Madrid, 11 de março de 2004

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(A imagem é uma cortesia do Google espanhol)

Nestes momentos é muito difícil para mim não ser um neocon.
Isto (com um pouco mais de veemência, vamos dizer assim), é claro, é o que eu dizia aqui no Rio, sentado confortavelmente no lançamento do livro de Alexandre Soares Silva, conversando com Barbara Axt, Bernardo Carvalho, e Rafael Lima.

Mas e se eu estivesse em Madrid, o que diria? O que alguém pode dizer aos parentes e amigos dos mortos? O que alguém pode dizer aos sobreviventes? Em ocasiões menos absurdas, como no massacre da Páscoa de 1916, W. B. Yeats só conseguia dizer “polite meaningless words”. Não houve muito progresso de lá pra cá.

O que diria um sobrevivente? Que num instante, e de maneira desagradavelmente literal, o mundo parou de fazer sentido? E como se volta para o mundo depois, lembrando que – já que há um precedente – a qualquer momento os trens podem explodir, os prédios podem ser destruídos por aviões?

Que Deus tenha piedade das almas daqueles que pereceram ontem, sem aviso.

Ataque ao cristianismo

Para quem acha que é exagero dizer que a intenção de proibir o filme do Mel Gibson equivale a um ataque ao próprio cristianismo, vale lembrar, como lembra John Zmirak, em excelente artigo na “American Conservative”, que boa parte dos ataques ao filme são motivados não por uma preocupação com o anti-semitismo deste filme especificamente, mas, sim, pela idéia de que todo o cristianismo é, em si mesmo, anti-semita. Nessa linha, já se tentou até expurgar o Evangelho de São João…

‘But Gibson did not go far enough for his enemies. They seem in fact implacable—though that does not stop self-hating Christians from trying. Some biblical scholars suggest the Gospel of John be edited or excised from the scriptural canon because it is “inherently anti-Semitic.” In 2003, some theologians associated with the U.S. Catholic Bishops colluded with several Jewish leaders to produce a document that effectively declared that Christianity was meant only for gentiles, not for Jews, so the Church should stop evangelizing them. When prominent Jewish Catholics, among others, pointed out such statements by Jesus as “Go nowhere among the Gentiles … but go rather to the lost sheep of the house of Israel.” (Matt. 10:5) and “I was sent only to the lost sheep of the house of Israel” (Matt. 15:24), the document was quietly dropped. Appropriately, the architect of that document was Eugene Fisher, the same man who helped the ADL orchestrate an attack on “The Passion” —based on the preliminary, stolen script. The bishops had to back away from that one, too, under threat of legal action.

(…)

‘It is clear that the same spirit motivates the campaign against Gibson’s film, the attacks on Pius XII, and similar assaults against Christianity in public life. It’s more than just a rejection of Jesus’ claim to be the Messiah—a shocking assertion that requires the divine gift of faith to accept. It is an attack on Christian culture root and branch, an assertion that the Christian faith is a dangerous poison that must be purged from the earth to ensure social progress and the safety of other religions. This position, which most Jews would surely reject, is the basic assumption of contemporary secularism, which knows no race or creed.’

Marx foi à Inglaterra ou a Inglaterra foi a Marx?

A Inglaterra parece ser o único país em que as pessoas realmente nascem com consciência de classe. Por isso é possível assistir a um filme como My Fair Lady sem perceber de cara que é um panfleto comunista, que a paixão do Prof. Higgins por Eliza Doolittle significa apenas a submissão da burguesia ao proletariado. Parece tão normal que os ingleses saibam o seu lugar, em cima ou em baixo, que é preciso mencionar as credenciais de George Bernard Shaw para que a acusação “é um panfleto comunista” não pareça fruto do engenho de J. R. Nyquist.

Daí surge a questão: será que foi o ambiente inglês que sugeriu a Marx suas idéias sobre a luta de classes, ou será que Marx já as tinha e só não percebeu que era lelé da cuca porque estava em um ambiente no qual elas eram verossímeis?

Eis uma tese de mestrado que jamais escreverei.

Fascínio pelo Brasil

O fascínio que muitos europeus e americanos sentem pelo Brasil é puro thanatos. Basta ver como são os tipos que largam tudo no norte para vir para cá: pessoas de classe média que não agüentam o peso e a formalidade da sociedade ocidental e desejam obedecer a seus instintos sem enfrentar a desaprovação alheia. São pessoas que, se tivessem um pouco mais de inteligência e cultura, diriam que são adeptas do hedonismo. Como não têm, vão afundando na inconsciência brasílica, com o Sol a derreter-lhes os miolos e a percussão a ensurdecer os ouvidos.

(E, aliás, ninguém em sã consciência pode negar que a exposição contínua e prolongada a qualquer coisa essencialmente percussiva, como o samba, é dessensibilizante. É a gordura saturada da alma. O colesterol ruim musical.)

Não é que eu me ressinta tanto do Brasil. Para falar a verdade, me ressinto um pouco sim, mas já me ressenti muito mais. Até gosto da vida aqui na zona sul do Rio de Janeiro. Tenho a praia, tenho tudo perto de casa – acho que há mais de uma semana sequer entro em um carro – e tenho meus amigos. O problema é o mesmo que foi apontado por V. S. Naipaul em uma de suas entrevistas (que saiu do ar, então não tem link). Quando o repórter brasileiro lhe perguntou a respeito da vida e da “musicalidade” – palavrinha besta – de seu país natal, Trinidad & Tobago, ele respondeu que não tinha o menor interesse e que lá as pessoas viviam em função do corpo. Supus que ele tivesse dito, em inglês, “people lead physical lives”, o que o repórter traduziu como “as pessoas levam vidas físicas”.

Assim, do ponto de vista do corpo, o Brasil é muito bom, e eu não vou posar de santo dizendo que “estou acima destas coisas”. O problema, é claro, é quando passamos para alguma aspiração mais imaterial, e não estou falando nem de santidade nem de vida espiritual, mas só de coisas naturais como o desejo da verdade e de conhecer coisas; afinal, também não vou dar uma de trinidad-tobaguense, e fingir que meus interesses não ultrapassam os do estômago e da genitália. Mas estes interesses, no Brasil, jamais podem ser compartilhados além de uma esfera íntima. O sentimento de austeridade e seriedade nunca atinge a esfera pública. O centro de gravidade de cada indivíduo “menos físico” não parece ter ligação com a vida do país, e é por isso que eu – e acredito que boa parte da minha geração – me sinto completamente desenraizado, e, em última instância, universalmente apátrida.

Um obituário atrasado: Neil Postman, 1931-2003

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Alvaro citou em seu post recente um professor do Departamento de Comunicação e Cultura da New York University. Como eu estudei neste departamento durante o ano acadêmico de 1995-96, o post me trouxe lembranças e resolvi visitar seu site para ver como andavam as coisas.

Fiquei surpreso ao ver, logo na primeira página, o anúncio de que Neil Postman, seu diretor, morreu em outubro de 2003.

Se algum dia fosse escrita alguma obra do tipo Os anos de aprendizagem de Pedro Sette Câmara, Postman estaria lá, ocupando boa parte da minha mente no início da minha tortuosa e nunca terminada carreira universitária. Olhando em retrospecto, eu discordaria de muitas de suas posições, como seu idealismo filosófico e sua visão à la Joseph Campbell da religião. Mas ele não era nem filósofo nem teólogo, e sim um “teórico da comunicação”, um sujeito que discutia a relação entre tecnologia e cultura.

Eu sei que pessoas de bem podem ter crises de caspa ao ouvir falar disso porque logo pensam em Pierre Bourdieu e Jean Baudrillard. Mas o trabalho de Postman não tinha nada a ver com profundas leituras simbólicas das novas realidades: ele era uma espécie de continuador “são” da obra de Marshall McLuhan, aproveitando os insights deste em livros-ensaios muito bem escritos, de leitura bastante direta, sem trechos particularmente obscuros (vá ler Deleuze para entender o que é um “trecho particularmente obscuro”).

O primeiro que li, para a matéria “Perspectives on Communication”, em setembro de 1995, foi The Disappearance of Childhood. A tese do livro é simples: a idéia de infância que temos hoje é uma construção vitoriana, baseada na restrição do acesso das crianças a determinadas informações. Como a televisão destrói estas restrições, a idéia de infância como um tempo de pureza e inocência deixa de fazer sentido. Com um argumento tão conservador, não admira que ele próprio admitisse que era “o pior esquerdista do mundo”.

O livro mais famoso que Postman escreveu foi Amusing Ourselves to Death, cuja tese também é simples: o meio da televisão é inadequado ao conteúdo das notícias. Ninguém pode fingir que tem respostas emocionais adequadas ao telejornal: “Morreram hoje 20 pessoas em um atentado em Jerusalém. Corta. O tempo está bom em Nebraska. Corta. Ronaldinho tem uma nova namorada.”

Meu livro favorito dele, porém, é Technopoly. Deixo aqui um trecho:

A relação entre a informação e os mecanismos que devem controlá-la é bem fácil de descrever: a tecnologia aumenta o estoque de informações disponíveis. Com o aumento do estoque, os mecanismos de controle ficam sobrecarregados. São necessários mecanismos de controle adicionais para lidar com as novas informações. Quando os novos mecanismos de controle são eles mesmos técnicos, eles, por sua vez, acabam por aumentar o estoque de informação. Quando o estoque de informação não pode mais ser controlado, ocorre um colapso da tranqüilidade psíquica e do propósito social. Sem defesas, as pessoas não têm como encontrar um sentido em suas experiências, vão perdendo a memória, e têm dificuldade para imaginar futuros razoáveis.

E isto foi escrito em 1991, pelo menos três anos antes de a internet ser massivamente utilizada nos Estados Unidos.

Big Brother

Gostaria de fazer uma pequena observação sobre a forma inesperada como aos poucos a distopia de “1984″ se torna presentemente um fato.

O que era para ser algo terrível, humilhante e desumanizador, concebido como símbolo da destruição de qualquer possibilidade de dignidade pessoal, foi transmutado em um programa de televisão de grande sucesso, e ainda com o requinte de utilizar um nome que remete diretamente ao significado original, o qual pelo nível cultural deficiente de grande parte dos espectadores, provavelmente permanece ignorado na maior parte dos casos. Qual o significado disso? A existência e o sucesso desse programa são simultaneamente agente e sintoma de poderosas mudanças culturais e de valores. A realidade dominada pelo Grande Irmão já chegou, e não à força, mas através de uma transformação moral, na qual as pessoas são premiadas por sua vulgaridade. As pessoas competem para serem pagas para serem observadas participando de situações indignas e degradantes, para dramatizarem em pequena escala uma realidade que Orwell evidentemente descreveu como temível e abjeta. E toda uma geração cresce confortável com isso.

Entrevista com René Girard

René Girard lê O Indivduo

por Pedro Sette Câmara e Alvaro Velloso de Carvalho, com a participação de Olavo de Carvalho. Fotos de Sergio de Biasi.

No dia 17 de novembro de 2000, pude assistir a uma conferência de René Girard na Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro. Logo após o evento, consegui marcar para o dia seguinte uma pequena entrevista com ele, feita no Hotel Glória em conjunto com Alvaro Velloso de Carvalho, meu companheiro aqui no Indivíduo, e o filósofo Olavo de Carvalho, que há muito fala de Girard em suas aulas. (PSC)

Ciência & Violência

Olavo de Carvalho: Embora o senhor tenha sido o primeiro que conseguiu reconciliar ciências humanas e catolicismo, o pensamento católico do século XX parece não ter exercido a mínima influência sobre a sua obra. Como se explica isso?

René Girard: Sou antes de tudo um cientista social, e foi normal que passasse à margem dos debates filosóficos e teológicos que envolveram os pensadores católicos. Interesso-me pela Bíblia principalmente como documento sociológico. Por isso eles acabaram me olhando com desconfiança, vendo em mim uma espécie de lobo em pele de cordeiro, sem perceber que minha obra, embora não tenha o menor intuito doutrinal ou apologético, abre novas e insuspeitadas perspectivas apologéticas para o catolicismo, na medida em que mostra a sua superioridade moral. Vivemos numa sociedade em que todos pensam que os Evangelhos são um mito e que todos os mitos são falsos; minha obra demonstra que só é possível compreender a falsidade dos outros mitos à luz dos Evangelhos e que eles não podem ser apenas mitos.(1)

Olavo de Carvalho: No seu sistema, a violência punitiva aparece sempre como um ato coletivo, um ato das massas, e no seu último livro o senhor diz ter deixado de acreditar na possibilidade de uma sociedade não-violenta. O senhor acredita que ao menos na alma do indivíduo humano exista uma espécie de recinto protegido, não contaminado pela violência?

René Girard: Isso depende da sua concepção do pecado original. Um agostiniano, um predestinacionista, diria que não. Mas eu espero que sim. É evidente que tanto na escala individual quanto na coletiva as paixões são substancialmente as mesmas – inveja, orgulho, etc. -, mas no coletivo elas são potencializadas pela força multiplicadora do mecanismo mimético.

Um longo argumento do princpio ao fim

O demônio estatal

Como ainda diz Girard em seu ensaio Are the Gospels Mythical?, este modo de funcionar da sociedade expressa o domínio de Satanás sobre ela. Pois, até o advento de Jesus Cristo, era Satanás quem expulsava Satanás. Era ele, o espírito acusador, quem extirpava o mal em nome do mal, quem impedia o cataclismo maior com um menor, e escrevia a história – os mitos – assumindo o partido do acusador. A religião cristã assume o partido da vítima – o Cristo -, e afirma sua inocência, ressaltando que não era preciso matá-lo.

Pedro Sette Câmara: O Sr. concordaria com a afirmação de que a ideologia politicamente correta, buscando a proteção estatal de todas minorias contra todos, representa uma tentativa de Satanás de expulsar Satanás novamente?

René Girard: Sim. O que é interessante nesse fenômeno é que ele só poderia acontecer numa civilização que já recebeu a influência do cristianismo. Como o mecanismo do bode expiatório já foi revelado, não retornamos diretamente a ele, isto é, não acusamos diretamente a vítima de alguma coisa, não dizemos diretamente que ela é culpada. Mas o mecanismo do bode expiatório continua a funcionar, de forma diferente: o movimento politicamente correto acusa seus adversários de criar bodes expiatórios, acusam-nos de vitimar os outros. Esta é uma espécie de cristandade ao contrário: eles pegam o que resta da influência da cristã, o que resta da linguagem cristã, mas para fins opostos, para perpetuar o mecanismo de sacrifício do bode expiatório.

Pedro Sette Câmara: Tenho aqui uma entrevista sua, de 1996, em que o Sr.defende a intervenção internacional na Bósnia, dizendo que ela ocorre não com fins imperialistas, mas apenas com o objetivo de parar a matança de inocentes. Após afirmar que a violência é o fundamento das sociedades, o Sr. ainda subscreveria essa posição? Ou o Sr. crê que o cristianismo possa também servir como fundamento para a organização da sociedade?

René Girard: O cristianismo nunca teve esse propósito. Ele não tem o objetivo de organizar a sociedade.

Pedro Sette Câmara: Mas e aquela posição, o Sr. a manteria?

René Girard: Eu não adotaria ainda hoje uma posição inteiramente favorável à intervenção na Bósnia. É difícil dizer para onde caminha o mundo hoje, com a possibilidade do fim das soberanias nacionais. Se você olhar casos como o da prisão de Pinochet, verá que todo o procedimento é inteiramente avesso ao direito internacional. O que se passa é que a legislação internacional entrou em colapso – e o que se seguirá daí?

Alguns dirão que é uma nova forma de imperialismo americano – mesmo que não haja desígnios para isso, porque o imperialismo pode funcionar mesmo sem um objetivo direto nesse sentido. Por exemplo, quando Putin falou em particular com Chirac, recentemente, ele lhe disse que De Gaulle não agiria como ele, não aceitaria acompanhar a política externa americana sem questionamentos.

Ora, poderíamos apoiar esse tipo de intervenção se soubéssemos que a comunidade internacional sempre intervirá pelos motivos certos – mas não dá para apostar nisso.

O que me preocupa é o potencial dessa situação para criar novos bodes expiatórios, como vimos claramente nos casos de Milosevic e Pinochet: é fácil odiar os dois, estando de longe, sem conhecer as situações específicas, sem ouvir um único argumento a favor dos dois, seguindo a onda de ódio da multidão.

O reino da mentira

Pedro Sette Câmara: O Sr. teria dito que acha que, se tivesse de realizar seu trabalho acadêmico hoje, não conseguiria fazê-lo dentro de uma universidade. O Sr. disse isso mesmo?

René Girard: Sim, é verdade. Se eu fosse jovem hoje, e tivesse de entrar em uma universidade, ficaria muito preocupado. Quando eu comecei, nos anos 50, 60, a situação poderia já não ser ideal, mas era boa, era diferente. Havia erros, mas as pessoas eram honestas, ou pelo menos estavam tentando ser honestas. Hoje, no meio universitário, as pessoas não estão mais nem tentando ser honestas. Está tudo – ao que parece, no mundo inteiro – infestado pela ideologia, e a universidade se transformou em um espaço de propaganda política.

Aborto: os inocentes pedidos pelo secularismo moderno

Alvaro Velloso de Carvalho: No livro Quand ces choses commenceront, o senhor faz observações interessantes sobre o aborto e a maneira como sua legalização representa uma regressão em relação a conquistas do cristianismo. Poderia comentar algo mais a respeito? (2)

René Girard: Nos Estados Unidos, ainda há uma discussão do assunto, mas na Europa, por exemplo, praticamente não existe dissenso nesse ponto. Recentemente, escrevi um artigo para uma revista católica européia e mencionei o aborto. Uma amiga ficou chocada!

Alvaro Velloso de Carvalho: O aborto nunca é visto num contexto bíblico, ou mesmo em um contexto antropológico mais amplo, certo?

René Girard: Sim, exato. Mesmo aqueles que argumentam contra o aborto nem sempre têm essa perspectiva, porque encaram a Bíblia de maneira excessivamente rígida.

A proteção à criança, a proteção ao recém-nascido é essencial na Bíblia. O sacrifício de Isaac marca a diferença entre o Deus antigo e o Deus novo: é o Deus antigo que pede a Abraão que ele sacrifique seu filho, e quando Abraão vai fazê-lo, o Deus novo impede o sacrifício da criança, e o substitui pelo sacrifício de um animal. O fim do infanticídio ritual é uma das marcas da nossa civilização, e estamos perdendo isso.

Recentemente, vi um livro em que o autor, de cujo nome não me lembro, dizia que o aborto era o sacrifício da criança, e ele tomava partido a favor desse sacrifício. Isso é o mais horroroso a que se pode chegar!

Fica a impressão de que as antigas fatalidades primitivas, descartadas provisoriamente pela luz profética e evangélica, estão ressurgindo. Na Bíblia, a proteção à criança vem junto com a proteção aos deficientes, aos leprosos, aos aleijados. Essas são as vítimas preferenciais nas sociedades antigas, e entendemos que devemos protegê-las. Hoje continuamos a proteger os aleijados, os deficientes, mas no centro de tudo há uma espécie de câncer se desenvolvendo, do retorno ao infanticídio. Este é um argumento decisivo, que poucos levam em consideração: os defensores do aborto estão procurando fazer a nossa sociedade retornar à barbárie pré-cristã.

Links relevantes

Notas:

(1) Comentário à parte, por Pedro Sette Câmara: somente esta observação já é suficiente para destruir a obra inteira de um Joseph Campbell, que nivela todas as religiões.

(2) Trechos referidos do livro Quand ces choses commenceront, editado pela Arléa em 1996, uma compilação de entrevistas de Girard com o jornalista Michel Treguer sobre os aspectos mais importantes de sua obra:

Neste ponto, estamos em uma situação absolutamente trágica. É perfeitamente verdadeiro que, em um plano humano, o do planning racional, o aborto e todas as medidas para limitar os nascimentos são tão justificadas quanto possível. Dir-se-ia que o mundo moderno encurrala os homens – seja à renúncia heróica, à castidade, à sobriedade, à pobreza, àquilo que outrora chamávamos ‘santidade’ – seja à queda cega em direção ao caos e à morte… E isto numa época na qual compreendemos cada vez menos a positividade da renúncia. O combate dos cristãos ‘progressistas’ para reconciliar o cristianismo com a sociedade atual me parece defasado com relação àquilo que pressentem os seres extirpados pela modernidade. Essa maneira de confundir a Igreja Católica com um partido político desatualizado com os anseios de seus eleitores é uma perda do senso religioso.

E, em outra parte do mesmo livro:

A atitude da Igreja Católica, ou, melhor dizendo, a do Vaticano – hoje em dia muito isolado no seio mesmo do catolicismo – desconsiderada por uma boa parte de seu clero, ridicularizada pelo universo inteiro, bode expiatório quase oficial da mídia e de toda a intelligentsia mundial, tem algo de heróico, ainda mais que esse heroísmo não é reconhecido. Nós somos cada vez menos capazes de saudar ou mesmo de respeitar as verdadeiras dissidências. No fundo, o que encoleriza o mundo é o fato de que, longe de provar a hipocrisia que sempre se reprova nela, longe de se mostrar ‘política’, sobre este ponto a Igreja se apega firmemente à sua doutrina de sempre. Ela permanece fiel à sua atitude fundamental, que consiste em pôr uma certa definição da graça e do pecado acima de todos os imperativos puramente mundanos, de qualquer ordem que sejam eles.

O massacre do bom senso

Diante de certas manifestações de total falta de senso que andam invadindo os pilotis, é muito valorosa a advertência do historiador Evaldo Cabral de Melo, em recente entrevista para o caderno “Prosa e Verso”, do jornal “O Globo”.

Dizia ele, com coragem rara em nossos intelectuais, que política retroativa não é História. A História, para que se pretenda ciência, deve ser feita com documentos e elementos verificáveis. Em outras palavras, para estudar a História, não nos cabe impor modelos à realidade ou querer que o passado se adapte às nossas aspirações presentes. É preciso buscar a veracidade, buscar o fato, deixando que a realidade se apresente a nós tal e qual ela foi e não como gostaríamos que ela fosse.

Não digo com isso que a atividade historiográfica vai sempre ser capaz de descrever todos os fatos passados, mas que ela só atinge seu verdadeiro propósito quando se restringe àquilo que é capaz de descrever, e o faz com honestidade. Nada pode ser pior para a descrição histórica do que a contaminação ideológica, que impede os historiadores de enxergar o que não se adequa a sua pobre visão de mundo.

Uma vez descrita a realidade, aí sim é possível emitir sobre ela um juízo valorativo. Não me estenderei aqui sobre a necessidade de emitir esse juízo. Basta dizer que, sem que possamos enxergar a História de um ponto de vista universal e absorver dela algo que nos informe sobre nós mesmos, o estudo histórico deixa de ser necessário. Ora, incorporar à nossa vida verdades que nos tenham sido legadas por atos ou palavras dos homens que nos antecederam requer a emissão de um juízo.

Deste ponto de vista, podemos delinear, como aponta Olavo de Carvalho, três tipos de atuação histórica: aquele que não tem nenhum tipo de significação fora do contexto em que se desenrolou, aquele que deixa para os tempos seguintes um modelo de ação inspirador (e tem importância universal) e aquele que deixa atrás de si uma sombra de pesadelo, espécie de modelo negativo – o que não se deve repetir.

Tudo isso vem bem ao caso nesta época de exaltação ao movimento “revolucionário” de Canudos e ao seu chefe Antônio Conselheiro.

Dar a esse movimento um valor além de suas próprias circunstâncias é uma falsificação enorme, um exemplo perfeito da citada política retroativa. Antônio Conselheiro não foi um visionário e Canudos não foi um Movimento dos Sem-Terra avant la lettre. Foi, simplesmente, uma manifestação de crendices populares, um fenômeno localizado, provocado por um sentimento de impotência ante as novidades republicanas. Não há nenhuma profundidade mística, nem reivindicações progressistas nesse movimento. Há, sim, fanatismo e ignorância, recusa a qualquer autoridade e espírito de desordem.

Quando a nossa esquerda progressista elege como ídolo um sujeito como Conselheiro, é que perdeu completamente a noção dos fatos. Até porque o movimento foi reacionário, anti-progressista. Conselheiro criticava as mudanças introduzidas pela República, pregava a volta do Império e se aproveitava do sentimento religioso popular. A atração que exerceu – e exerce – vem da necessidade de ter algum modelo, de depositar as esperanças em alguma figura pública. Mais ainda, em alguém que se diz investido de poderes divinos.

Citemos a maior autoridade no assunto, Euclides da Cunha, mesmo correndo o risco de destruir doces ilusões: “Canudos ia se tornando o homizio [esconderijo] de famigerados facínoras.” De fato, o que Euclides observa no movimento é o desrespeito ao que quer que seja, aliado a uma devoção fanática a um líder messiânico, a quem foram atribuídos até milagres.

Não pensem que apóio o massacre. Pelo contrário. Tão ou mais selvagens que os sertanejos foram os militares, que não se esforçaram nem um pouco para compreender o movimento e nem refletiram sobre a imprevidência de suas ações.

O próprio Euclides os advertira que o extermínio de Canudos levaria a uma guerra longa e sangrenta. “O sertanejo é antes de tudo um forte” e lutou até o fim de suas forças. Ignorando esse fato, o sucessivo envio de tropas do Exército para a região levou a três conseqüências problemáticas, mutuamente relacionadas: a exaltação dos sertanejos, que culminava com o aumento do prestígio de Conselheiro; a morte (perfeitamente evitável) de milhares de soldados e a dizimação da população de Canudos; e o crescente atrelamento do poder político ao poder militar. A Nova República se tornava refém de seu braço armado.

Esse breve resumo pretende mostrar que não nos cabe dar à revolta de Canudos um status de luta do Bem contra o Mal. Reconheçamos que houve erros de ambas as partes, da mesma forma como ambas tinham suas razões. A terra é uma reivindicação legítima, desde que não se faça disso um instrumento para a instalação do caos – e, vale ressaltar, o discurso de Conselheiro tende mais para o caos do que para a legitimidade. Da mesma forma, a segurança nacional é uma causa legítima, deixando de sê-lo quando o poder armado incorre em abusos – caso no massacre de Canudos. Endeusar qualquer um dos lados é uma imprevidência e uma estupidez. Satanizar o outro, idem.

Mas será que adianta o apelo à razão, quando o público universitário está enceguecido pelas trevas da ideologia, e a ânsia de poder político se sobrepõe a qualquer outra aspiração da alma?

(Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1997)

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