Lebenswelt

Ahnest du den Schöpfen, Welt?

(Percebes o Criador, ó Mundo?)

– Schiller, “Ode an die Freude”

Todas as pessoas que querem “um mundo melhor” não têm a menor idéia de como seja o mundo real. São pessoas que tomam a essência da realidade por seus aspectos mais exteriores, travestidos de um sentimentalismo fabricado em agências de publicidade, cujos funcionários, por sua vez, têm tendências marxistas ainda que não sejam capazes de citar uma única linha de O Capital ou de qualquer outra obra de Karl Marx. Para demonstrar isto, basta lembrar que o socialismo, apesar de todas as suas dezenas de milhões de vítimas, é identificado com “o Bem”.

O que define o marxismo, assim como seu pai, o epicurismo, é justamente a falta de amor à realidade, ao mundo como tal. Não vá pensar o leitor que a minha coluna se chama “O mundo como mundo” por um desejo de brincar com palavras, mas sim por já declarar guerra a priori a qualquer tentativa de impor um conceito inventado por mim à realidade das coisas, que eram de um jeito quando eu nasci e continuarão sendo deste mesmo jeito quando eu estiver sentado no assento etéreo.

Mas eu não tenho a intenção de, neste artigo em particular, ficar esmiuçando as podridões marxistas. Quero ir muito mais fundo e mostrar que a porcaria inicial está no simples desejo de sobrepor um conceito à realidade, de inverter a ordem e tentar impedir a prática de desmentir a teoria. O desejo de transformação do mundo nasce justamente desta arrogância infantil, da pretensão de entrar na obra de Deus como co-autor, sem perguntar a opinião do autor – e, na maior parte dos casos, dizendo até que Ele não existe – associado à simples incapacidade de perceber o que de fato vem a ser o mundo. Como não se sabe o que é, por que não acreditar que uma invenção da imaginação tem o status de realidade? Afinal, para uma cabeça destas, o mundo é construído, e não dado. E aí o ódio ao burguês ou ao judeu se torna, kantianamente, uma categoria a priori na mente: se o mundo é construído pelo sujeito, e não percebido por ele, então eis justificada qualquer posição a respeito de qualquer coisa. O problema é que o mundo é dado, e não construído. Deus não pediu a ajuda de ninguém para fazer o mundo e muito menos entregou o conserto dele para qualquer pessoa, como se achasse que devia levá-lo à oficina ou algo assim. Então, antes de querer sair alterando tudo por aí, qualquer um que tenha esses surtos deveria se fazer essas perguntas, ao invés de tomar seus simples sentimentos, suas projeções, como explicações globalizantes e imperativos categóricos para tomada de ação.

Especialmente porque Deus não é um sentimento e muito menos um passo dado no escuro, como se a fé fosse um salto cheio de esperança nas trevas, uma aposta contra a gravidade do abismo. Não: a grande marca de Deus é a inteligibilidade. Deus se dá a conhecer a quem quer que tenha sinceridade e humildade para tanto, e eu digo conhecer, ter a certeza de que ele existe e é quem está por trás de tudo. Imagine só: Deus inventou o mundo e tal, e te deu cabeça para pensar pra quê? Ele seria um Deus muito sádico se nos obrigasse a apostar na sua existência e não se desse a conhecer a todo momento.

A realidade inteira aponta para Deus. O Criador deixou a sua marca em tudo o que existe. É claro que em certos momentos o Sentido nos parece mais presente do que em outros, que nem sempre se consegue manter essa tensão contemplativa máxima, mas os poucos momentos em que nos vemos frente à frente com a Beleza e a Verdade da criação divina são suficientes para resgatar todo o mal-estar da existência. Um único momento vale uma vida, e infelizmente há muitas vidas que não tiveram um só destes momentos.

Quem já viveu isto sabe bem do que falo. Não se troca a visão da rosa em meio ao caos pela arrumação arbitrária do caos. Mas, para quem nunca lançou um olhar sincero para o mundo, para quem nunca viu que Deus está no nascer do sol, nos olhos da amada, no suco de amora e nas pedras e tudo o mais, não me admira que só reste a reforma da sociedade. O que, no fundo se reduz a dizer que o reformador é bom e os reformados são maus: uma infantilidade muito da besta.

Não acredito que se possa ter um verdadeiro amor pelas criaturas sem antes amar o Criador. Quem não ama o Criador não é capaz de amar o que há de eterno em uma pessoa, mas somente seus aspectos mais acidentais e transitórios, o que, por sua vez, não configura amor nenhum, mas somente uma paixão, no sentido de pathos. E, não a amando, sendo incapaz de contemplá-la como deve (pois a contemplação está voltada para um objeto muito menor do que ela própria), deseja alterá-la, fazendo-a conformar com um ideal abstrato, que, por definição, é uma bela porcaria e infinitamente pior do que aquilo que Deus mesmo planejou. Por isto mesmo acredito que todo desejo moderno de reforma da sociedade é mal-intencionado.

A compaixão de que Jesus nos fala é justamente a capacidade de perceber o aspecto trágico da queda, o drama do eterno em meio ao transitório. Ao mesmo tempo, é somente amando este mundo na sua totalidade, com todos os seus aspectos transitórios, que se pode perceber a unidade da realidade e a presença de Deus, que, como um maestro, rege esta imensa sinfonia que é o mundo da vida.

O princípio de autoria

Se quem dá coices são os cavalos, e não a cavalidade,

do mesmo modo quem age é o homem concreto, e não a sociedade.

– Olavo de Carvalho (O Jardim das Aflições, Diadorim, pág 222)

Vou logo dizendo que escrevo este artigo porque ele me pareceu o mais urgente de todos. Vou dizer umas coisas que me parecem altamente óbvias, mas que tenho visto sendo negadas por aí com uma certa freqüência. Talvez a situação seja mais alarmante do que eu penso… Mas bem. Vamos lá.

Todo mundo que ainda não atingiu um estado verdadeiramente patológico sabe o que pensa e o que quer. Basta evocar a própria consciência por alguns minutos. Basta pensar a qual fim, efetivamente, visam suas ações. Ainda que sentimentos brotem de você como que do nada, é você, é o sujeito individual concreto quem decide o que fazer com eles. Por exemplo: eu posso ter vontade de matar alguém, mas não o faço. Ao mesmo tempo, eu posso amar alguém, mas posso escolher não demonstrar esse amor, escondê-lo… E não posso culpar o objeto do meu amor por me ignorar, a não ser que ele seja o Thomaz Green Morton (na verdade, não posso culpar ninguém porque não posso obrigar ninguém a gostar de mim). Daí aproveito logo para reiterar que não vejo nenhum problema com “preconceitos ocultos”, desde que permaneçam ocultos – afinal, como diz o autor da minha epígrafe, “preconceito oculto é algo tão letal quanto “porrada implícita”.

Por isso que você só pode ser culpado da intenção que realiza, e não da intenção latente. Quem faz Direito sabe muito bem que as pessoas respondem por seus atos e pela cadeia de fatos em que aqueles se inserem, e não pelas intenções escondidas.

Mais exemplos. Leitora: se estamos namorando, e eu traio você, o que acontece? Pode ser que eu só estivesse com vontade de dar uma saída com aquela menina e mais nada, mas o “dar uma saída com aquela menina” – ainda mais se levado às últimas conseqüências – tem uma implicação da qual eu estou perfeitamente consciente. Se a conseqüência é que você não tolera sua nova posição de corna, então eu devo arcar com ela. Você, leitora, armará um escarcéu, me trairá, dirá para todas as suas amigas que eu não presto etc. E você sabe muito bem o que me diria se eu resolvesse dizer que quem te traiu foi a minha testosterona, não é? A não ser que já exista uma ideologia de corno, sei lá. Se até maconha tem ideologia e deputado, por que não?

Bem, o fato é que as implicações reais dos nossos atos vão, muitas vezes, além da nossa consciência; e não é porque as desconheçamos que elas se tornam inexistentes. Ainda que, te traindo, não me passe pela cabeça (olha, tem pessoas que realmente não pensam. Tratarei delas depois) que você pudesse se sentir ultrajada com isso, você se sente – é uma conseqüência impremeditada. Agora há pouco mesmo eu esbarrei, no mesmo Jardim das Aflições, com uma frase de Max Weber: “a História é o conjunto das conseqüências impremeditadas das ações humanas”. No entanto, o sujeito causador está lá: quem te traiu fui eu porque quem saiu com a outra fui eu. A responsabilidade, ou a possibilidade de responder por algo, o princípio de autoria, está tudo aí.

Admito um contra-argumento: mas e se a pessoa não estiver consciente do que faz? É bem verdade que há pessoas com um coeficiente gigantesco de inconseqüência. Porque tem gente que ou não sabe o que faz ou sabe muito bem e está mal-intencionado. Os socialistas, por exemplo. Após mais de cem milhões de mortos (mais que todas as guerras do século), alguém que se pronuncie a favor disto só pode ser idiota ou canalha. E quem defende alguma posição socialista numa universidade católica e “pontifícia” (o Capeta sabe o que ela tem de pontifícia) só pode ser mais idiota ou mais canalha ainda.

Mas voltando ao nosso conturbado romance, leitora: se eu traio você, só há essas duas possiblidades. Ou eu te traí sabendo o que fazia, e sou canalha, ou eu te traí sem saber, e sou idiota, inconseqüente (aliás, quem aceitar a desculpa de que o outro “não sabia o que estava fazendo” é mais idiota ainda, merece ser traído mesmo). Numa palavra melhor: inconsciente. E não há mal maior do que a falta de consciência.

Que dizer, então, das pessoas que não têm a menor consciência do que fazem? Que se deve ter alguma pena delas, e nunca achar que elas têm algo importante para ensinar (a não ser muito acidentalmente, e mesmo assim é melhor duvidar um pouco). Porque, se a conexão entre autor e ato e inevitável, por outro lado a conexão entre ato e consciência do autor não é tanto. O problema todo é que hoje em dia eu vejo muita gente que prefere fazer a apologia da irresponsabilidade, ou seja, preferem dizer que não são senhores de si mesmos, preferem sempre apelar para causas externas, como se fossem coitados cerceados por intransponíveis limites que o mundo lhes impõem. Ora, quem nega a culpabilidade é coitado, é objeto inerme, fantoche nas garras de forças falsamente superiores que acabam se tornando superiores mesmo. E, amigo, se um pedaço de chocolate é mais forte que você, ah, você está é mal…

Pode até ser que a maioria se enquadre nisto aí: a maior parte das pessoas tem alma de escravo, já dizia o bom Aristóteles. Querem atribuir a outro suas responsabilidades, querem alegar apenas estarem “cumprindo ordens” ou que são “vítimas” de alguma coisa: do tesão irrefreável, da gula, do instinto assassino, do sistema, da família opressora… Essa gente merece um governo totalitário mesmo, merece o código de trânsito. Querem ser apenas animais altamente amestrados mas com a liberdade de serem animais, isto é, de dar vazão a todos os instintos. Tentar chegar a ser humanos, jamais.

Ciência versus filosofia?

Iniciamos com este artigo uma coluna cujo assunto será a consideração das relações mútuas entre os desenvolvimentos da ciência e da filosofia.

Vivemos em uma época na qual os filósofos, em sua maioria, estão muito afastados dos cientistas. Historicamente, ciência e filosofia surgiram juntas e durante muito tempo se confundiram; a própria física começou como filosofia natural. À medida em que o tempo passou, e a ciência ganhou uma complexidade cada vez maior, e nossa compreensão do mundo e do universo – pelo menos a nível fenomenológico – se expandiu, porém, uma atividade ficou cada vez mais distinta da outra. À medida em que o território da ciência se expandiu, suas fronteiras – para além das quais está a metafísica e a filosofia – pareceram cada vez mais distantes, para muitos, da quase totalidade da atividade científica. Desse modo, chegamos a uma cisão suspeitíssima na qual acredita-se que é possível produzir ciência de alta qualidade sem nunca gerar qualquer pensamento filosófico novo e que seja possível filosofar sobre a realidade (supondo que exista uma) sem conhecer ou se reportar à ciência.

Ora, em ambos os sentidos estamos cometendo erros crassos, e prejudicando – em certos casos impedindo – tanto o progresso da ciência como o da filosofia. Por um lado, a ciência não pode avançar – ou sequer existir – sem a filosofia. As estruturas filosóficas, conscientes ou não, constituem a ferramenta através da qual tentaremos interpretar a realidade – e isso vale tanto para um bebê recém nascido como para um grupo de pesquisa em física nuclear. Até aí, poderíamos conceber a filosofia como fundamento implícito mas dissociado do objeto da ciência. Só que o conhecimento não consiste apenas em preencher com percepções e experiências uma forma já pronta. Ao contrário, os grandes saltos de compreensão se dão quando reformulamos nossas formas (geralmente ao depararmos com percepções que não sabemos onde encaixar). De fato, o tipo de conhecimento que a ciência pretende obter sobre a realidade está muito mais nas estruturas que descobre serem “adequadas” para interpretá-la do que no acúmulo infinito de percepções. Assim, todo grande avanço na ciência – aquele tipo de avanço que alarga suas fronteiras – não só requer mas consiste em uma mudança nas estruturas filosóficas através das quais pensamos a realidade.

Por outro lado, em particular pelo exposto acima, a filosofia não pode ficar alheia aos avanços da ciência. À medida em que a ciência avança, ela penetra em domínios que antes pertenciam à filosofia. Nossa apreensão da realidade se altera através das eras e, aos poucos, questões que antes pertenciam por excelência ao domínio do debate filosófico puro, e demarcavam até mesmo os limites do cognoscível, passam a poder ser tratadas cientificamente. Dessa forma, questões como “Que são as estrelas ?”, “O que é a luz ?”, “Será o universo infinito ?”, “De onde surgiram os seres humanos ?”, “O tempo passa com a mesma velocidade em todos os lugares ?” que em diferentes épocas já foram – e facilmente esquecemo-nos disso – questões filosóficas, hoje são tratadas pela ciência. Tal mudança de situação não impede incursões da filosofia pura em nenhum desses assuntos – porém é fundamental que quem se disponha a fazê-las considere – e para tanto precisará conhecê-los – os argumentos científicos relevantes. Já outras questões como “O que é o bem ?”, “Por que estamos aqui ?”, “Existe um Deus ?”, “O futuro está predeterminado ?”, ainda hoje são, eminentemente, competência da filosofia. Talvez algum dia se torne possível tratá-las no âmbito da ciência, talvez não; a filosofia é mesmo mais abrangente que a ciência. No entanto, o filósofo deve perceber que as descobertas científicas revolucionárias não apenas apresentam conseqüências filosóficas profundas, mas mais do que isso, consistem em reformulações filosóficas, e muito bem fundamentadas.

A ciência expandiu-se tanto nos últimos séculos que muitas vezes filósofos e cientistas perdem de vista que são atividades com uma fronteira – freqüentemente nebulosa – em comum, e que quanto mais a filosofia fala sobre a realidade concreta, mais próxima ela está da ciência, assim como quanto mais a ciência se universaliza, mais próxima está da filosofia pura. Pretender conhecer a realidade e fazer ciência sem empregar a filosofia é como tentar construir a cobertura de um prédio antes de lançar as fundações. Porém, fazer filosofia ignorando a ciência é como estudar o problema genérico das fundações ignorando os arranha-céus que já estão construídos por aí.

Por mais forte e clara que seja essa ligação, há porém uma forma de sabotá-la, que desfruta de considerável popularidade : negar não só a acessibilidade mas a própria existência de uma realidade objetiva, concreta, suposição básica sem a qual a ciência se torna não só desconectada da filosofia mas completamente inviável. A conseqüência direta dessas concepções subjetivistas e relativistas é um universo no qual todas as opiniões têm o mesmo valor e ninguém está efetivamente “com razão” sobre coisa alguma. Deliciosamente “democrático” ? O que de fato ocorre é que demolida a distinção entre o pensamento/sentimento de cada um e tudo o que está fora de nós, entre o que projetamos nos outros e o que vem de nós mesmos, fica, de fato, impossibilitada a comunicação e compreensão do outro, dado que estamos efetivamente negando seu direito de existir independentemente. E, como nada faz sentido mesmo, estamos isentos de qualquer responsabilidade e só o que pode prevalecer é nossa vontade pessoal. Em uma tal situação, só nos resta submeter (a marretadas) continuamente tudo e todos a nossas ilusões e fantasias (ao invés de, ao contário, adaptar nossas concepções e representações internas ao que vemos),num orgasmo de egocentrismo esquizofrênico.

Felizmente, essa visão de mundo se revela não somente dantesca mas também de pouca consistência. Afastada a possibilidade da unificação de todas as nossas realidades subjetivas em uma única e universal realidade objetiva, qualquer proposta filosófica fica transformada em um fim em si, em um delírio exclusivamente formal. E, de qualquer forma, não adianta espernear e dizer que não é possível fazer o que já está efetivamente sendo feito. A evidência mais contundente da existência de algum tipo de realidade objetiva é justamente o gigantesco e cada vez maior sucesso que a ciência vem obtendo em operar baseada nessa suposição.

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