A elegia obsessiva: I

A elegia obsessiva: I
Bruno Tolentino
Anulação & outros reparos (edição definitiva)
Rio de Janeiro: Topbooks, 1998

Embriagado de luz, tão à vontade
no barco de Odisseu quanto o velame,
ouves soprar as flautas de um enxame
que é mera tentação, pura metade

de uma meia-ilusão… Mas não te alarmes,
meu coração, o vento vem mais tarde,
Ítaca vai voltar: Circe e seus charmes
conseguem inebriar a alma covarde,

mas não por muito tempo. Eqüidistante
das coisas todas como a poesia,
o vento leva o ser sempre adiante

malgrado a escuridão e a calmaria;
calma, meu coração: virá o instante
em que te vais somar à ventania…

Leitura e comentário: 2m03s
[audio:elegia.mp3]

Na semana passada vimos o primeiro poema do ciclo de “Ifigênia”, publicado em 1956 por Octavio Mora, que é, se não pai, o irmão mais velho do primeiro poema da “Elegia Obsessiva”, que Bruno Tolentino começou a esboçar (segundo ele mesmo no posfácio da edição definitiva de Anulação) em 1958. Justificar a irmandade vai exigir atenção a detalhes talvez mais técnicos do que o leitor fosse apreciar neste momento, mas é um exercício de análise que, feito uma vez, amplia para sempre as capacidades de leitura.

A primeira semelhança entre os dois poemas é melódica. Comparemos os versos iniciais:

Mora:Como estátua de vento, pedra gasta

Tolentino:Embriagado de luz, tão à vontade

É fácil ouvir a semelhança, mas se quisermos apontá-la temos que dar conta do seguinte:

1. A primeira vogal de cada verso é anasalada pela consoante nasal imediatamente posterior.

2. Na terceira sílaba temos a mesma vogal “a” tónica: “esTÁtua” e “embriaGAdo” (o “ia” do embriagado tem que ser pronunciado como um ditongo).

3. Os dois versos têm um jogo vocálico inicial semelhante. Mora: o-(u)i-á (a vogal final de “como” vai entre parênteses por ser bastante átona em relação às demais vogais; e lembre que falamos “istátua”). Tolentino: e-ia-á. No início, uma vogal média, depois uma alta, depois uma baixa. As duas primeiras vogais são fechadas e a última é aberta. Acrescente a isso a nasalidade inicial e verá de onde vem a sensação de que algo se represa – “Com”/“Em” – , depois se comprime – “is”/“i” – e por fim se solta. Em Tolentino o efeito da compressão é um tanto atenuado por o “i” estar seguindo de um “a” na mesma sílaba, mas como aparece na palavra é “embriagado” o significado pode explicar a estratégia sonora. Vai-se da estátua definida à embriaguez mais indefinida.

4. Os dois versos são heróicos, isto é, têm sílaba forte na sexta posição.

5. Enquanto no verso de Mora há nasalidade na sexta posição – “ven” – , no de Tolentino a nasalidade está apenas próxima, na sétima – “tão”.

6. Há mais um esquema similar nas vogais finais: “pedra gas” e “à vonta”.

Os dois poemas falam em vento e emulam lufadas em seu ritmo: Mora abusa dos dois pontos para não permitir que as frases terminem, mas sejam reforçadas o tempo inteiro, numa verdadeira ventania. Tolentino termina as frases duas vezes com reticências – o vento amaina até acabar-se – , uma vez com ponto final, numa frase que, graças ao uso de sílabas travadas (sílabas terminadas por consoante ou semivogal) também vai se tornando mais vagarosa – “mas não por muito tempo” – e usa duas vezes o ponto e vírgula para obter um efeito similar ao de “Ifigênia”. O segundo uso é interessante porque há a súbita interrupção em “calmaria” seguida do pedido de calma ao coração. Este poderia ser um contraste relativamente banal se não remetesse a idéias fundamentais da poesia de Tolentino, idéias que já discuti em Os falcões. O coração deve se acalmar à espera do vento, que virá; e só será pleno quando se somar a ele. No momento, é preciso resistir aos encantos de Circe, que são os encantos da Idéia, da falsa beleza petrificada – mas não se deve deduzir daí uma semelhança com a “estátua de vento” de Octavio Mora, que está tratando de outro assunto. Como irmãos, os poemas têm semelhanças à primeira vista e grandes diferenças de personalidade.

Não é possível terminar essa breve consideração sobre o poema sem dizer uma pequena palavra sobre a “Ítaca” do sétimo verso. Não sei se Tolentino já havia lido o famoso poema de Kaváfys (no original grego também), mas Ítaca, a pátria a que Ulisses tentou voltar por 10 anos após os 10 anos da guerra de Tróia, normalmente é o símbolo da sabedoria conquistada enquanto se procurava a inocência perdida, ou do retorno a um lugar que permanece enquanto aquele que retorna foi alterado. Nenhum dos dois temas reaparece na “Elegia obsessiva” ou mesmo na obra de Tolentino, dedicada à apologia do belo necessariamente perecível. Também pode parecer estranho dizer que Ítaca vai “voltar” e que “o vento leva o ser sempre adiante”, mas isto parece sugerir o conflito entre os desejos de retorno e de aventuras.

Ifigênia

Octavio Mora. Ausência viva.
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956

Como estátua de vento, pedra gasta,
sopra Ifigênia sempre na memória,
e estamos nela sem escapatória
como o tempo nas pedras: só se afasta
(devido à semelhança com o vento
de seu todo), para estar em nós, aérea,
desprovida de contornos, em matéria
capaz de dar volume ao pensamento
que surge do que some: quando volta
volta cheia de pássaros e tudo
se lhe gruda ao olhar: reminiscência
de seus passos, o pássaro se solta
e em nós gravita a terra: conteúdo
e volume final de sua ausência.

Duração: 1m44s
[audio:ifigenia.mp3]

Certas definições de poesia mais parecem concepções de poesia. Ezra Pound dizia que “poesia é a linguagem carregada de significado”, uma definição simples e elegante que, cientificamente, não vale nada: é fácil ver que ela nem distingue entre verso e prosa. E, como lição para os adoradores de Pound, não custa observar que ele mesmo, apesar de definir assim a poesia, dizia que havia três tipos dela: fanopaica, centrada na imagem, com destaque para a poesia escrita ideogramática oriental; melopaica, centrada no som, no ritmo etc.; e, finalmente, a logopaica, centrada no significado. Que ele defina e poesia pela densidade do significado e também diga que só um dos três tipos de poesia depende do significado é só a primeira das muitas maluquices de um crítico que, de todo modo, deve ser lido: aqui e ali há mesmo observações geniais.

Mas é verdade que – sabe-se lá a razão – ao ler qualquer poema estamos mais abertos à linguagem carregada de significado, isto é, a uma linguagem em que as palavras podem ter muitos significados simultâneos, do que quando lemos prosa. E, se muitos dos melhores poemas que temos podem ser considerados engenhosas combinações de métrica e retórica (trarei exemplos no futuro), outros não só trazem a multiplicidade simultânea de significados como dispensam-se a si mesmos de associar-se obrigatoriamente a um deles.

O exemplo disto, o poema de hoje, é o primeiro do ciclo de “Ifigênia”, que abre Ausência viva, a estréia de Octavio Mora, que ainda há de ser considerado o livro mais injustiçado do Brasil, há 50 anos em edição única e difícil de achar em sebos. Já publiquei outro poema do livro.

Uma informação. Ifigênia é a filha sacrificada do rei Agamêmnon, aquela que a deusa Ártemis pediu para compensar o gamo assassinado na ilha de Áulis, e que a motivou a impedir os ventos de soprar. Sem o sacrifício da filha, Agamêmnon não teria vento para levar as naus dos guerreiros à Tróia. O sacrifício de Ifigênia é parte da causa eficiente da guerra.

O verso inicial começa com um paradoxo: a “estátua de vento”, sugerindo uma imobilidade dentro da mobilidade. A “pedra gasta” parece ter sido gasta pelo vento, e é antes um acréscimo à idéia de Ifigênia do que uma explicação da “estátua de vento”. Ela “sopra na memória”, e aí já se confirma a analogia histórica entre vento e “espírito” ou pensamento (pneuma). O tempo está nas pedras porque elas simbolizam a duração, mas também porque a existência da memória pressupõe a duração. Se ela aparentemente desaparece, está por toda parte; e, se volta, fixa tudo nela mesma – “tudo se lhe gruda ao olhar”. E se ela está mesmo ausente, só resta a terra, porque sem o sacrifício de Ifigênia os gregos ficariam presos para sempre na ilha de Áulis. Ao mesmo tempo ela é a personagem Ifigênia, a possibilidade de navegar, e até o remorso que alguém há de ter sentido por seu sacrifício, já que está presente o tempo todo, como uma pedra gasta, dominando o espaço da memória, acoplando-se à paisagem interior, produzindo neuroses, sentimentos. Quando Ifigênia, a causa do mal-estar, retorna, só se pode olhar para ela, e é irresistível associar o remorso pela morte de Ifigênia com as palavras do velho do Restelo: a “glória de mandar”, a “vã cobiça” também estavam presentes nos gregos, e o sacrifício da filha levou à morte de Agamêmnon (pelas mãos de sua esposa) como a hybris portuguesa levou à destruição do império.

Na semana que vem, vamos ver um poema que é “irmão” deste.

ausenciaviva.jpg

(Uma foto ruim tirada com um celular por uma pessoa sem qualquer habilidade fotográfica, a saber, Pedro Sette Câmara)

Dá a surpresa de ser

Fernando Pessoa
Cancioneiro, #120

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(se ela estivesse deitada)
dois montinhos que amanhecem
sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
assenta em palmo espalhado
sobre a saliência do flanco
do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Poema e comentário: 1m58s
[audio:surpresa.mp3]

O amor e o elogio da beleza feminina são talvez os temas mais explorados da poesia – ao menos da poesia que se costuma decorar. Este amor é quase sempre “sublime”, etéreo, não tendo nada a ver com o que as mulheres costumam verdadeiramente esperar. A mulher elogiada é também sempre transfigurada. Mas, da idolatria do amor e da beleza passa-se com muita facilidade ao desejo carnal desprovido de sentimento, a um culto do sexo pelo sexo que me parece tão sem sentido quanto o culto do amor pelo amor. Ambos são estéreis, aliás. Parece não haver nada entre o catarismo de Dante (esse negócio de ele nunca desejar Beatriz nunca me enganou) e a simples luxúria dos poemas pornográficos de Bocage. Os poemas que não parecem pervertidos, seja por idealismo ou sensualismo, costumam tratar só de sentimentos. E, recentemente, autores famosos como Philip Roth e Geoffrey Hill optaram por falar dos desejos físicos e da submissão a eles.

Resta saber onde estão os poemas que vão falar de sexo sem exagero. O exagero não é necessário para a poesia: nunca vi, aliás, uma pessoa que citasse o verso de Blake que diz que “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria” e lembrasse que Blake o colocou entre os “Provérbios do inferno”. Há grandes poemas sobre temas majestosos, e também os há sobre temas pequenos. O que eu quero é um poema que trate de algo que está na escala média: o desejo sexual que nem destrói nem alucina, e nem é tão mínimo que some assim que outra coisa surge na mente. Um poema que não pareça “falsificar” a experiência para atender a uma ideologia pré-estabelecida, seja ela o espiritualismo fajuto dos cátaros ou o culto da matéria.

Até agora não encontrei nada que atenda mais a estes requisitos do que “Dá a surpresa de ser”, um poema de Fernando Pessoa que talvez tenha sido o primeiro que decorei, na minha adolescência – ou, como dizem os americanos, há more years than I care to remember. O primeiro verso, que ficou como título, abre com um tom um pouco filosófico, falando da “surpresa de ser”, mas isto se refere claramente à surpresa e a “aura” que uma mulher parece ter e que chama a atenção, destacando-a e tornando-a mais “real” e “viva” do que o cenário à sua volta, concreto ou fantasioso. O simples pensamento dela faz bem. E a visão de seus seios causa primeiro admiração na imagem dos montinhos que, pela sua própria beleza, pela “surpresa de ser”, amanhecem, têm frescor e vida próprias, mesmo que não haja madrugada. A terceira estrofe fala de onde sua mão está pousada com uma linguagem simples mas ao mesmo tempo indireta o suficiente para que o poema não precise se referir a mais nenhuma parte do corpo. Aliás, a mão na “saliência do flanco” é mão sobre o quadril – hoje em dia qualquer poema que quisesse falar de quadris diria “curvas” nas quais o “poeta” iria “derrapar” – Deus nos ajude. E só na última estrofe, após três de admiração, Pessoa descreve seu próprio desejo, que não é nem de adorá-la como uma deusa vaporosa nem de castigar seu corpo com um instinto implacável: ele pergunta a si mesmo quando poderá se aproximar daquela mulher bonita que ele admira como mulher.

Formalmente o poema é muito despretensioso: quase todas as rimas são na mesma classe gramatical e o metro é de sete sílabas, ideal para um ritmo bem marcado. Não chego a dizer “musical” porque este poema é “falado” e não “cantado” (esta distinção interessante me foi sugerida pelo Leonardo Fróes), mas acho que isto é particularmente bom porque o poema “cantado” é também naturalmente mais “afetado”, menos próximo da linguagem comum – o que, pelo amor de Deus, não é necessariamente um mal. A maior parte dos meus poemas favoritos é “cantada”.

Vale uma palavra final sobre o não-exagero. Não acho que haja qualquer problema com a literatura de fantasia ou com a ausência de verossimilhança. Acho até que, na maior parte dos casos, o “realismo” é um mal estético. Mas a literatura amorosa, com suas mulheres intocáveis e seus amores febris, faz muito mal às pessoas, que certamente negariam a existência de Amor (isto é, Cupido, Eros) como um indivíduo, mas que agem como se ele existisse, como se dependessem exclusivamente de algum encanto exterior a si para continuar amando, ou como se o amor entre homem e mulher fosse algo sublime demais para não ser misturado com o sexo. O primeiro mal acomete sobretudo às mulheres, e o segundo aos homens. Acredito que os tratamentos dados por Roth e Hill sejam um passo na direção desta “honestidade”, ou melhor, desta “medida humana”. E quem também começou a entender isto foi W.H. Auden em “In Legend” (que no link aparece como “Lament” e tem final diferente: já vi o último verso como “Your human love.” e “Love as love.”, este na edição altamente revisada dos Collected Poems pelo próprio autor).

Ah, tudo é símbolo e analogia!

Primeiro Fausto
“Primeiro tema: o mistério do mundo”
Fernando Pessoa

VI

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.

Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.

Poema e comentário: 1m54s
[audio:simbolo.mp3]

Três temas são recorrentes em muitos poemas de Fernando Pessoa, ortônimo e heterônimos: primeiro, as coisas que aqui estão não são reais, ou são pouco reais (35 sonnets); segundo, simplesmente pensar sobre o que quer que seja é uma maneira de não ser, e “ser” verdadeiramente consiste na espontaneidade absoluta que se encontra nos seres inanimados e nos animados desprovidos de intelecto (O guardador de rebanhos); terceiro, quem verdadeiramente nos governa é alguém desconhecido ou algum princípio alheio (Súbita mão de algum fantasma oculto…).

O poema deste domingo é talvez o melhor exemplo do primeiro tema. Os 35 sonetos em inglês me parecem convolutos demais, datados para a época, francamente estranhos. Mas o sexto poema do Primeiro Fausto traz concisão de conteúdo e surpresa formal. Concisão porque o poema inteiro só trata do mesmo tema, o fato de tudo ser “símbolo e analogia”. O primeiro verso de cada estrofe como que propõe uma tese e os versos seguintes a desenvolvem, mas sem chegar a ser prolixos – são só três, afinal. Isto pode ser analisado até do ponto de vista da teoria da informação: as redundâncias (isto é, as confirmações ou repetições) dos três últimos versos facilitam a leitura e até a memorização do poema, que não fica tão denso a ponto de parecer hermético – o que, na verdade, não seria necessariamente ruim. Mas é o esquema de “tese e desenvolvimento” que justifica perfeitamente a divisão de estrofes do poema, que, por isso, não é apenas convencional.

Formalmente o poema é construído em dísticos (rimas AABB…), o que é pouco usual em português; com a aliteração, os dísticos são a grande marca do inglês. O uso da palavra “esquecimento” no nono verso também remete ao inglês, porque parece uma tradução de oblivion (Pessoa cresceu na África do Sul e provavelmente era bilíngüe, o que é algo mais do que “saber muito bem” inglês), que em certos casos indica a insconsciência (o segundo tema pessoano que citei), a não-reflexão, ou o vazio. Todos os versos podem ser escandidos em dez sílabas, quase sempre com um tônica na quarta (versos sáficos), mas em alguns deles a pronúncia de dez sílabas sonoras pareceria demasiadamente artificial. Não creio, porém, que a alternância de versos de dez e nove sílabas pudessem prejudicar este poema. Só devemos lembrar que Fernando Pessoa não o publicou, que não sabemos se ele o considerava acabado, se achava que fazia parte de sua obra; lembremos disso antes que desperte o pequeno filisteu em nosso peito. Se ele quiser aparecer, mostre-lhe a perfeita imagem de “a maré vasta, a maré ansiosa” e obrigue-o a reverenciar a grandeza.

Quanto ao som, o poema tem no verso 11 (um dos não-sáficos) um de meus jogos sonoros favoritos, que é a proximidade, no decassílabo, de sílabas fortes nas posições 5 e 6: “São sombras de MÃOS, / CUjos versos são.” Ainda que a sexta sílaba caia num som que no Brasil corresponde a um feio palavrão, na hora de ler o poema não consigo pensar nisso, mas só em como o verso fica perfeitamente dividido, com direito a uma rima interna. O verso-modelo deste esquema continua sendo, porém, o de Camões, “que da occidenTAL PRAIa lusitana”, em que há um evidente crescendo sonoro. Para terminar, observem todos os ecos, todas as repetições sonoras de “é” e “á” na segunda estrofe: provavelmente Fernando Pessoa também só percebeu isto depois de escrever, mas o fato é que o som do poema está lá, “ecoando” o que é dito.

Lágrimas

Lachrimae Amantis
(Geoffrey Hill)

What is there in my heart that you should sue
So fiercely for its love? What kind of care
Brings you as though a stranger to my door
Through the long night and in the icy dew

Seeking the heart that will not harbor you,
That keeps itself religiously secure?
At this dark solstice filled with frost and fire
Your passion’s ancient wounds must bleed anew.

So many nights the angel of my house
Has fed such urgent comfort through a dream,
Whispered, ‘your lord is coming, he is close’

That I have drowsed half-faithful for a time
Bathed in pure tones of promise and remorse:
‘Tomorrow I shall wake to welcome him.’

Lágrimas
(Pedro Sette Câmara)

Que tem meu coração que tanto o queres?
Como um estranho à porta, por que insistes,
depois de atravessar a noite escura
atrás do coração que te recusa,

religiosamente resguardado?
Neste negro solstício congelado
em puro incêndio, as velhas cicatrizes
da tua paixão sangram novamente.

Por tantas noites, o anjo desta casa
em sonho sussurrou o meu alívio –
“Teu Senhor vem, já chega” – que eu fiquei

boiando em minhas vãs promessas, meus
remorsos – “Amanhã direi bom-dia.”
Mas, de manhã, a mesma ladainha…

Tempo total: 1m49s
[audio:lachrimae.mp3]

Continuando o tema da mensagem de Natal de ontem, trago um poema que postei no Indivíduo, a minha tradução livre da tradução livre de Geoffrey Hill de um poema de Lope de Vega. Desta vez vou ficar apenas com meu texto e o de Hill, ressaltando alguns aspectos.

O segundo quarteto do poema de Hill é o mais distante de Lope de Vega, e traz o verso “at this dark soltice filled with frost and fire”, que até “frost” é literal: trata-se do solstício de inverno no hemisfério norte, que em tempos antigos (antes dos ajustes do calendário gregoriano) caía até no dia 25 – daí que o Natal seja na primeira hora de 25 de dezembro. O solstício de inverno é o dia em que o Sol atinge o ponto mais baixo no horizonte, e portanto só pode subir. É também o dia mais curto e portanto mais escuro do ano, e é também gelado, daí o “dark solstice filled with frost”. Mas e o “fire”, de onde vem? Se o morador não recebe Jesus que bate, o fogo há de ser do inferno, o que é confirmando pelas feridas da paixão, que voltam a sangrar (“your passion’s ancient wounds must bleed anew”. Só que mesmo o frio e a escuridão já sugerem uma imagem infernal – Dante fez um inferno gelado e a escuridão também nos remete para lá. Eis o que é um bom verso: dois sentidos simultâneos, um completando o outro, sugerindo que o conectivo final “and” seja lido também não só como um acréscimo, mas uma conclusão: um negro solstício que, na verdade, é infernal.

O poema não chega a ser uma paráfrase da parábola em que Jesus recomenda a vigilância, porque na parábola as noivas não sabem quando o Senhor vai aparecer; trata-se antes de tomar aquela idéia e acrescentar outra: o Senhor já veio, ele bate, e quando você vai recebê-lo? Por isso a questão não é de se converter, mas de dar um passo a mais na adesão: afinal, você já admite que o Senhor é o Senhor, e está apenas procrastinando sua recepção. Nesse sentido o poema é “realista”: o maior inimigo da fé não é tanto o totalitarismo, mas a banalidade, a dificuldade com o cotidiano. Se a vida fosse extraordinária o tempo todo, ela seria bem mais fácil, isto temos de admitir.

Psicologia de um vencido

Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
monstro de escuridão e rutilância,
sofro, desde a epigênese da infância,
a influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
que o sangue podre das carnificinas
come, e à vida em geral declara guerra,

anda a espreitar meus olhos para roê-los,
e há de deixar-me apenas os cabelos,
na frialdade inorgânica da terra!

Duração: 1m39s
[audio:psicologia.mp3]

Augusto dos Anjos é o primeiro poeta de muita gente, o que se deve, com toda certeza, ao fato de seus poemas serem musicais, grandiloqüentes, declamatórios e, numa grande medida, góticos – a combinação perfeita para a mistura de solenidade e tosquice (voluntária e/ou involuntária) que é a adolescência. Seus temas são perfeitamente datados: no fim do século XIX, no início do XX, o progresso tecnológico – telégrafo, rádio, luz – parecia uma grande novidade e não cabia no imaginário, levando a uma associação muito freqüente entre pesquisa e ocultismo. O tema do domínio da natureza com a conseqüente “libertação” do homem, presente desde sempre, começa a ser tratado pelo casal Shelley (sobretudo, é claro, por Mary) no início do século XIX e aparece em miríades de sociedades secretas e doutrinas, até que o voluntarismo e a crença no progresso vão dar na Primeira Guerra Mundial – e isto, aliás, parece ser o tema do último livro de Thomas Pynchon, Against the Day.

Enquanto o mundo efervescia, não consigo imaginar o que significava ter uma imaginação prodigiosa e dotes verbais igualmente portentosos na Recife do início do século XX. Não gosto de explicar as pessoas pelas circunstâncias porque as circunstâncias são sempre só metade da equação. Mas é possível imaginar Augusto dos Anjos absorvendo as novidades que chegavam através de livros e jornais e, num ambiente que ainda demoraria para ser “moderno”, incumbir-se a si mesmo de ser o verbo encarnado das novas tendências. Em “Psicologia de um vencido”, todos os elementos estão presentes: a “ciência” do carbono e do amoníaco se mistura ao “ocultismo” do zodíaco; o cosmos inteiro conspira contra o vencido, que também conspira contra si por ser “profundissimamente hipocondríaco” (um dos melhores decassílabos da língua, este); as palavras são usadas mais pelo som do que pelo significado – afinal, o que aquele “inorgânica” está fazendo no último verso, e qual a função de “amoníaco” além de rimar com “zodíaco? – e a exclamação final tira qualquer dúvida imaginável sobre o desejo de teatralidade e oralidade, fazendo o leitor desejar que um dia Zé do Caixão faça um filme de Augusto dos Anjos…

Sete anos de pastor

Camões

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começa de servir outros sete anos,
dizendo: “Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.”

*Publicado pela primeira vez em 1595, quinze anos após a provável data da morte do poeta.

Leitura e comentário: 2m18s.
[audio:seteanosdepastor.mp3]

No apêndice da edição de 1802 das Lyrical Ballads, William Wordsworth incluiu uma nota sobre a dicção poética (“poetic diction”), que ele sugere ser a gordura introduzida pelos poetas em suas obras, em detrimento da concisão e da própria linguagem. Wordsworth oferece algumas comparações entre paráfrases bíblicas feitas por eminentes poetas da língua inglesa e a tradução inglesa da Bíblia (a King James), que sempre se sai melhor. Wordsworth tem razão: nas línguas em que eu já li, os poemas de paráfrase bíblica quase sempre parecem um exercício fútil de estilo feito às custas de uma piedade afetada. Uma das grandes exceções é o nosso famoso “Sete anos de pastor”, de Camões, que já começa bem por tomar como mote o amor de Jacó por Raquel, e não alguma crosta imaginada de piedoso sacrifício, do Jacó se curvando à autoridade de Labão, ao costume sagrado das tribos etc. Aliás, quem quiser a “fonte” do poema pode ir ao capítulo 29 do livro do Gênesis (cito a tradução de João Ferreira de Almeida porque é a melhor disponível na internet em português).

Sobre a construção do poema gostaria de destacar duas coisas. O segundo verso de cada quarteto faz enjambement com o anterior, isto é, a leitura não pode ser interrompida. Existe um grande debate sobre como se deve ler a poesia: respeitando as pausas ao fim dos versos (afinal, o fim do verso há de indicar alguma coisa) ou seguindo a ordem sintática, como se fosse prosa. Eu acredito numa solução intermediária e tensional: os melhores leitores de poesia – para mim, Auden e Geoffrey Hill (a leitura dele do Salmo 39, na tradução de Miles Coverdale, logo no começo, é de converter os pagãos) – conseguem ler com ritmo sem prejuízo do sentido. Mas alguns poemas, ou trechos de poemas, realmente clamam por ser lidos de uma determinada maneira. Aqui o segundo verso de cada quarteto começa com uma palavra que ocupa posição fundamental na estrutura sintática: “Labão” é objeto direto e “passava” é o verbo. Sempre que damos uma pausa antes do objeto direto indicamos suspense e marcamos o suspense com o uso de reticências. “Sete anos de pastor Jacob servia… Labão”. O suspense aqui não cabe, pois a história de Jacob, Labão, Raquel e Lia não só é conhecida como certamente o era muito mais no século XVI português. Por isso, é preciso ler direto, saltando sobre a pausa: “Jacob servia Labão”. Quanto ao “passava” do segundo quarteto, ainda que ele seja antecedido por uma vírgula, que habitualmente indica uma pausa, não podemos nos demorar muito: não haveria nem mesmo suspense, mas sim estranhamento, se após dois advérbios (um de tempo e um de modo), não viesse algo que os estruturasse, como o verbo. O verso iniciado por verbo também tem um estranhamento próprio que pode ser anulado se eliminamos a pausa, deixando a segunda vírgula apenas como a compensação obrigatória da primeira, antes de “os dias”.

A segunda coisa a observar do ponto de vista formal é que certos sotaques portugueses, levados ao extremo, eliminariam algumas vogais que devem ser obrigatoriamente pronunciadas para o poema continue com dez sílabas métricas (e, raios, se sílabas métricas não são sílabas sonoras, são apenas uma perversão formalista: encontramos isso no Parnasianismo brasileiro, mas em Camões…), trazendo uma certa vantagem ao português brasileiro, que, até onde eu sei, em nenhuma de suas variações prima pelo assassinato de vogais. O poema lido por um português pode ficar com “srvia” no lugar de “servia” e com toda certeza com “esp’rança” no lugar de “esperança”. O caso aqui não é tão grave quanto o da primeira estrofe dos Lusíadas, que, se lida com o sotaque português contemporâneo, perde muitas sílabas métricas, mas há alguma perda de sonoridade. Isto fica mais claro no meu comentário em áudio com a leitura.

Os falcões

Publicado originalmente em Pequena Morte.

I falchi
Bruno Tolentino

Dicono: ‘lascia stare, anche di loro
ti scorderai, perche è così la vita;
c’è il buio ormai, non c’è più l’ala d’oro,
hai torto di stupirti che sconfitto

cada ogni falco dalla sua altezza…’
Il sogno che sognai dell’infinito
era ancora promessa ed ogni ebbrezza
ad ogni altezza mi sarà rapita,

tutto è troppo mortale, e ben lo sò.
Eppur quel giovanotto li portava
ben aggiustati al cuore, erano lava

e vulcano, e nessuno, e niente può
tagliarci in due, quei miei falchi ed io.
Non hò mai imparato a dire addio.

Os falcões
Bruno Tolentino / Trad. Pedro Sette Câmara

Dizem-me: “deixa estar, deles ainda
te lembrarás, porque assim é a vida:
agora as trevas, a asa de ouro finda;
erras ao espantar-te que, vencido,

caia cada falcão da sua altura…”
O sonho que sonhei com o infinito
era promessa então – cada loucura
a cada altura me será tolhida,

tudo é mortal demais, o que eu sei bem.
Contudo aquele jovem os levava
no coração bem postos, eram lava

e vulcão, e ninguém, e nada vem
dividir-nos, a mim e aos falcões meus.
Nunca mais aprendi a dar adeus.

Aqui você pode me ouvir recitando o poema original e minha tradução. A gravação tem 1min49s.
[audio:ifalchi.mp3]

“I Falchi” está na página 303 de O mundo como Idéia, de Bruno Tolentino (São Paulo: Globo, 2002), livro que reúne poemas escritos ao longo de trinta anos em português, inglês, francês e italiano. Ao menos uma palavra sugere que foi um dos primeiros poemas a ser escritos: “ebbrezza”, aqui traduzida por “loucura”. Literalmente “ebbrezza” significa “embriaguez” (no português também chamamos o embriagado de “ébrio”), e sugere que Tolentino ainda começava a formular a questão central do livro, que é a oposição entre o frio formalismo que, ao tentar capturar a beleza, abole a vida e por tabela a própria beleza, e a difícil aceitação de que esta reside em coisas que morrerão inevitavelmente. Para designar o estado de humildade diante das coisas que permite a visão mais pura, uma certa anulação da consciência (já presente em seu livro de estréia, Anulação & outros reparos), Tolentino veio a usar a palavra “rapto”, que também tem o sentido de “enlevo, êxtase” e cuja raiz é muito freqüente na língua inglesa com a palavra de sentido idêntico “rapture”. Mas o uso de “ebbrezza” sugere que Tolentino ainda pensava na oposição entre o artista e a pessoa comum em termos mais românticos, isto é, em termos que já estavam prontos, e que veio a abandonar quando equacionou o problema à sua própria maneira, mais sofisticada.

De todo modo, como cabe ao tradutor ser fiel antes ao poema do que àquilo que o poeta enfim se tornou, e ainda sabendo que o próprio poeta quis publicar o poema assim mesmo já em sua maturidade, não há rigorosamente nenhuma razão para insistir na fidelidade ao último Tolentino – além de ser ingenuidade ignorar a conveniente rima com “altura”.

O poema ainda traz a “asa de ouro”, clara referência ao pássaro de ouro de Byzantium e Sailing to Byzantium de W.B. Yeats, que, sendo imortal (feito de “changeless metal”) cantava aos mortais os acontecimentos de todos os tempos (“what is past, and passing, or to come”), e cujo canto teria levado o poeta a conhecer a “ebbrezza”. Vencendo a mortalidade e preservando a beleza, o “tordo de Bizâncio” – como aparece em outros poemas de Tolentino – enlevaria, isto é, elevaria o ouvinte, daí que sua voz possa ser chamada de “asa”.

Os falcões do poema retornam, mas como um único falcão, na página 205 de Os deuses de hoje (Rio de Janeiro: Record, 1995), em que o momento imóvel do falcão sugere o momento de rapto preconizado por Tolentino:

O falcão parado
no ar um momento,
imobilizado
no ar pelo vento
que lhe empurra o peito
parado, perfeito,
no exílio do céu.
(…)

Mas a sugestão do rapto, que é instantâneo, e só não dizemos “atemporal” para não cair na Idéia – fica por aí mesmo: logo depois Tolentino se identifica ao falcão – como já tinha dito, ele não podia ser separado dos falcões – e diz que abandonou a solidão da altura para juntar-se à grei; isto é, Bruno Tolentino abandonou fisicamente a vida que levara por décadas na Europa para retornar ao Brasil, pois “não soube ser / daqui nem de lá”. E, provando que realmente não aprendeu a dar adeus a seus falcões, tira deles a lição da altura e da solidão, que permanece gravada na alma, que o alheado carrega mesmo quando volta, e que, novamente à moda de Yeats, purifica, já que “é ainda um sinal / da torre ancestral / que há no coração.”

%d blogueiros gostam disto: