Recife, 3 de novembro de 2011.
Antes mesmo de começar a discutir a questão, creio que é preciso fazer uma espécie de limpeza retórica, porque a primeira coisa que me chama a atenção é que uma crise financeira dos países capitalistas parece ser suficiente para condenar a ideia mesma de capitalismo, ao passo que os genocídios da China, da URSS, do Camboja, do Vietnã e até do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães não parecem suficientes para questionar a viabilidade, para nem falar da moralidade, do que seria o sistema rival, o socialismo. Hoje em dia você pode dizer que o socialismo deu errado na URSS por causa de Stálin, mas, francamente, isso me parece um tanto similar a dizer que foi Hitler que estragou o nazismo, que o nazismo merece credibilidade apesar de Hitler. E o mais engraçado é que defender Lênin, que também não era nenhum anjinho, é de certo modo defender a liberalização econômica, porque era isso que ele estava fazendo quando teve de abandonar o poder por causa da saúde.
A segunda observação importante é que o termo “capitalismo” foi criado por Karl Marx. É um termo pejorativo, que indica a dominação do capital. Isso não é muito diferente do que acontece com a palavra “neoliberal”. Eu nunca vi, e já trabalhei em duas organizações explicitamente dedicadas à defesa do liberalismo econômico, alguém que dissesse: “eu sou neoliberal”. Também não é muito diferente do que eu vejo as mulheres fazerem com o termo “periguete”. Nenhuma mulher se diz vulgar, nenhuma mulher se diz periguete. Vulgares e periguetes são as outras. Ninguém se autodenomina neoliberal nem periguete. Mas é verdade que existem pessoas que se dizem “capitalistas”. A diferença é que quando uma pessoa se diz “capitalista”, ela não está se dizendo a favor da dominação do capital, mas a favor de um sistema de trocas livres. Quer dizer, o termo “capitalista” muda de sentido dependendo de quem está falando. Eu mesmo não defenderia a dominação do capital, que sob muitos aspectos efetivamente existe, ainda que não na forma parcial imaginada pelos manifestantes lá de Wall Street, mas um capitalismo mais livre, que seria melhor denominado simplesmente de liberalismo. Esse liberalismo, sobretudo como posição ética, é que provavelmente ajudaria a consertar o capitalismo e a conter suas crises.
O “capitalismo” no sentido positivo ou liberalismo seria basicamente um sistema de trocas baseado na especialização de cada participante. Eu traduzo, você faz pontes, nós vendemos nossos serviços uns aos outros. Esse sistema é tão natural que nem mesmo o socialismo conseguiu destruí-lo. O sistema coletivista da URSS apenas criou um mercado negro paralelo cujos preços eram artificialmente elevados. Por isso também eu mesmo defendo menos interferência dos governos, e acho que eles devem proteger mais os consumidores do que as empresas. Proteger os consumidores e não as empresas seria, por exemplo, não aumentar o IPI de carros importados não sei de onde para que você possa pagar mais caro por um carro só porque ele foi gloriosamente produzido no Brasil. O nacionalismo está sempre ligado à ideia de que enriquecer os empresários locais é de algum modo moralmente superior a enriquecer um empresário estrangeiro, mesmo que o estrangeiro tenha um produto melhor e mais barato.
Os manifestas de Wall Street até me despertam alguma simpatia. Mas existe um grave equívoco, que é a parcialidade do movimento. Não faz sentido ocupar Wall Street sem ocupar também Washington e sobretudo o Fed, o Banco Central americano. A crise americana não foi produto exclusivo de gananciosos especuladores, mas a obra conjunta de especuladores e de burocratas. De um lado, o Fed combateu crises aumentando a liquidez da economia; ainda desse mesmo lado, o governo federal americano estimulou o crédito imobiliário para pessoas que não poderiam pagar. Do outro lado, os financistas aproveitaram os incentivos que tinham. É o efeito do multiplicador bancário: o banco empresta o seu dinheiro a partir da crença de que você não vai sacá-lo. Ter um banco é gerenciar esses riscos e de fato os bancos americanos chegaram a emprestar, em alguns casos, 200 vezes aquilo que efetivamente possuíam. Aqui no Brasil isso não aconteceria, é verdade, por causa da regulamentação, que não permite uma alavancagem tão elevada. Além disso, ao contrário do que ocorre nos EUA, aqui os sócios dos bancos têm de responder pelas perdas com seus patrimônios pessoais. Mas, voltando ao caso americano e à participação do governo, metade das dívidas podres estava nas mãos de dois bancos imobiliários do governo, e já havia a ideia de que qualquer perda seria compensada com as famosas injeções de liquidez: o governo ia botar mais dinheiro na economia.
Nesse ponto eu devo observar que ao menos um manifestante de Wall Street foi direto ao ponto, até de maneira um pouco filosófica, exibindo um cartaz que pedia o fim da moeda fiduciária. É verdade que essa crise só poderia acontecer num sistema de moeda fiduciária sem lastro. E por quê? É só olhar o nome da moeda: ela é fiduciária, baseada em fé, em credibilidade, em crédito. Mas devo me interromper a mim mesmo para dizer que não vou defender aqui o padrão-ouro. Primeiro, até onde eu sei, o sistema do padrão-ouro também tem seus problemas. Tudo tem suas vantagens e desvantagens próprias. Segundo, porque eu não acredito que o ouro tenha um valor intrínseco. Nada tem valor por si; todo valor é atribuído. Mas esse valor também não é aleatoriamente atribuído; daí é que vem a credibilidade. Você dá credibilidade ao emissor da moeda e à sua capacidade de honrar suas dívidas. Isso não é tão distinto da experiência comum de um profissional do setor privado. Eu mesmo sou tradutor. O valor que cobro dos meus clientes depende da minha credibilidade, isso é, de eles estarem convencidos de que eu vou entregar um bom trabalho num prazo razoável e sem apresentar dificuldades. Não vou enviar um texto cortado, dizendo que não consegui traduzir uma parte – isso é, não vou ficar dando desculpas. Do mesmo modo, qual moeda tem mais valor? A moeda emitida pelo governo que tem mais credibilidade. Essa credibilidade, no caso de um governo, não vem só das agências de rating, que aliás reduziram a credibilidade do governo americano enquanto pagador de dívidas de super ultra deluxe premium plus para apenas super ultra deluxe premium. A credibilidade vem de diversos fatores. Da segurança jurídica americana. Da facilidade de fazer negócios. Não vou dizer que os EUA sejam perfeitos, até por causa das crises. Mas o fato de que, há quinze dias, uma Europa em crise por causa da Grécia fazia o dólar subir de preço mostra quanta credibilidade os EUA têm. A politização da moeda começa aí mesmo, ela é emitida por um governo e as pessoas vão ver como esse governo se comporta. Aliás, não apenas os EUA recebem os maiores fluxos de dinheiro, como também recebem os maiores fluxos de imigrantes. Quando a coisa aperta, você confia em ir para os EUA. Os EUA em crise, com duas guerras, com Wall Street ocupada, parecem melhores do que todos os demais países do mundo, na opinião da maioria dos imigrantes, porque lá é fácil trabalhar, empreender, ter um negócio, ser muçulmano, ser ateu, e até comprar um busto barato de Stálin para colocar na sala de jantar se você quiser. É muito engraçado que o país que representa o capitalismo no mau sentido de Marx, inclusive num mau sentido justo, devido às estripulias financeiras, seja o país para o qual as massas oprimidas do mundo fogem assim que têm chance. Credibilidade é isso. Você não vai me contratar porque eu prometo uma tradução boa, vinda do mundo melhor. Você vai me contratar porque veja, aqui está a tradução, ela pode ter erros (todas têm), mas ela é bem melhor do que as alternativas realmente existentes. Com toda a sua perversidade financeira, o capitalismo real
mente existente é melhor do que todas as outras alternativas que existem no mundo concreto, isso na opinião de investidores e de imigrantes.
Num certo sentido, perguntar se o sistema financeiro internacional realmente existente tem conserto é pedir por duas respostas. A primeira, filosófica demais, é: claro que não, porque nada que é humano tem conserto, estamos fadados à nobre arte de empurrar com a barriga e minimizar as perdas. Nesse ponto, aliás, o sistema econômico descentralizado se mostrou tão mais eficaz em poupar vítimas que compará-lo com o sistema de economia planejada, ou socialismo, me parece até patológico num sentido dostoievskiano. Há cem anos um marido alcoólatra espanca a mulher e você quer lhe dar mais uma chance só porque ele toca “Imagine” do John Lennon no piano e você se derrete. A segunda resposta de certo modo decorre da primeira: algum ajuste será feito, mas não necessariamente será positivo. Claro que poderia ser feito algum ajuste positivo. Mas acho que se eu soubesse elaborar um ajuste convincente, específico, que fosse além do feijão com arroz que os liberais sempre repetem, meu nome estaria na lista de indicados ao Nobel. De todo modo, imagino que diminuir a alavancagem dos bancos seja importante, ainda que isso talvez viesse a custar em termos de prosperidade e nenhum político quer enfrentar a dureza de um ajuste deflacionário. Nenhum presidente ou candidato a presidente vai querer bater no peito e dizer que no governo dele vamos tomar o remédio amargo e cortar despesas. Além disso, considero fundamental que bancos e banqueiros respondam com seu capital privado. Assumir um risco não é em si um mérito que pede recompensa; é preciso arcar com os prejuízos. Até porque sempre somos mais prudentes com o nosso próprio dinheiro.
Por isso é que o capitalismo, tomado como a associação perversa de bancos centrais e financistas para manipular riscos e moedas, pode ser amplamente melhorado pelo liberalismo, por um governo mais estável, que tenha regras mais claras, que dê segurança jurídica, que não impeça a iniciativa individual (eu mesmo preciso de um alvará da prefeitura para traduzir em casa, isso é, eu preciso de um documento do governo para escrever no meu computador), que não queira planejar nem dirigir a economia, que não favoreça os grandes empresários. É claro que existe algo de utópico nisso no sentido de que nunca haverá um país perfeitamente liberal, mas esse é um ideal mais realizável, ou ao menos é um ideal ao qual se pode tender. Tanto é que os países que mais tendem a ele são os mais prósperos, em que, novamente, os imigrantes do mundo escolhem morar. Aqui mesmo no Brasil poderíamos ajustar nossa estrutura tributária, melhorar a facilidade de fazer negócios, de empreender, cortar subsídios diretos e indiretos a grandes empresas, derrubar as alianças entre o setor privado que vive de dinheiro fácil do Estado e o Estado que vicia o setor privado por meio de grandes projetos, e criar um capitalismo mais liberal, que seria melhor para todos, e não só para meia dúzia de políticos, de banqueiros e de empresários.
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