A verdade & a verdade de Osama bin Laden

A velocidade com que se alteram as versões a respeito da morte de Osama bin Laden convida a não dizer nada a respeito e a esperar que algo se cristalize. Mas, como não é diretamente disso que quero falar, não preciso esperar tanto.

Semana passada, Obama finalmente mostrou a certidão de nascimento. Por que demorou tanto? Por acaso o eleitor americano tinha alguma obrigação de acreditar nele? É a esse ponto que chegamos no sistema de dois pesos e duas medidas que rege a relação entre a burocracia e aqueles que a sustentam? A recusa em mostrar a certidão de nascimento foi uma grande tentativa de legitimar o “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, e de desclassificar quem queria ver a certidão.

Aí vem a questão da teoria da conspiração. A teimosia infantil em mostrar a certidão explica o verdadeiro sentido do uso de pejorativo de “teoria da conspiração”: “se você não acreditar na minha palavra pura e simples, é um paranóico que acredita em teoria da conspiração”. Poderíamos esperar que o mais alto mandarim fosse um modelo de transparência. Mas ele é. É claro que ele é. Não está vendo? Você não está vendo porque é paranóico e acredita em teoria da conspiração.

O mesmo acontece na questão da morte de Osama bin Laden. Como alguém poderia esperar anunciar ter matado o homem mais procurado do mundo, não mostrar o corpo, nem uma foto, e querer credibilidade total? Só mesmo… tendo escondido a sua certidão de nascimento antes. Tudo bem, eu entendo que essa pessoa aja assim. Pelo menos ela é coerente.

E o que eu mesmo acho da questão em si? Bem, eu acho que diversas questões estão fora demais do meu alcance para que eu possa ter alguma opinião que vá além da credibilidade que eu estou disposto a atribuir à fonte das informações. Por isso, eu mesmo não acho nada, nem durmo mal por isso. Limito-me a observar que uns dizem isso, outros dizem aquilo, e que há coerências e incoerências entre esses discursos.

Perceba o leitor que estou distinguindo entre dois tipos de verdade, uma que pode ser verificada pela consciência humana individual (e que pode ou não corresponder a um discurso), e um discurso que passa por verdade, isso é, que tem prestígio suficiente para não ser julgado; aliás, que tem prestígio suficiente para julgar os outros discursos. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Quando se fala que a verdade acabou, tudo é relativo etc., essas afirmações se referem a essas estruturas de prestígio, que realmente acabaram. Nada, nem ninguém, possui mais o prestígio social de emissor bondoso da verdade. Você sente que sua crença é uma escolha e por isso não é algo que foi confortavelmente predeterminado, com a gostosa exclusão a priori das demais opções.

Por isso também é que muitos de nós sentimos que não passamos de uns fingidos: duvidamos em segredo, mas em público repetimos o que se espera. Porque, afinal, não acreditamos em teoria da conspiração, e temos muitas contas a pagar.

Por que o mercado é visto como o pior dos totalitarismos?

Num totalitarismo aberto, sabe-se quem é a burocracia que manda. Mesmo que nos antigos países comunistas reinasse efetivamente o caos, ninguém duvidava de que era o Partido que estava no poder. Você poderia ressentir-se do fato de que outra pessoa determinava sua vida, mas ao menos você sabia quem era essa pessoa. Sabia mesmo, com nome próprio, endereço etc. Era um totalitarismo concreto.

No capitalismo de mercado, existe a percepção de que você tem de agradar a um outro anônimo, transformado em estatística: o consumidor, que está por toda parte e que não é ninguém. Claro que em muitos casos você sabe perfeitamente quem são os seus clientes, mas isso é impossível em escala industrial. Uma empresa de bebidas não conhece seus consumidores, nem uma empresa de carros; ela na melhor das hipóteses pode estimar um certo perfil de uma faixa significativa desses consumidores.

Agora, porém, a possibilidade eletrônica de o consumidor ser rastreado por uma empresa sem que a recíproca seja verdadeira não está exatamente contribuindo para que o “mercado” ou o “capitalismo” não sejam vistos como totalitarismos. Se eu tivesse um iPhone 4 (e nem o 3 eu tenho mais), Steve Jobs poderia saber onde eu estou, sem que eu saiba onde ele está. O fato de um cartão de débito e de crédito também permitir que toda a sua vida comercial seja conhecida também não é algo que me deixe muito feliz. Na prática, hoje o anonimato é obrigatoriamente uma opção preferencial pelas tecnologias obsoletas. Mas bem. Já fujo do assunto.

O grande caveat desse raciocínio todo é a necessidade de recordar o mimimi tipicamente moderno de que qualquer limitação, mesmo material, à vontade própria e à afirmação de autonomia do eu é chamado de “totalitarismo”. Uma contestação é um autoritarismo, um olhar de reprovação é uma ditadura, e uma censura moral, bem, é a própria câmara de gás de Auschwitz. Por isso também é que se vê a necessidade de trabalhar de modo a agradar outra pessoa como “totalitarismo”.

Fetos mutilados zumbis esquartejando os membros da Planned Parenthood

Cheguei a um ponto em que creio que nem os terroristas islâmicos são fundamentalmente islâmicos. Quer dizer, claro que são islâmicos, mas eu não acredito nem por um segundo que o fato de serem islâmicos seja a causa principal de serem terroristas (como se a o fato de a maioria dos muçulmanos não ser terroristas já não tivesse demonstrado isso, mas bem).

Estou dizendo tudo isso porque hoje cedo tive uma ideia, que pode ser lançada ao cosmos para que alguém a estude, ou talvez eu mesmo, no futuro. Seria preciso reunir uma grande bibliografia e por isso vou falar algumas coisas de orelhada agora. O ideal seria ter um ano ou dois para entregar à pesquisa.

Bem. Já ouvi algumas vezes que até os anos 1960 ou 1970 ninguém no mundo islâmico se lembrava de que as cruzadas existiram. Foi só depois dessa época (não por acaso, a época em que, se não me engano, começou a influência da intelectualidade europeia moderna sobre os países árabes) que surgiu o ressentimento difuso contra o Ocidente por causa das cruzadas. E, claro, há também no mundo islâmico diversos ressentimentos internos. Aqui deste lado do planeta lembramos mais dos atentados de NY, de Madri e de Londres, mas houve muito mais atentados por lá mesmo (do Egito à Índia, sem contar os atentados contra as forças de ocupação americanas).

Foucault e a revolução iraniana

Passemos aos EUA dos anos 1990. De repente, todo mundo sofreu abusos sexuais na infância. E começam as investigações, os processos. Todo homem adulto passa a ser visto como pedófilo em potencial.

Há coisa de uns dois anos, acho, surgiu no Brasil a narrativa do bullying, barbarismo que indica os valentões que intimidam as outras crianças. Isso acontece, claro. Assim como as cruzadas aconteceram, e também os abusos sexuais. Mas a narrativa, a transformação do bullying em problema social diagnosticado, reconhecido e oficial (o jornal O Globo de hoje põe na capa que 84,5% dos alunos das escolas foram “afetados” pelo bullying, metade tendo sofrido e metade conhecendo alguém que sofreu) cria a impressão de um vale de lágrimas e de horrores e alimenta os ressentimentos das vítimas. As quais poderiam estar passando relativamente bem e ter praticamente esquecido o que sofreram.

Eis aonde quero chegar: antes de cada ataque, surgiu uma narrativa que colocava certas pessoas como vítimas de uma violência absurda, e que assim legitimava sua vingança. Eu não estou nem dizendo que essa narrativa seja intrinsecamente falsa. Na verdade, aí é que está o impasse trágico. Contar uma verdade, expor uma narrativa de violência, parece produzir mais violência, e acirrar a disposição para o duelo contra o agressor. Mas por que deveríamos deixar de dizer uma verdade?

citei aqui, vale a pena repetir:

I and the public know
What all schoolchildren learn:
Those to whom evil is done
Do evil in return.

W. H. Auden, September 1, 1939

Isso tudo, creio, é o reino do Anticristo. Como já falei, se Cristo é a vítima que diz: “Pai, perdoa-os”, o Anticristo é a vítima que volta para se vingar. Hoje em dia, todos se vêem como vítimas que julgam ter adquirirido o direito de praticar alguma violência: os gays e os cristãos, as vítimas de bullying e os pobres, os muçulmanos e os judeus. A ênfase está em “que julgam ter adquirido o direito de praticar alguma violência”. E claro que isso é uma generalização, que não se aplica a todos os indivíduos. Na verdade, se você sentir uma profunda indignação ao ler isso, creio que estará demonstrando que a generalização se aplica exatamente a você.

Por isso também me parece fútil procurar as causas dessas atitudes no conteúdo específico de alguma ideologia, ou de uma religião. A estrutura básica é a de uma narrativa que corre paralela à da Paixão de Cristo e que parte de uma situação como aquela descrita no versículo 16 do Salmo 22 (lido ontem, na liturgia do Domingo de Ramos): “Pois cães me rodeiam; um ajuntamento de malfeitores me cerca…”

Estamos diante de um impasse trágico porque as violências sofridas pelos grupos não são imaginárias, mas reais, e o fundo judaico-cristão da nossa cultura é um convite a que violências sejam desenterradas ininterruptamente. Se você quiser ver uma diferença entre a sociedade arcaica e a nossa, pode ler a Odisseia. O grande herói Ulisses pilha cidades e mata um bocado de gente sem que a narrativa (e até nós mesmos!) demonstre a menor reprovação. Hoje seria impossível escrever uma história assim sem que no mínimo algum leitor ou crítico a chamasse de “niilista”. Se o personagem de prestígio da Antiguidade era o herói que matava sem remorsos, o personagem de prestígio da nossa cultura é a vítima inocente, ou percebida como inocente. Mas mesmo nós, após 2000 anos de cristianismo, não estamos prontos a oferecer a outra face. Queremos ver a vítima inocente voltando para se vingar, isso é, para “fazer justiça”.

Neste momento devo dizer que, se eu tivesse interesse pelo género dos filmes de terror, escreveria uma história em que bebês abortados ressuscitariam com metralhadoras e tomariam Nova York. Fetos mutilados zumbis assassinos esquartejando os membros da Planned Parenthood. O subtítulo, seguindo o estilo acadêmico, seria: Retaliar e retalhar. Se você riu ou sentiu algo ao ler isso, foi o desejo de vingança que se movimentou e, quem sabe, começou a ser purgado.

Agora, voltando, o pior disso tudo que estou dizendo é que minha hipótese pode ter comprovação empírica. Quando uma nova narrativa de vitimação adquirir prestígio — por ser, por exemplo, sancionada pela comunidade de psicanalistas — , surgirá um novo grupo de pessoas dispostas à violência vingativa, a qual terá, obviamente, o nome de “justiça”. A extensão do estrago dependerá dos meios disponíveis, e vocês podem tirar daí as piores consequências que conseguirem imaginar. Eu mesmo já estou rezando para não estar por perto quando a primeira dessas vítimas vingativas adquirir uma bomba atômica que caiba numa valise.

*Este texto não foi escrito com a intenção de servir de comercial para o curso de James Alison (chamado justamente “A vítima que perdoa” — nada melhor para a Semana da Paixão), mas, se eu estivesse em SP, tentaria fazê-lo.

Obama & Bolsonaro

Até onde me lembro, Barack Obama tinha prometido fechar a prisão de Guantánamo, e seu primeiro ato como presidente foi assinar qualquer coisa relacionada a isso. Agora, a prisão de Guantánamo não vai ser fechada. Acho que ele também tinha prometido acabar com as guerras dos EUA: é verdade que diminuiu (ou só prometeu diminuir?) o efetivo americano no Iraque, mas aumentou o efetivo no Afeganistão. E iniciou uma operação contra a Líbia que, leio por aí, parece não ter um objetivo claro. Obama também aumentou a quantidade de dinheiro dada a banqueiros nos EUA. E colocou nos aeroportos aquelas máquinas que veem por baixo da sua roupa. Barack Obama esperava que eu, brasileiro nato, apresentasse a minha carteira de identidade para andar numa praça pública da cidade onde moro. Não acho que alguém vá me acusar de patriotadas policarpescas se eu, aliás em plena quaresma, observar que submeter-se a isso com a maior naturalidade é uma subserviência digna de…

Enquanto isso, no Brasil, o deputado Jair Bolsonaro não pode receber sequer o benefício da dúvida por não ter entendido uma pergunta, ainda que isso signifique a diferença entre a antipatia e um crime.

Moral da história: don’t be one of the uncool kids.

Ainda a Lei Rouanet: dois aspectos

A questão da Lei Rouanet tem duas dimensões distintas, se relacionadas.

A primeira dimensão é a política e fiscal, e é a mais complexa. Se vivemos num Estado burguês, cortar o grupo dos artistas e produtores culturais das benesses do Estado burguês é francamente uma injustiça particular, além de ser uma medida absolutamente superficial e irrelevante diante do tamanho do orçamento do governo brasileiro. Os artistas captam dinheiro junto às empresas, que pegam dinheiro com o BNDES ou com outras instâncias governamentais, e o BNDES tem aquela linha direta com o Tesouro. Acabar com a Lei Rouanet equivale a tocar em um pequeno sintoma de uma doença grave e generalizada. Hoje em O Globo Ricardo Noblat fala em artistas “viciados em dinheiro público”, sem observar que esses viciados são comparativamente os mais inócuos, considerando as somas que movimentam. Se eu vivesse de Lei Rouanet e fosse chamado de “viciado em dinheiro público”, gostaria de saber o que pensar quando lembrasse de Eike Batista, até onde sabemos um empresário do setor privado, sentando-se junto ao presidente Lula para discutir quem deveria ser o presidente da Vale do Rio Doce, empresa sua concorrente.

A segunda dimensão é a cultural, que já discuti tantas vezes. Não sou romântico, não creio na alminha pura do artista de onde jorra o leite e o mel da criação, e acho que a arte cresce com a interação com o público (não necessariamente o “grande” público, porque há obras que se destinam de fato a poucos). A Lei Rouanet cria uma situação bastante perversa em sua simplicidade: se, para se pagar, para se viabilizar, uma obra depende do público, a Lei Rouanet permite que esse público seja reduzido a duas pessoas, que são o técnico do Ministério da Cultura que vai aprovar o projeto e o diretor de marketing da empresa que vai bancá-lo. Recordando o detalhe de que os técnicos do MinC são efetivamente técnicos, o público pode ser de uma só pessoa. Se um pagante entra com centenas de milhares de reais, não é preciso que milhares de pessoas entrem com dezenas de reais. Não existe nada mais elitista: o público acaba pagando um preço simbólico para testemunhar as supostas glórias de um mecenato que leva o nome de uma empresa mas que, indiretamente, foi pago com o dinheiro desse público. Se eu falei que isso era elitista, desculpe: agora está parecendo um pouco mais com o estelionato. O aspecto verdadeiro da interação fica encoberto, e daí vem a fragilidade de boa parte da cultura: não há um encontro real de interesses.

Tenho uma imagem na minha cabeça que explica a situação. Imagine que vivemos numa cidade que é governada por um sujeito obeso e guloso. Todo mundo tem de dar comida para ele. E você não pode fazer nada sem lhe dar comida. Ele é que distribui a comida que você produz. Você não pode trocar diretamente com seus vizinhos. Se você ficar amigo desse governante obeso, pode participar do banquete. Se não ficar, azar o seu. Essa metáfora não diz respeito apenas aos artistas, mas a todos os empreendedores e trabalhadores do Brasil. O fato de o governo brasileiro entrevar as relações econômicas entre as pessoas é que solapa a produção cultural e que cria elitismos que fariam o mais pó-de-arroz dos habitantes da Casa Grande corar a ponto de realmente vermos o vermelho em suas bochechas.

O Brasil não precisa de política cultural. Precisa de menos politização e de menos protagonismo estatal na área econômica como um todo. As pessoas têm de conversar entre elas próprias, sem ser obrigadas a dar tanta comida para o gordão.

Bethânia, Adam Smith & um pouco de Gramsci

Sou reativo, só escrevo em função de algo que leio. E hoje leio uma pequena reflexão no Globo a respeito da polêmica com o blog da Maria Bethânia – aquele que recebeu autorização para captar 1,3 milhão de reais, dos quais 600 mil vão para o bolso da própria Bethânia pela “direção artística”.

Daqui do meu assento etéreo liberal, posso me perguntar se um blog vale esse dinheiro todo, e se Bethânia vale esse salário. E logo escuto a resposta: se alguém quiser pagar, vale. Isso é, se houver pessoas que queiram financiar esse projeto, vale. Será, indiretamente, dinheiro público? Claro que sim. Mas funesta é a lei que gera absurdos, e indignar-se apenas com um deles é mostra daquele estado mental de indignação seletiva que, dependendo da versão, aceita José Serra como campeão antiaborto ou considera que é “você é um preconceituoso, mesquinho, classe média babaca, deveria sim é morrer queimado na missa/culto que você tanto se orgulha em ir” é um discurso que não tem nada de ódio patológico.

Voltemos à Bethânia e aos salários. Diz o nosso companheiro Adam Smith que o trabalhador quer ganhar o maior salário possível e o empregador quer pagar o mínimo possível. Desses desejos nasce o famoso equilíbrio de mercado, porque nem um nem outro têm em si e por si o domínio absoluto da relação, e um ou outro podem estar em vantagem ou desvantagem relativa. Essa relação não pende necessariamente sempre a favor do empresário: por exemplo, se há no Brasil um “apagão da mão de obra”, as pessoas em certas áreas estão em tremenda vantagem.

O que Bethânia está fazendo é aquilo que todos fazemos: tentando jogar nosso valor lá no alto. Se colar, colou. Francamente, como tradutor, eu não reclamaria se me pagassem mil reais por lauda (só ontem eu teria ganhado 16 mil reais), e eu mesmo faço o máximo para ganhar o máximo possível.

Como se trata de dinheiro público, você pode afirmar, e eu também, que não quer dar a Maria Bethânia 600 mil para que ela recite poesias. Só que o problema jurídico é muito anterior: existe a lei, existe o Ministério etc. E existe ainda um problema político bastante grave, que não pode deixar de ser abordado. Vivemos numa república corporativa, num verdadeiro estado burguês gramsciano: cada “categoria” recebe benefícios do Estado e dá benefícios em troca. Os nossos liberais brasileiros não costumam saber que o Brasil defende em sua política externa o livre mercado, ainda que isso signifique “queremos a abertura dos mercados europeus para nossos produtos”. Nossas queridas associações empresariais também são grupos de pressão. Os trabalhadores das empresas também constituem sindicatos e, veja só!, grupos de pressão. Todos querem aumentar seus próprios rendimentos. Só quem defende o liberalismo de maneira pura e inocente (e ingênua, e utópica, e irreal: olá, eu mesmo em 1999) no Brasil são três ou quatro garotos cujo maior bem é uma conexão de banda larga.

Se você tirar dos artistas a Lei Rouanet e o Ministério da Cultura, eles passarão a ser um dos poucos grupos no Brasil desprovidos de uma estrutura oficial de lobby e de pressão. Esse é o jeito brasileiro. Por mais que eu ache justo em abstrato acabar com a Lei e com o MinC, não posso deixar de observar que, se o Estado dá benesses para todos, por que faria essa injustiça especial com um determinado grupo?

Permitam até que eu explique melhor. Se os artistas subitamente fossem obrigados a ser empreendedores de verdade (o que eu defenderia), eles enfrentariam as mesmas dificuldades dos empresários brasileiros, com o agravante de estar desprovidos dos lobbies e grupos de pressão de que esses empresários dispõem.

Eu gostaria muito que os preços que pago pelos produtos que consumo tivessem bem menos interferência dos grupos de pressão empresariais. E gostaria que os preços que pago pelos produtos artísticos e culturais que consumo também não tivessem essa interferência. Só que, mesmo aqui, não posso deixar de observar o seguinte. Se eu for comer ou beber algo (e, mesmo sendo autor de teatro, não nego que comida e bebida são mais importantes do que teatro), vou pagar um preço proporcionalmente mais alto do que o que pagaria pela vasta maioria dos ingressos à venda para qualquer coisa, ou mesmo um preço mais alto em valores absolutos (saia do teatro e vá comer alguma coisa, e me diga onde gastou mais). Quer dizer, de um lado os grupos de pressão empresariais estão jogando os preços para cima, e, ao menos no nível da minha experiência direta, me prejudicando muito mais do que a Lei Rouanet. Entre destruir imediatamente mecanismos que “protegem a indústria nacional” ou as leis de incentivo à cultura, não preciso pensar duas vezes.

Agora, para encerrar, se você acha que dinheiro na mão do Estado é dinheiro jogado fora, por que está reclamando dessa pequena possível privatização?

Oportunidade para estadistas

É uma pena que a burocracia não prime pela inovação (no bom sentido). Vou enunciar uma demanda e, como não sou responsável por um território, cabe àqueles que forem considerar atendê-la.

Eu e boa parte dos meus amigos somos, para usar um palavrório mais ao gosto do destinatário, trabalhadores informacionais altamente qualificados. Não precisamos de escritório fora de casa, nem de empregados, nem de nada. Só de um computador, de uma conexão com a internet e de alguns livros. Ter acesso a uma biblioteca fantástica seria maravilhoso, mas a experiência mostra que temos conseguido viver sem isso.

Imaginemos um território que ofereça facilidades jurídicas para gente como eu. Se, em vez de ter de abrir uma empresa, de ter um alvará, de pagar um contador e de entender de legislação só para traduzir um livro dentro da lei, eu puder pagar um pequeno imposto e preencher só um pequeno formulário, e os preços em geral forem menores do que os do Rio (que, Deus do céu… É melhor ir morar em Paris, que é mais barato), pego o avião amanhã mesmo. Não é nem por não gostar do Rio. Quem me conhece sabe que sou um carioca ideológico (que não vai a blocos de carnaval nem gosta de tomar chope), convencido, como todo carioca, de que o Rio é o melhor lugar do universo (e mesmo em Paris, eu sentiria ou sentirei saudades do calçadão). Ainda assim, está caro demais.

Nós, trabalhadores informacionais, tradutores, escritores, programadores, designers etc., nós que só precisamos do nosso computador e de um pouco de silêncio, nós somos ordeiros, educados, gentis, só detestamos ter de abandonar nossas atividades para preencher os requisitos legais para desempenhá-las. Caro governante: estamos esperando o seu território abrir-se para nós. Se você facilitar a entrada de capitais e o câmbio, os pagamentos que recebemos serão a alegria dos bancos do seu país.

“Orgulho” por contágio

Leio no G1 a notícia do menino que foi suspenso por cinco dias na escola por usar um terço e penso imediatamente em Antígona. Ele fazia o que achava certo, a escola também. O apego de cada um àquilo que considera certo só vai reforçar o apego do outro. E, caro leitor, considere o seguinte: se “aquilo” é certo ou não é irrelevante para o impasse trágico. Do nosso ponto de vista confortável e tranquilo, podemos nos dar ao luxo de querer arbitrar a questão e ainda ter a ingenuidade de achar que nosso laudo arbitral deveria ser enfiado goela abaixo das partes envolvidas, que sequer nos convocaram. Não sejamos nós também contagiados pela disputa.

É por isso que não vou falar, como Antígona, em “leis não-escritas”, nem no sacro direito de usar um terço, até porque eu acredito que 1. se a escola é pública, deveria haver a liberdade de usar um terço ou uma camiseta de Aleister Crowley; 2. se a escola é privada, deveria haver o direito de usar só o que a escola considerar aceitável e quem não gostar que procure outra escola; 3. qualquer violência física fica terminantemente proibida e deve ser reprimida em qualquer caso.

Todas as pessoas que são reprimidas por suas crenças, quaisquer que sejam, tendem a imitar o repressor, transformando sua crença numa identidade estrondosa, numa camiseta berrante, numa caricatura. Poderíamos pensar num grupo terrorista que defendesse as leis não-escritas de Antígona, sem que isso fizesse de Creonte, ou do aparelho estatal como um todo, o mocinho da história. Não há mocinhos, não há bandidos, só existe a epidemia de violência, que pode ser melhor ou pior administrada, sobretudo para evitar o backlash, que é aquilo que os comunistas chamam de “revolução”: a recusa de todos os paliativos.

Eu recomendaria que o menino que quer usar o terço não se sinta “orgulhoso” dele, como diz. Eu mesmo não entendo o orgulho identitário, nem creio que ele seja orgulho de fato; acho que é só uma posição marcada num cabo de guerra. Gostaria que o menino se esforçasse para não ficar com raiva, para não sentir que sua violência contra a escola é legitimada, e que se esforçasse para ser melhor e para mostrar que o cristianismo não é seu direito de expor um símbolo, mas algo efetivamente vivido. É verdade que é duro resistir a isso; é verdade que todos os reprimidos (ou que se julgam reprimidos, dá na mesma) estão querendo afirmar-se violentamente, e que a narrativa de “eu era oprimido, agora vou fazer o que eu quiser, quem não gostar que se dane” é o mito fundador do século XXI. Mas, enfim, estar no mundo sem ser do mundo etc.

Rentismo de imagem

O Globo, 20 de janeiro de 2011

O filme A rede social ganha um prêmio atrás do outro nos Estados Unidos. Seu assunto é a fundação do Facebook e seus personagens são reais e estão vivos. Não se pode dizer que o retrato que se pinta deles no filme seja o mais lisonjeiro do mundo. Ainda assim, existe a crença tácita de que o público não é tão burro a ponto de não perceber que A rede social é um filme, não um registro histórico fidedigno. O Facebook, aliás, não teve prejuízos com o sucesso do filme, e seu fundador, Mark Zuckerberg, também protagonista da história, aparentemente não perdeu amigos. Na verdade, ele levou os funcionários para ver como Aaron Sorkin, o roteirista de The West Wing, retratou a criação do site.

Aqui no Brasil, A rede social seria impossível. Temos uma tradição, reconsagrada pelo novo Código Civil, de que só é possível retratar qualquer personagem real em situações de extrema bondade. Ou ele curava os leprosos e caminhava sobre as águas, ou sua memória e sua imagem estão sendo vilipendiadas pelos interesses mais sórdidos. Não há meio termo. A edição das obras completas de um famoso poeta foi atrasada em muitos anos porque os herdeiros vetavam a publicação de poemas dedicados à amante que todos sabiam (até eu, mesmo quando criança) que ele tinha. A biografia de um jogador de futebol foi recolhida das livrarias porque aparentemente o biografado não aparecia de modo suficientemente angelical.

Certamente é isso que explica a ausência, em nossa dramaturgia, de episódios da história política. Por que não podemos fazer uma peça ou um filme em que Jânio Quadros apareça fraco e esfomeado, comendo um sanduíche de ovo em pleno comício, com a gema escorrendo pelo paletó, e depois falando em ditirambos e outras coisas dignas de Odorico Paraguaçu? Porque seria uma ofensa contra sua imagem. Não: Jânio curava leprosos apenas com o toque das mãos e caminhava sobre as águas. Já podemos imaginar que os herdeiros julgam que qualquer coisa menos do que isso é inaceitável.

Se a nossa legislação existisse na Inglaterra elisabetana – e a rainha Elizabeth I não foi tão econômica assim no uso da fogueira – Shakespeare não poderia ter escrito seus dramas históricos, que incluem peças famosas como Ricardo III e Henrique V, e peças menos famosas como Henrique VIII, cujo personagem-título era pai da própria rainha. Se a nossa legislação existisse no Portugal quinhentista, em que havia censura da Inquisição, Camões não poderia ter escrito o relato da viagem de Vasco da Gama, também conhecido como Os Lusíadas. É verdade que Camões procurou o mecenato da família do navegador, mas essa, exercendo seu pleno direito de propriedade, não quis dar dinheiro ao poeta. O que, convenhamos, é bem melhor do que valer-se de meios judiciais para impedi-lo de publicar sua obra. A ideia de que os reinos de Dom Sebastião e de Elizabeth I podem ter oferecido mais liberdade para poetas e dramaturgos do que o da presidenta que tirou o crucifixo do escritório logo na primeira semana é algo que, para recordar o famoso monólogo “Ser ou não ser”, obriga-nos a refletir.

Ainda assim, leio em O Globo que o sindicato das enfermeiras declara estar a postos para combater judicialmente qualquer personagem televisivo que seja uma enfermeira atraente e que por isso supostamente contribua para a objetificação sexual das enfermeiras. Ora, um pouco de bom senso nos diria que, na famosa vida real, isso depende mais da imagem de cada enfermeira em particular. Enquanto isso, todo empresário pode ser retratado como um torpe mau-caráter: são obras de ficção…

O mais importante, porém, é um pequeno dado, pressuposto em toda essa argumentação. Mesmo que a lei diga o contrário, de facto a sua imagem e a sua fama não pertencem a você. Sua imagem e sua fama são as opiniões que outras pessoas têm de você, e por isso pertencem a elas, não a você. Aliás, o fato de herdeiros impedirem a publicação de livros não só não altera em nada a minha opinião de poetas e de biografados como altera muito negativamente a minha opinião sobre esses herdeiros – rentistas da imagem alheia, que querem criar um feudo impossível, como alguém que deseja privatizar o ar que se respira. O efeito, além da diminuição do mercado – da diminuição do número de empregos – é que, vedado o tratamento artístico da memória, qualquer um pode começar a arrotar que “nunca antes na história deste país” sem ser logo percebido como a banalidade que é.

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