, dirão que ele já era papável; se der Scola, dirão que o papa elegeu seu sucessor; se der Arinze ou Turkson, dirão que a igreja quer um rosto negro (como se o maior mérito de alguém fosse a cor da pele, e você ainda fosse otário o suficiente de achar que os cardeais realmente ligam para esse critério). Eu só acho difícil que seja eleito alguém associado a algum escândalo feio. Fora isso, pode ser qualquer um. E o melhor que se pode fazer é tentar entender como a Igreja funciona e vai continuar funcionando independentemente de quem usar o anel do Pescador. O conclave é misterioso. A estrutura da Igreja é pública.

Guia mínimo de fontes imediatas para a sucessão papal

Outro dia percebi que, apesar de o Brasil supostamente ser “o maior país católico do mundo”, a grande imprensa não conta com um único jornalista católico que possa dar um panorama razoável de acontecimentos religiosos. Esse jornalista teria como modelo Damian Thompson, do Telegraph, que fala de questões católicas e anglicanas. (Não me falem em Luiz Paulo Horta, por favor.) Ninguém chama um jornalista que tenha pouco interesse por tecnologia, e que mal saiba usar o seu computador, para cobrir lançamentos e disputas da área de tecnologia, mas por razões insondáveis parece que qualquer pessoa pode falar sobre questões religiosas.

Na ausência do nosso Damian Thompson, vou citar aqui, para que o leitor possa acompanhar os fatos, só algumas fontes que trazem mais fatos do que reflexões. Aviso logo que é preciso entender inglês e italiano. Outras línguas também fazem bem, sobretudo o francês (indispensável para quem desejar se aventurar pelas questões do tradicionalismo). Na hora dos grandes momentos, um latim não faz mal. A jornalista que deu o furo da renúncia chegou primeiro porque entendia latim. E o latim eclesiástico é realmente mais fácil do que o clássico. Em 2005, o Papa Bento XVI fez em latim a sua primeira homilia.

Outra advertência obviamente diz respeito aos conhecimentos pregressos. É preciso conhecer a história da Igreja, os personagens do século XX – inclusive os mais curiosos, como o padre Malachi Martin, cujas obras podem ser proveitosas se os leitores tiverem a prudência necessária. Se os jornalistas conhecessem um pouco melhor o funcionamento da Igreja, parariam de repetir que “Bento XVI nomeou [quando o verbo ideal seria “criar”; cardeais são “criados”] mais da metade do colégio de cardeais”. Um papa teria de ficar muito pouco tempo no trono para que isso não acontecesse. Solta, a informação dá a entender que Bento XVI fez uma jogada para que fosse eleito um filhote ideológico seu.

E uma última advertência para o leitor desavisado é que, se você for católico, tiver amigos católicos, conhecer sacerdotes, bispos etc. as informações simplesmente chegam até você. Nas minhas relações pessoais, além disso tudo, tenho grande proximidade de pessoas de outras denominações cristãs. Por isso, frequentemente recebo e-mails e comentários preciosos.

Assim, as fontes a seguir são as que eu posso recomendar para alguém que deseja acompanhar o fim do papado de Bento XVI e a sucessão papal que ora se inicia. Porque, apesar de oficialmente proibidas pela Igreja (para os católicos, claro), é claro que as especulações já começaram. E vale dizer que, em 2005, 100% dos “vaticanistas” que li, inclusive os entrevistados por jornais brasileiros, disseram que Ratzinger tinha chutado o balde com a homilia de abertura do conclave, passando a mensagem de que não queria ser eleito.

O guia

1. Começando pelo óbvio, é preciso ler sempre o site do Vaticano (que aliás mantém seu charme de “primórdios da web”) e o da Rádio Vaticana. Não acompanhar a parte oficial e pública é como fazer jornalismo político e não ler os atos oficiais do governo.

Porém, sem um bom conhecimento do assunto, ficam perdidas as alusões e as entrelinhas, lembrando que às vezes uma ausência pode ser bastante significativa. Seria como comentar uma lei e não falar do contexto em que ela foi produzida.

2. A Zenit funciona, na minha opinião, como uma espécie de agência extra-oficial. Quer dizer, claro que não é, é uma organização privada não-subordinada à hierarquia. Mas o tom dela é normalmente neutro, e ela reflete opiniões de diversos lugares do mundo. Nem todos os textos são traduzidos em todos os idiomas, então dê uma olhada em todos os idiomas que você conseguir ler.

3. Os anos passam, e a melhor fonte de análise e de comentários continua a ser, de longe, Sandro Magister. Suas colunas saem em quatro línguas (inglês inclusive) e ele também mantém um blog em italiano.

4. Gosto demais de dois blogs: Whispers in the Loggia, de Rocco Palmo, e The American Papist, de Thomas Peters. E por quê? Porque eles sempre sabem selecionar as informações mais relevantes, ainda que evitem as posições escandalosas. Aliás, é preciso dizer que, por respeito, nenhum jornalista ou blogueiro católico vai falar mal de um cardeal, por exemplo. Aí é preciso ler nas entrelinhas. Por exemplo, muitas vezes no catolicismo vão ser usadas fórmulas-chave. O Papa Bento XVI fala em “hermenêutica da continuidade”. É possível dizer que ele está se protegendo com a pompa, para poder dizer algo como “o Vaticano II não liberou o violão na missa”.

4.1. E você também precisa acompanhar no Twitter os mesmos Rocco Palmo e Thomas Peters. Exatamente porque eles repassam o que há de mais interessante. Se eu não indicasse essas duas contas deles, teria de ficar enumerando outras e outras fontes, e falando delas. O objetivo é dar um guia mínimo, não sobrecarregar quem quer se informar, e muito menos escancarar para o mundo que sou meio que um junkie de notícias vaticanas / eclesiásticas.

5. O já citado Damian Thompson.

6. Robert Moynihan também sempre vê as coisas por um ângulo interessante, e tem muitos contatos. Recentemente ele recordou o quanto chamou a sua atenção o fato de que Bento XVI depositou seu pálio no túmulo de São Celestino V, um dos papas a renunciar. E ainda colocou uma foto desse momento.

7. Como o último lugar tem um destaque, cito, no Brasil, o blog Fratres in Unum, que tem viés mais conservador e tradicionalista. Não digo isso de maneira ruim. É que há certas questões que interessam mais a conservadores e tradicionalistas, como a da liturgia tradicional e a da união com a SSPX, que recebem destaque ali. E, mesmo você não sendo conservador nem tradicionalista, se quiser conhecer os fatos das disputas, vai encontrá-los. No blog, sempre há coisas relevantes, sobretudo nos últimos dias. Está indispensável.

Um problema para todos os futuros Papas?

O beato João Paulo II foi o primeiro Papa a conviver com avanços da medicina que permitiram que sua vida fosse muito estendida. Assim como diversas outras pessoas de sua geração, e que dispunham de atendimento médico de primeira qualidade, ele pôde viver bem mais do que poderia ter vivido alguém em décadas anteriores. Contudo, é razoável perguntar se, durante todos aqueles anos em que a saúde do Papa esteve precária, o governo da Igreja não ficou de algum modo abalado.

Não cabe a mim julgar o sucessor de Pedro. Mas aqueles cardeais que puderam acompanhar de perto os anos finais de João Paulo II talvez tenham, em seu coração, estimado que nem sempre o Papa estava apto a, digamos, exercer suas funções da melhor maneira possível. Afinal, uma coisa é permanecer vivo e poder preparar a própria morte; outra é permanecer vivo e capaz de governar a Igreja.

Quando Bento XVI renuncia por causa da idade – e dia 20 de janeiro eu mesmo estive na Praça de São Pedro para o Angelus e achei sua voz bastante debilitada – , pergunto-me se ele mesmo não estava pensando em seu antecessor, e desejando que as muitas pessoas que dependem do Papa não fossem vitimadas por sua situação precária.

A menos que tenha uma morte fulminante, ou uma doença rápida, o sucessor de Bento XVI se verá na mesma situação: a medicina e os cuidados podem mantê-lo vivo, mas daí a ele ser capaz de enfrentar a carga de trabalho do papado são outros quinhentos. E então, que fazer? O aumento da expectativa de vida vai criar a tendência de renúncia dos Papas? Será que, após o choque da renúncia de Bento XVI, virá apenas a mera expectativa de que os próximos Papas saibam a hora de parar? Em vez de se perguntar se devem renunciar, vão passar a rezar apenas para pedir a graça de saber quando renunciar?

Oremos pelo Papa Bento XVI.

Na França católica

O que me motiva a escrever o que se seguirá é o passado; o passado de grande denúncia de coisas modernosas da Igreja, e o desejo de refletir sobre o quanto é fácil esperar que os outros sejam isso ou aquilo, e o quanto, percebendo ou não, é fácil fazer com que o nosso bem-estar dependa do que projetamos nesses mesmos outros.

A verdade é que estou em Paris, onde fico até meados de janeiro. Hoje pela primeira vez fui à missa no rito novo (ou ordinário), na mesma igreja onde já tinha ido assistir ao rito tradicional, isso na fria noite da última quarta – fui logo suspeitando que não tinha calefação na igreja ao ver que ninguém tinha tirado o casaco. Hoje, apesar do frio, de estar um daqueles gélidos dias ensolarados típicos do inverno, e de eu mesmo não ter tirado o casaco, fiquei felicíssimo ao assistir àquela missa: o coral era impecável, entoando suas polifonias em latim; a congregação era composta sobretudo de jovens casais com pencas de filhos pequenos; o sermão do padre foi breve, simples e católico. Depois da missa, os fieis que haviam trazido comidas reuniram-se para um almoço, um brunch ou algo assim, o que aliás também é comum em certas igrejas do Rio de Janeiro.

Pode-se escrever páginas e páginas sobre a decadência da Europa, do Ocidente, do cristianismo; pode-se perder dias e noites amargurados com algo distante da experiência, algo que hoje me parece uma espécie de feitiço, em vez de olhar para si próprio, para os próprios pecados, e para as pessoas imediatamente à sua volta, buscando uma atitude de gratidão. Que há quem cometa abusos, na liturgia e fora dela, bem, por mais que admire e consterne, não deveria ao menos consternar por tanto tempo, sob o risco de petrificar a alma. Valeria perguntar: e se todas as tradições que você julga perdidas fossem subitamente restabelecidas por uma canetada papal, você deixaria de ser o idiota que é? Teremos nós outra obrigação além de sanar nossa própria idiotice?

Quem quiser pode pregar contra o Concílio Vaticano II, lançar suas invectivas, dar a entender que a Igreja se tornou um clube impuro demais para os próprios critérios de eugenia (pseudo-)intelectual e (pseudo-)moral. Vá lá, de repente tudo que a Cúria Romana deveria fazer seria te contratar como assessor. Mas quem quiser pode olhar uma pequena comunidade num bairro não exatamente central de Paris, e ver que, mesmo que aquilo que você queira seja sentir “que o cristianismo está vivo” para ficar mais motivado a entrar nesse clube – por só torcer para o time que está ganhando – , as condições parecem plenamente satisfeitas. Quisera eu poder trazer a boa notícia de que finalmente me converti; mas a boa notícia que trago é que encontrei, no rito latino, mais um ambiente que me parece moral, intelectual e esteticamente católico. E claro que eu mesmo não fico insensível a isso.

“Autores perigosos”

Muitos católicos já ouviram o alerta, acompanhado daquela expressão de benevolente preocupação: “Esse autor é perigoso.” “Esse livro é perigoso.” O pobre fiel ouve isso e já se pergunta se não está no caminho da perdição. Parece até que um Eric Voegelin – digamos – é na verdade uma espécie de Hugh Hefner intelectual, trazendo coelhinhas teóricas que perverterão a mente.

Quem não é católico (ou mesmo quem é) e vive num ambiente (quase todos) de exaltação da liberdade de pensamento, há de achar esse alerta “a coisa mais retrógrada do mundo”. Mas essa resposta é só um reflexo condicionado. Qualquer pessoa vai concordar que os livros podem ter efeitos na alma. E, se podem ter efeitos, esses efeitos podem ser bons ou maus. “Mas perigosos? Depende.”

Aí eu concordo com meu interlocutor imaginário. Se depende, depende do quê? Recordo um post recente de Bill Valicella, o Maverick Philosopher, que dizia que as pessoas são engabeladas por causa de seus próprios vícios. Você acha que é especial, por isso acredita no sedutor que lhe transmite essa mensagem. Você se deixa atiçar porque acha que seu desejo será satisfeito. E você pode ser “pervertido” por um “autor perigoso” porque o seu desejo de se achar inteligente, de encontrar alguma justificativa para alguma vontade sua, é maior do que o seu amor pela verdade.

Daí se segue algo tremendamente óbvio: de que adianta o exame das obras sem o auto-exame? De que adianta fazer uma pergunta sem saber (ou sem ao menos tentar saber) por que se faz essa pergunta? O espírito crítico direcionado apenas para fora permanece na adolescência.

Segue-se também outra conclusão, mais radical: sem esse auto-exame, qualquer autor ou livro pode ser perigoso. Quem quer uma sã doutrina para viver há de encontrá-la na primeira versão conveniente. Você é envergonhado, tímido? Cuidado com a sã doutrina moralista que te coloca na promotoria do Juízo Final. Você é descolado, um hedonista nato? Cuidado com a sã doutrina que te dispensa de examinar o que parece superior. Se, ao ler alguma coisa, você vê que o desdém que você julga sentir por esferas inteiras da experiência humana parece inteiramente justificado, olha aí o seu “autor perigoso” à espreita. Está te seduzindo.

Não custa observar, como complemento, que entre um desinteresse genuíno e uma afetação de indiferença há uma distância já compreendida no Ocidente desde a fábula de Esopo sobre a raposa e as uvas.

Tornando ao caso católico específico, é bom lembrar ainda que São Tomás de Aquino foi um autor perigoso. Após sua morte em 1274, sua obra foi proibida pelo Arcebispo de Paris. Desde o Concílio de Trento, quase trezentos anos depois, a influência de São Tomás no catolicismo só é comparável à de Santo Agostinho. E como São Tomás teria refutado tantas teses contrárias à verdade e/ou à fé sem conhecê-las? Sem tomar conhecimento de “autores perigosos”? Lembro ainda um outro autor perigosíssimo – Martinho Lutero. Quem é um grande especialista em Lutero? O Papa Bento XVI.

Ou, em uma frase, as tentações existem no mundo, mas só são vencidas dentro de cada um.

Três dias seguidos a mesma sentença – na primeira página do jornal

Num lance que, francamente, considero um dos mais cômicos desde minha alfabetização, meu querido Diário do Balneário – que também atende pelo codinome de O Globo – colocou, durante três dias seguidos, ao menos até agora, em sua primeira página – sim, na primeira página – a mesma sentença. Ei-la, senhores: “Vaticano enfraquece documento da Rio+20.”

Não, não foram informações diferentes sobre um mesmo assunto. Não foi a sequência de uma história em pleno desenvolvimento no mundo dos fatos. Foi apenas a mesmíssima sentença: “Vaticano enfraquece documento da Rio+20”. No primeiro dia, a sentença veio modalizada por um “até”. Até o Vaticano! Mas como assim? Será que o Diário do Balneário queria dizer que todo mundo foi lá e deu uma enfraquecida no documento, inclusive o Vaticano? Será que o Diário queria dar um tom dramático, shakesperiano, como alguém que perguntasse: até tu, Vaticano?

Mas o fato extraordinário – realmente um homem mordendo um cachorro – é a repetição da mesma informação na primeira página durante três dias seguidos. E a sentença se refere ao seguinte fato, também reportado no mesmo jornal: no documento final da Rio+20, em vez de aparecer a expressão “direitos reprodutivos”, aparece “saúde reprodutiva”.

Não creio que vão me chamar de louco e enraivecido especulador se eu observar que, caramba!, isso realmente deve ter incomodado alguém dentro do jornal. Terá sido um editor, um sócio talvez, que agora se sente chamado a lutar pelas grandes causas da humanidade, tendo esse sentimento sido despertado em seu peito por tão augusta conferência para a qual ele não foi chamado? Alguém que, de tanto tocar um sininho para chamar a empregada, só consegue compreender que o único mal do mundo é ter de sofrer as consequências de suas concupiscências? Ou terá sido alguma senhorita que, sendo ela própria testemunha de que a adoção das visões mais politicamente sustentáveis costuma corresponder à entrada naquela mesma elite a que pertence o editor? Esses personagens são interessantes, mesmo – e não vejo ninguém tentando retratá-los. O Brasil passa por uma troca de elites, é uma situação digna de O Leopardo de Lampedusa, e onde estão nossos romancistas?

Interessante também é que o jornal não conta como aconteceu essa pressão. É algo também muito curioso. Será que o Papa ameaçou os líderes presentes na Rio+20 com a excomunhão? Será que os líderes presentes, após uma conversão em massa ao catolicismo, quiseram mostrar serviço a seus confessores? Hoje o jornal menciona um discurso de Dom Odilo Scherer, que foi nomeado pelo Vaticano seu representante para a conferência. Se um discurso de Dom Odilo Scherer bastou para mudar um documento da ONU e para fazer os jornalistas de O Globo repetirem a sua revolta indignada por três dias seguidos na primeira página do jornal, o que posso fazer além de imaginar uma exortação digna de Jesus expulsando os demônios, que agora se contorcem confusos? Ou, se houver algum jornalista lendo este texto, será que você pode me explicar como foi que o Vaticano alterou o documento final da Rio+20?

Gracejos à parte, não é nem um pouco difícil imaginar qualquer editor explicando que, mesmo tendo repetido por três dias seguidos a mesma sentença em sua primeira página, o jornal não tem ideologia, não tem uma agenda, está apenas informando etc. etc. etc. Caro editor, você pode, dependendo da sua inteligência, ou do quanto já não distingue a sua cara da sua cara de pau, realmente esperar que os leitores acreditem nisso, o que eu julgaria algo que admira e consterna.

Por outro lado, eu mesmo creio que é preciso observar a polarização ideológica cada vez maior do Brasil. Nossas percepções da imprensa estão se americanizando, no sentido de que a ideia de um veículo vagamente neutro já não tem qualquer credibilidade, de nenhum dos lados do espectro – e, nesse sentido, a tríplice acusação de O Globo é apenas um exemplo cômico e caricato. No que diz respeito à religião especificamente, devo dizer que sou suficientemente de classe média para transitar nos extremos das classes sociais sem me impressionar tanto, e cada vez fica mais evidente que a religião hoje é quase uma coisa de pobre, algo que marca (ou estigmatiza, comme vous voulez) aqueles que têm de lutar pela sobrevivência e que os distingue daqueles que tocam sininho para chamar a empregada ou que querem vir a tocar, não importando a opinião que tenham de repetir para que isso se concretize. Estamos a um passo de pensar, como os americanos, em termos de religiosos broncos versus ateus & agnósticos esclarecidos. Que uma elite que aliena e esnoba sem peso na consciência a maior parte da população se julgue a grande defensora do povo, eis algo que, dependendo do dia, me provoca riso ou pesar, recordando-me ora Molière, ora Dostoiévski.

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