Ó, Lordessa Ánax

Na antiga civilização micênica, anterior até àquela de que fala a Ilíada, havia uma figura chamada ánax. O ánax era mais do que um rei. Fundia autoridade espiritual e poder temporal e em seu palácio se fazia a contabilidade geral do “reino”. Era, em suma, uma mistura de ditador socialista com pajé. Vodu macroeconômico e planejamento espiritual. Provavelmente, aquilo que Julius Evola queria ser quando crescer.

O ánax foi substituído na Grécia pelo basileus, que normalmente traduzimos como “rei”, e por isso coloquei aspas em “reino” no parágrafo anterior. Cada rei da Ilíada era um basileus, como Agamêmnon e Ulisses. Ele estava mais próximo da nossa ideia de rei: basicamente um sujeito que se impõe pela força e que, em troca de uns tributos, promete segurança. Uma espécie de máfia em grande escala, com mais prestígio e rapapés.

Mas o sonho do ánax, é claro, permanece. E, como em muitas esferas, vigora uma dessas regras jamais mencionadas: se você ficar falando que quer ter os poderes do ánax, você é maluco. Se você agir como se fosse o ánax, mas sem falar nada, pode passar por alguém perfeitamente normal.

É no velho ánax micênico que penso quando leio que nossa presidente tem a intenção de romper um acordo comercial com o México porque, veja só, o Brasil está comprando mais do México do que vendendo para o México. Na verdade, perdoem: é preciso ainda desmistificar essa frase. Brasileiros, ou pessoas residentes no Brasil, estão comprando mais produtos que vêm do México do que os mexicanos e residentes do México estão comprando produtos que vêm do Brasil.

Talvez eu seja liberal porque, ao ler uma afirmação como essa, só consigo pensar: “E daí? Bom pra eles.” Eu nem sei se tenho algum produto mexicano. Chego até a pensar assim: “Então o gay pode casar mas o brasileiro tem de pagar mais imposto para comprar produto mexicano? Eu, hein.”

É claro que eu conheço aquelas histórias de “proteção à indústria nacional”. E só consigo imaginar essas palavras ditas por alguém parecido com o Fofão, todo vestido e maquiado, com a autoridade sacerdotal de um Jedi fariseu. Porque elas são inteiramente mistificadas. E podem ser derrubadas por outra mistificação, ou outra metáfora tratada como substância: o bolso nacional. Presidenta Ánax, proteja o nosso bolso, se quiser proteger alguma coisa. Não nos faça comprar algo ruim e caro só para enriquecer um empresário daqui. Eu sei que os mexicanos não contribuíram para a sua campanha, mas mesmo assim, ó, Lordessa Ánax, livrai-nos do nacional caro e ruim, amém.

Fico imaginando um filme. Está lá o ánax em Micenas. Cheio de plumas e pintado de azul. Aparece um sujeito de paletó e gravata, com uma pastinha, e fala com aquele sotaque paulistano que já aboliu todos os sons nasais: “Lorde Ánax, Majestade Macroeconômica, espero não ofender vossa sapiência ao apresentar a teoria das expectativas racionais.” Teoria essa que, hoje, leva a algumas decisões: se não posso comprar o importado barato, prefiro não comprar nada a comprar o nacional caro e ruim. Pode ficar com seu imposto sobre o nada.

Penso ainda no primeiro governador britânico da província de Hong Kong, uma terra em que plantando nada dá, do tamanho de… Bem, digamos que seriam necessárias 7700 Hong Kongs para preencher um Brasil. Esse governador renunciou ao papel do Ánax e decidiu não coletar dados macroeconômicos, para evitar a possibilidade do planejamento. E hoje essa faixa de terra 7700 vezes menor do que o Brasil tem um PIB apenas 9 vezes menor.

Imigrantes e indústrias

Temos alguns milhares de imigrantes haitianos entrando pela fronteira no Amazonas. E o que seria isso para, rufem os tambores, soem as trombetas, a sexta maior economia do mundo? Aparentemente é demais, porque o nosso querido governo quer fechar a fronteira e só deixar entrar quem já recebeu visto no Haiti. Hoje alguma autoridade dizia que “o Brasil não pode assumir o Haiti”. Diria eu: pode sim. Claro que sob algumas condições.

O que sucede não é diferente do que já sucede desde… sempre? Temos um péssimo ambiente de negócios, e é por isso que toda hora o governo em todas as suas esferas fala em dar incentivos. Os Sacerdotes do Templo de Syrinx se reúnem em Brasília e decidem: vejam, este é um setor “estratégico”, vamos desviar a grana do pessoal que paga impostos para cá, ou vamos dispensar os empresários desse ramo desse ou daquele imposto. É claro que esse processo jamais é influenciado por lobbies ou por doações financeiras, por isso nem vou discutir a idoneidade dos Sacerdotes do Templo de Syrinx.

Nosso governo então olha os imigrantes e pensa: não estamos querendo incentivar a vinda daquilo que parece uma peãozada sem diploma que nem português fala. Preferimos dar incentivos para empresas milionárias.

Preciso agora concluir dizendo o óbvio? Não é preciso conter quatro mil imigrantes, nem ficar dando shakes de proteína para Setores Eleitos da Economia. Basta – caramba, sinto-me tão democrático ao dizer isso – melhorar o ambiente de negócios para todos. E aí, quem sabe, algum haitiano poderá virar milionário no Brasil.

Epidemia de censurite

Uma coisa que definitivamente une esquerda e direita é o gosto por denunciar a censura. Estão todos sendo censurados. Agora é a fotógrafa Nan Goldin, que vem ao Diário do Balneário dizer que foi censurada porque o Oi Futuro, cá no Balneário, cancelou sua exposição. Mas, dona senhora, madame fotógrafa, o Oi Futuro é uma instituição privada. Instituições privadas não censuram. Só quem censura é o governo. Já repeti isso mil vezes, mas fazer o quê? A lenga-lenga em torno da censura parece imortal.

Se um artigo não é publicado na imprensa, isso não é censura. É exercício do direito de propriedade, o mesmo que garante que eu não tenha de ouvir na minha casa nada que eu não queira. Se uma exposição é rejeitada ou cancelada, isso pode até ser deselegante, mas não é censura. Mesmo que uma exposição ou um artigo sejam rejeitados por órgãos estatais, isso não é censura. Para que fosse censura, o Estado teria de vetar a exibição daquele material em qualquer lugar, ou proibir a circulação do texto. É tão difícil? Será que estarei me revelando um insensato ao dizer estas palavras? Ou será que devo bater na porta do sr. Otávio Frias Filho e dizer, socando a mesa, que eu tenho o direito de publicar meus textos na Folha de São Paulo?

Claro que o discurso dos que sofrem de censurite tremens é puro sensacionalismo. Mas não está aí o pessoal a dizer também que “ideias têm consequências”? Do jeito que a coisa vai, da próxima vez que eu pedir para tirarem a azeitona da minha pizza, já vou me preparar para ler no jornal um artigo do pizzaiolo: “Nossas receitas estão sendo censuradas. É nossa arte que está sendo sufocada!”

O capitalismo tem conserto?

Recife, 3 de novembro de 2011.

Antes mesmo de começar a discutir a questão, creio que é preciso fazer uma espécie de limpeza retórica, porque a primeira coisa que me chama a atenção é que uma crise financeira dos países capitalistas parece ser suficiente para condenar a ideia mesma de capitalismo, ao passo que os genocídios da China, da URSS, do Camboja, do Vietnã e até do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães não parecem suficientes para questionar a viabilidade, para nem falar da moralidade, do que seria o sistema rival, o socialismo. Hoje em dia você pode dizer que o socialismo deu errado na URSS por causa de Stálin, mas, francamente, isso me parece um tanto similar a dizer que foi Hitler que estragou o nazismo, que o nazismo merece credibilidade apesar de Hitler. E o mais engraçado é que defender Lênin, que também não era nenhum anjinho, é de certo modo defender a liberalização econômica, porque era isso que ele estava fazendo quando teve de abandonar o poder por causa da saúde.

A segunda observação importante é que o termo “capitalismo” foi criado por Karl Marx. É um termo pejorativo, que indica a dominação do capital. Isso não é muito diferente do que acontece com a palavra “neoliberal”. Eu nunca vi, e já trabalhei em duas organizações explicitamente dedicadas à defesa do liberalismo econômico, alguém que dissesse: “eu sou neoliberal”. Também não é muito diferente do que eu vejo as mulheres fazerem com o termo “periguete”. Nenhuma mulher se diz vulgar, nenhuma mulher se diz periguete. Vulgares e periguetes são as outras. Ninguém se autodenomina neoliberal nem periguete. Mas é verdade que existem pessoas que se dizem “capitalistas”. A diferença é que quando uma pessoa se diz “capitalista”, ela não está se dizendo a favor da dominação do capital, mas a favor de um sistema de trocas livres. Quer dizer, o termo “capitalista” muda de sentido dependendo de quem está falando. Eu mesmo não defenderia a dominação do capital, que sob muitos aspectos efetivamente existe, ainda que não na forma parcial imaginada pelos manifestantes lá de Wall Street, mas um capitalismo mais livre, que seria melhor denominado simplesmente de liberalismo. Esse liberalismo, sobretudo como posição ética, é que provavelmente ajudaria a consertar o capitalismo e a conter suas crises.

O “capitalismo” no sentido positivo ou liberalismo seria basicamente um sistema de trocas baseado na especialização de cada participante. Eu traduzo, você faz pontes, nós vendemos nossos serviços uns aos outros. Esse sistema é tão natural que nem mesmo o socialismo conseguiu destruí-lo. O sistema coletivista da URSS apenas criou um mercado negro paralelo cujos preços eram artificialmente elevados. Por isso também eu mesmo defendo menos interferência dos governos, e acho que eles devem proteger mais os consumidores do que as empresas. Proteger os consumidores e não as empresas seria, por exemplo, não aumentar o IPI de carros importados não sei de onde para que você possa pagar mais caro por um carro só porque ele foi gloriosamente produzido no Brasil. O nacionalismo está sempre ligado à ideia de que enriquecer os empresários locais é de algum modo moralmente superior a enriquecer um empresário estrangeiro, mesmo que o estrangeiro tenha um produto melhor e mais barato.

Os manifestas de Wall Street até me despertam alguma simpatia. Mas existe um grave equívoco, que é a parcialidade do movimento. Não faz sentido ocupar Wall Street sem ocupar também Washington e sobretudo o Fed, o Banco Central americano. A crise americana não foi produto exclusivo de gananciosos especuladores, mas a obra conjunta de especuladores e de burocratas. De um lado, o Fed combateu crises aumentando a liquidez da economia; ainda desse mesmo lado, o governo federal americano estimulou o crédito imobiliário para pessoas que não poderiam pagar. Do outro lado, os financistas aproveitaram os incentivos que tinham. É o efeito do multiplicador bancário: o banco empresta o seu dinheiro a partir da crença de que você não vai sacá-lo. Ter um banco é gerenciar esses riscos e de fato os bancos americanos chegaram a emprestar, em alguns casos, 200 vezes aquilo que efetivamente possuíam. Aqui no Brasil isso não aconteceria, é verdade, por causa da regulamentação, que não permite uma alavancagem tão elevada. Além disso, ao contrário do que ocorre nos EUA, aqui os sócios dos bancos têm de responder pelas perdas com seus patrimônios pessoais. Mas, voltando ao caso americano e à participação do governo, metade das dívidas podres estava nas mãos de dois bancos imobiliários do governo, e já havia a ideia de que qualquer perda seria compensada com as famosas injeções de liquidez: o governo ia botar mais dinheiro na economia.

Nesse ponto eu devo observar que ao menos um manifestante de Wall Street foi direto ao ponto, até de maneira um pouco filosófica, exibindo um cartaz que pedia o fim da moeda fiduciária. É verdade que essa crise só poderia acontecer num sistema de moeda fiduciária sem lastro. E por quê? É só olhar o nome da moeda: ela é fiduciária, baseada em fé, em credibilidade, em crédito. Mas devo me interromper a mim mesmo para dizer que não vou defender aqui o padrão-ouro. Primeiro, até onde eu sei, o sistema do padrão-ouro também tem seus problemas. Tudo tem suas vantagens e desvantagens próprias. Segundo, porque eu não acredito que o ouro tenha um valor intrínseco. Nada tem valor por si; todo valor é atribuído. Mas esse valor também não é aleatoriamente atribuído; daí é que vem a credibilidade. Você dá credibilidade ao emissor da moeda e à sua capacidade de honrar suas dívidas. Isso não é tão distinto da experiência comum de um profissional do setor privado. Eu mesmo sou tradutor. O valor que cobro dos meus clientes depende da minha credibilidade, isso é, de eles estarem convencidos de que eu vou entregar um bom trabalho num prazo razoável e sem apresentar dificuldades. Não vou enviar um texto cortado, dizendo que não consegui traduzir uma parte – isso é, não vou ficar dando desculpas. Do mesmo modo, qual moeda tem mais valor? A moeda emitida pelo governo que tem mais credibilidade. Essa credibilidade, no caso de um governo, não vem só das agências de rating, que aliás reduziram a credibilidade do governo americano enquanto pagador de dívidas de super ultra deluxe premium plus para apenas super ultra deluxe premium. A credibilidade vem de diversos fatores. Da segurança jurídica americana. Da facilidade de fazer negócios. Não vou dizer que os EUA sejam perfeitos, até por causa das crises. Mas o fato de que, há quinze dias, uma Europa em crise por causa da Grécia fazia o dólar subir de preço mostra quanta credibilidade os EUA têm. A politização da moeda começa aí mesmo, ela é emitida por um governo e as pessoas vão ver como esse governo se comporta. Aliás, não apenas os EUA recebem os maiores fluxos de dinheiro, como também recebem os maiores fluxos de imigrantes. Quando a coisa aperta, você confia em ir para os EUA. Os EUA em crise, com duas guerras, com Wall Street ocupada, parecem melhores do que todos os demais países do mundo, na opinião da maioria dos imigrantes, porque lá é fácil trabalhar, empreender, ter um negócio, ser muçulmano, ser ateu, e até comprar um busto barato de Stálin para colocar na sala de jantar se você quiser. É muito engraçado que o país que representa o capitalismo no mau sentido de Marx, inclusive num mau sentido justo, devido às estripulias financeiras, seja o país para o qual as massas oprimidas do mundo fogem assim que têm chance. Credibilidade é isso. Você não vai me contratar porque eu prometo uma tradução boa, vinda do mundo melhor. Você vai me contratar porque veja, aqui está a tradução, ela pode ter erros (todas têm), mas ela é bem melhor do que as alternativas realmente existentes. Com toda a sua perversidade financeira, o capitalismo real
mente existente é melhor do que todas as outras alternativas que existem no mundo concreto, isso na opinião de investidores e de imigrantes.

Num certo sentido, perguntar se o sistema financeiro internacional realmente existente tem conserto é pedir por duas respostas. A primeira, filosófica demais, é: claro que não, porque nada que é humano tem conserto, estamos fadados à nobre arte de empurrar com a barriga e minimizar as perdas. Nesse ponto, aliás, o sistema econômico descentralizado se mostrou tão mais eficaz em poupar vítimas que compará-lo com o sistema de economia planejada, ou socialismo, me parece até patológico num sentido dostoievskiano. Há cem anos um marido alcoólatra espanca a mulher e você quer lhe dar mais uma chance só porque ele toca “Imagine” do John Lennon no piano e você se derrete. A segunda resposta de certo modo decorre da primeira: algum ajuste será feito, mas não necessariamente será positivo. Claro que poderia ser feito algum ajuste positivo. Mas acho que se eu soubesse elaborar um ajuste convincente, específico, que fosse além do feijão com arroz que os liberais sempre repetem, meu nome estaria na lista de indicados ao Nobel. De todo modo, imagino que diminuir a alavancagem dos bancos seja importante, ainda que isso talvez viesse a custar em termos de prosperidade e nenhum político quer enfrentar a dureza de um ajuste deflacionário. Nenhum presidente ou candidato a presidente vai querer bater no peito e dizer que no governo dele vamos tomar o remédio amargo e cortar despesas. Além disso, considero fundamental que bancos e banqueiros respondam com seu capital privado. Assumir um risco não é em si um mérito que pede recompensa; é preciso arcar com os prejuízos. Até porque sempre somos mais prudentes com o nosso próprio dinheiro.

Por isso é que o capitalismo, tomado como a associação perversa de bancos centrais e financistas para manipular riscos e moedas, pode ser amplamente melhorado pelo liberalismo, por um governo mais estável, que tenha regras mais claras, que dê segurança jurídica, que não impeça a iniciativa individual (eu mesmo preciso de um alvará da prefeitura para traduzir em casa, isso é, eu preciso de um documento do governo para escrever no meu computador), que não queira planejar nem dirigir a economia, que não favoreça os grandes empresários. É claro que existe algo de utópico nisso no sentido de que nunca haverá um país perfeitamente liberal, mas esse é um ideal mais realizável, ou ao menos é um ideal ao qual se pode tender. Tanto é que os países que mais tendem a ele são os mais prósperos, em que, novamente, os imigrantes do mundo escolhem morar. Aqui mesmo no Brasil poderíamos ajustar nossa estrutura tributária, melhorar a facilidade de fazer negócios, de empreender, cortar subsídios diretos e indiretos a grandes empresas, derrubar as alianças entre o setor privado que vive de dinheiro fácil do Estado e o Estado que vicia o setor privado por meio de grandes projetos, e criar um capitalismo mais liberal, que seria melhor para todos, e não só para meia dúzia de políticos, de banqueiros e de empresários.

Políticos viciam a juventude em crack

Tenho lido no Diário do Balneário que agora querem dar meia passagem para todos os estudantes de 14 a 29 anos em transportes intermunicipais e interestaduais. O governo subsidiaria isso.

Acho que a melhor maneira de olhar o problema é pensar na meia entrada para espetáculos. Em que medida ela é defensável? Ora, na medida em que boa parte da produção cultural brasileira não dá prejuízo. Graças à Lei Rouanet, só tem prejuízo quem quer. O empresário pode estrear seu espetáculo com tudo pago. Dali em diante, é lucro. Eu acho, nesse sentido, que meia entrada talvez seja até pouco… Mas o mais interessante é que, do ponto de vista do estímulo que a meia entrada representaria para que o público saísse de casa, ao menos no teatro (a área que mais me interessa especificamente) ela nem funciona. Diversas peças vendem ingressos abaixo da meia em sites de compras coletivas e nem assim a casa fica meio cheia. Ou seja: o problema do teatro brasileiro certamente não é o preço do ingresso. (Até porque uma pessoa de classe média não paga 10 reais para ir ao teatro no Rio mas paga 100 dólares e passagem para os EUA para ver um espetáculo na Broadway.)

E agora a meia-entrada para transportes. É a contrapartida do lobby das empresas de transportes? É o preço da proteção concedida pelo Estado aos feudos de consumidores sem alternativas? Se for, então…

Mas, no meu caso, só posso dizer uma coisa. Eu trabalho com tradução. No dia em que o governo inventar que o estudante pode pagar apenas meia lauda, eu, que não tenho dinheiro no banco nem amigos importantes, vou dobrar meu preço, ou mudar de ramo.

Fico pensando na velha lenga-lenga de “o Brasil não vai para frente”. Se não vai, é porque o estudante quer pagar meia, o empresário quer subsídio, e o governo, para gerenciar tudo isso e dar ares de respeitabilidade à coisa, cobra também a sua taxa, naturalmente de quem não paga meia em nada nem recebe subsídio nenhum.

Os jovens políticos de hoje prometem meia, contribuem para esse esquemão, e vão lembrando de dois em dois anos àqueles seus eleitores que desde os 16 anos já votam quem foi que sempre garantiu seu vício em benesses estatais. Tudo sempre circundado daquele discursinho piegas que vai dizer que meia passagem, meia entrada etc. é a proteção da civilização ocidental, da nossa identidade, nossas raízes etc. Igualzinho a um empresário pedindo proteção estatal a seu feudo contra aqueles malditos empreendedores que vendem coisas mais baratas que os consumidores preferem.

Isso tem fim? Ora, como disse Alan Greenspan, we can always print money.

Bolsa-Empresário Editorial

Hoje leio no Globo sobre o programa Livro Popular (o texto só aparece na edição impressa). O governo vai encomendar edições populares às editoras, que vão vender os livros “para livrarias e afins”, e estas repassarão os livros às bibliotecas. O objetivo é estimular a leitura.

Mais uma intenção nobre com resultados provavelmente adversos? Vejamos.

1. O governo jamais vai “estimular a leitura” desse jeito. O governo não tem prestígio para estimular diretamente esse tipo de coisa.

Uma medida do desinteresse por livros é o seguinte. Assim como nos tumultos recentes de Londres as livrarias foram poupadas, o mesmo já aconteceu no Brasil. Tenho muitos amigos no mercado, que sempre recordam o arrastão que passou pela na Rua Francisco Sá, aqui em Copacabana, poupando integralmente os livros que o sebo Mar de Histórias colocara na rua. Creio que a maioria das pessoas no Brasil preferiria beber um copo de detergente a ler 100 páginas. Agora contrate a melhor agência de publicidade do mundo para ver se alguém sabe como mudar essa situação.

E aqui vai, de graça, que eu tenho espírito cívico, uma pequena ideia. Se o objetivo fosse mesmo fazer uma campanha que funciona, o ideal seria fazer uma operação totalmente por baixo dos panos. Personagens de novela, atores, jogadores etc. falariam de romances e de poemas. Afinal, um jogador com um corte de cabelo ridículo tem mais chance de estimular as pessoas a mudar esse tipo de comportamento do que o governo.

Agora, eu não sei quanto ao público, mas eu mesmo tenho uma aversão instintiva a tudo que é ou que parece campanha para qualquer coisa. Sempre que dizem: “vou te convencer”, já me armo para não ser convencido.

2. Quero só ver que livros serão escolhidos pelo governo. Nosso grande agente de demanda vai enriquecer muita gente. Mas assim é o Brasil: rentista até nos livros. Não competimos pela atenção do público, competimos pela atenção e pelo dinheiro do governo. Hoje, aliás, eu tendo a crer que essa bomba só pode ser desarmada desde dentro. Mesmo que os títulos escolhidos sejam de domínio público, os editores vão ganhar rios de dinheiro. Você pode achar isso ruim, mas lembre-se de que se o governo fosse ele mesmo cuidar da impressão dos livros eles sairiam 100 vezes mais caros.

3. Por que os intermediários? Ah, sim, isso me faz voltar ao que acabo de dizer. Pagamos impostos e o governo redistribui. Para os intermediários. Amigos do rei, agora escolhidos por licitação e edital; eis a suposta diferença que dá ares de democracia a uma “aristocracia” burocrático-burguesa.

Não sei se é ilegal no Brasil as editoras tratarem diretamente com as bibliotecas (não ficaria surpreso). Mas essa escolha de intermediários para um negócio que realmente não precisa deles tem todo o cheiro do tipo favorito de redistribuição de renda praticado pelo nosso governo. Creio que esse é o sentido profundo do que disse o presidente Lula no início de seu primeiro mandato: “Neste país, a direita está no poder há 500 anos.” E ele, é claro, não foi bobo de mexer em algo tão tradicional.

É importante eu fazer um aparte aqui para aqueles que acham que estou assumindo uma postura de “neutralidade” ou sei lá o quê. Estou questionando uma estrutura, não um grupo de favorecidos. Uma estrutura perversa movida numa certa direção não deixa de ser perversa. Favorecimento de empresários do ramo editorial não é diferente de privilégios para grupos minoritários ou majoritários.

4. Se é inevitável que o governo faça alguma coisa, prefiro que dê iPads para todo mundo. Pelo menos assim as pessoas poderão vender os iPads e comprar algo que efetivamente querem.

A jornalista, a subsecretária e o diplomata

Boa parte do trabalho jornalístico consiste em procurar pessoas que estejam a fim de proporcionar, de livre e espontânea vontade, seus momentos menos memoráveis, e assim atender ao sublimes propósitos da venda de jornais e do aumento do número de visitantes. O povo tem o direito de saber! – que fulano falou bobagem. Uma espécie de paparazzi verbal da política etc. Não que eu não ache que os funcionários públicos (eleitos, escolhidos ou concursados) não devam ser tratados de maneira mais dura no exercício de suas funções. Mas bem.

Hoje o Diário do Balneário encontrou Aparecida Gonçalves, a Subsecretária de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que esperneia contra um romance americano que conta a história de um turista sexual no Rio de Janeiro:

Ao saber do conteúdo de Seven days in Rio, que custa US$ 16 no site da Amazon, a Subsecretaria de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, órgão diretamente subordinado à Presidência da República, anunciou que pedirá retratação oficial – mesmo sendo uma obra de ficção.

Aparecida Gonçalves, que chefia a subsecretaria, promete acionar o Ministério das Relações Exteriores através de um ofício para que ele entre em contato com a embaixada dos EUA.

– O turismo sexual ainda não é uma página virada no Brasil – reconhece Aparecida. – Mas nós temos acordos bilaterais que versam sobre políticas públicas para mulheres firmados com Estados Unidos, Portugal, Inglaterra e Itália, e eles precisam ser respeitados. Nenhuma brasileira pode ser tratada assim, nem mesmo na ficção. E o governo de um país tem que responder pela atitude de seus cidadãos. Vamos cobrar isso deles.

A subsecretária promete contactar o Itamaraty. Eu gostaria de estar no Itamaraty para dizer-lhe:

Prezada Sra. Subsecretária:

Venho por meio desta responder à solicitação de Vossa Sapientíssima Excelência para que o governo brasileiro gaste o dinheiro dos contribuintes se manifestando contra um obscuro romance americano:

1. As pessoas que leem romances provavelmente conseguem distinguir entre a ficção e a realidade. Aqui em Brasília há uma Livraria Cultura. V. Sap. pode dirigir-se àquele local e verificar a variedade de narrativas que não correspondem à realidade. Se o decoro me permite uma observação pessoal, quando era adolescente a escola me obrigou a ler Dom Casmurro, de Machado de Assis. Não creio que o meu caso seja especial, mas não passei a enxergar todas as mães como beatas, todos os melhores amigos como traíras, e todas as esposas como safadas.

2. Vamos tentar reformular o pedido. V. Sap. quer que o governo brasileiro proteste contra uma obra de ficção escrita num país estrangeiro por um autor estrangeiro em que brasileiros fictícios seriam retratados de maneira degradante numa narrativa satírica? Só posso prometer solenemente, com a mão no peito, um pouco acima do meio da gravata, onde ela já começa a afinar, cá diante do Microsoft Word, que quando os personagens vierem dar queixa vamos direto ao Conselho de Segurança.

Subscrevo-me,

Diplomata do Mundo Real, Concreto, Lebenswelt da Silva

Uma resposta liberal bem fácil (sobre surdos)

No site Observador Político, levantam a pergunta: “os surdos devem estudar em escolas regulares ou especiais?”

Dando uma resposta ideal, lá vai:

Se os surdos quiserem estudar numa escola especial, e se houver uma escola especial para recebê-los, então que estudem numa escola especial.

Se os surdos quiserem estudar numa escola regular, e se houver uma escola regular para recebê-los, então que estudem numa escola regular.

Passando ao plano do governo realmente existente, por que essa pergunta tem de ser entendida como se fosse dirigida a uma única autoridade nacional central? Por que os surdos e aqueles que querem prestar serviços a surdos não podem conversar entre si, sem pedir e sem ter de ouvir a opinião dessa autoridade?

Pessoalmente, eu não tenho a menor ideia quanto à melhor escola, regular ou especial. E provavelmente nunca terei. A arte é longa, a vida é breve, as questões são muitas, eu já escolhi algumas, já sinto que não dou conta delas, e vejo cada vez mais que ter acesso ao Google não é ser um homem da Renascença em potencial.

Em suma. Não sei, só posso imaginar que as duas alternativas tenham vantagens e desvantagens peculiares. Respeito imensamente quem se dedicou à questão. Mesmo assim, não creio que a decisão a respeito de como melhor servir aos surdos seja uma decisão política.

Aqui está boa parte do que se chama de discussão política. Uns acham que cabe ao burocrata definir e garantir certos direitos. Outros, como eu, acham que a garantia (e até a realização) de certos direitos dependem da ausência desse mesmo burocrata.

O grande império da bullshitagem

Estamos em Recife. A mãe do surfista lhe diz: “Meu filho, cuidado na hora de surfar, que aqui tem tubarão.” O surfista sente que tem o direito de surfar sem ser incomodado. E é atacado por um tubarão. Será que a mãe é culpada de participar de uma cultura de culpa da vítima? Ou será que ela simplesmente está exercitando um pouco de prudência, isso é, admitindo que o mal existe e que há ocasiões em que estamos mais suscetíveis a ele? Mas Pedro, você está abusando da analogia. Se uma mulher é estuprada, ela é estuprada por um ser humano, que pode ser educado, que tem livre arbítrio. Tudo bem, então você fica aí contando com o pequeno Rousseau rosado e bondoso que existe na alma de cada ser humano, que eu, quando tiver filhas, aviso para elas que só os bobos reclamam para si o sacro direito de dar bobeira. O que, é claro, não significa que eu esteja dizendo que os culpados de males não devam ser processados segundo a lei, nem que estejam justificados. Enquanto você fica aí protestando contra a ilegitimidade do mal, ele cai na sua cabeça de qualquer jeito.

Estou aqui escrevendo isso, aliás com uma certa vergonha, porque o negócio é deveras básico, porque leio hoje no jornal que haverá uma Marcha das Vadias ou Freakwalk carioca, em que mulheres virão praticamente até a porta da minha casa dizer que são lindas, gostosas, desejáveis e sublimes, que podem “exercer sua sexualidade” como quiserem, e que ainda têm o sacro direito de determinar a opinião que outras pessoas têm a respeito. Mas é mesmo o mundo do rentismo de imagem.

O que me interessa mesmo é o aspecto paradoxal desse desejo e a trajetória que esse tipo de movimento vem tomando nas últimas décadas, sempre se dirigindo para algo mais sutil, mais além. Não conheço uma única pessoa, e olha que eu conheço uns conservadores bem louquinhos, que não acredite em igualdade jurídica, por exemplo. Mas não é isso que os indignados do mundo querem. As mulheres certamente já perceberam que poder votar, poder trabalhar, poder fazer tudo que os homens fazem não lhes garantiu de jeito nenhum a famosa felicidade. Um belo dia os gays vão acordar e perceber que, mesmo que o casamento civil tenha resolvido alguns de seus problemas práticos reais, os problemas interiores continuam lá, talvez piores, porque foi feita uma aposta numa conquista e o que veio foi a ressaca cósmica. Na verdade, se todos os politicamente corretos do mundo tivessem a oportunidade de matar o Papa com um taco de beisebol, e babar catarticamente sobre a ruína do conservadorismo aniquilado, sua alegria duraria 10 minutos, e no dia seguinte eles começariam a se matar uns aos outros. Porque ainda haveria resquícios da cultura conservadora. Porque a opressão foi introjetada. Porque os esquemas culturais persistem. Porque existe alguma coisa sutil que os fere, e que é manifestada pelo outro, o outro que for o alvo mais fácil. Isso até a extinção mútua. Física, aliás.

Semana passada mesmo a Parada Gay em São Paulo mostrou definitivamente fazer parte do grande império da bullshitagem. Usam imagens de santos católicos, claramente violando a lei de ultraje a culto (essa lei é contrária à liberdade de expressão, e eu sou contrário a ela, mas é a lei, ué), e pedindo a criminalização de discursos contra o homossexualismo. Estou ainda tentando entender como isso poderia não ser interpretado como uma criança que quer ganhar o direito de bater na outra sem que a outra possa sequer sonhar em revidar. Every bully believes he was bullied first, e antigamente não faziam filmes para dizer que a criança que batia nas outras na escola tinha problemas em casa etc?

Não, é claro, que a Marcha para Jesus não possa sofrer uma crítica semelhante. Para cada conservador empenhado em denunciar o grande perigo homossexual, drogado e retumbante que se estende sobre o Brasil, há um militante politicamente correto para denunciar a podridão direitista que impede as árvores de dar fruto e o céu de ser azul. Não perceber a gemelaridade desses movimentos, unidos pelo desejo de forçar o prestígio para a própria identidade, bradando orgulho do alto dos telhados, é coisa de quem hoje em dia no Brasil diz-se escritor e jamais considerou que isso teria algo a ver com capacidade de observação. “Marcha para Jesus”: eu sou católico e jamais me ocorreu que eu devesse ter “orgulho” disso, como se não fosse completamente pirado eu reclamar para mim os méritos dos santos ou dos construtores de catedrais. A religião não é meu time, o embate (debate não, porque, bem) público não é a Copa do Mundo: é o mundo, ao qual prefiro renunciar, porque é uma perda de tempo. Converter-se não é aderir ao time “certo”. Você pode aderir à causa que considera a mais justa, e quem não faz isso?, e esfregá-la na cara dos outros, e continuar sendo o mesmo idiota de sempre, o que aliás era aparentemente óbvio até coisa de 20 ou 30 anos atrás.

Leitura ideológica, guerra total

Dizem que, com o alistamento militar obrigatório, a Revolução Francesa e Napoleão Bonaparte inauguraram a guerra total. A resposta foi a guerra de guerrilhas. E quando, já no século XX, toda a população passou a tomar parte no esforço de guerra, bem, toda a população tornou-se alvo. A guerra estava por toda parte. E hoje, em resposta ao poder bélico dos maiores, há o terrorismo. A violência está potencialmente por toda a parte.

Por analogia, já ninguém mais julga haver discurso inocente. Quando você fala, está de um lado ou de outro; não está falando como ser humano para outro ser humano. Todo discurso tem interesses, oblíquos ou diretos. Os pequenos terroristas ideológicos creem que “todo ato é político”, inclusive levantar da cama de manhã, para acreditar que estão sofrendo uma agressão e que portanto têm o direito de reagir. Aliás, na minha experiência, quem fala que todo ato é político não tem bom caráter: fuja, fuja simplesmente. Porque essa pessoa acha que todo ato é violento e portanto ela vai reagir.

Posso estar ficando paranoico, mas esse clima intelectual e as possibilidades tecnológicas de armazenamento de informações me fazem ver o futuro como uma grande leitura de Miranda Rights perpétua: tudo o que você disser pode e será usado contra você. Mas nem é disso que eu queria falar.

Eu queria falar de como a interpretação ideológica interfere na apreciação artística. Hoje em dia o mais comum é que tudo seja julgado como burguês ou proletário, conservador ou revolucionário. Toda obra de arte já virou produto artístico e, com isso, componente da identidade de alguém. Antes de olhar o objeto, já fazemos um julgamento do tipo de pessoa que poderia gostar daquilo, e consideramos que essa pessoa gosta daquilo porque confirma a sua visão de mundo, seja do mundo como ela acha que é, seja do mundo como ela acha que deveria ser.

Os melhores autores de hoje (penso por exemplo em David Mamet) estão cientes desse risco e escrevem de modo a tentar driblar essas interpretações. Mas o problema está além deles. Não há praticamente nada que possa levar uma feminista mais acirrada a não enxergar qualquer obra sob o aspecto do feminismo. O mesmo vale para o religioso que vai logo querendo saber se a obra é boa ou má para a alma. Nenhum dos dois é um espectador de boa vontade; os dois só querem elaborar seu index prohibitorum particular. E, dependendo do ânimo, transformá-lo em lei. Mas até por isso também podemos achar que o index politicamente correto é uma imitação, uma resposta às velhas censuras religiosas. Revolucionários e reacionários querem salvar a sua alma, usando os mesmos meios, com um discurso estruturalmente igual, ainda que com referências distintas.

Estamos em guerra, senhores. E, mesmo que você não queira entrar na guerra, você não pode fingir que ela não existe. Já há algum tempo, só os espectadores e ouvintes menos cultos é que não julgam estar numa trincheira ideológica, defendendo esse bem sacrossanto e intocável que é a sua própria identidade pública, como se ela de fato lhes pertencesse.

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