Um programa sobre livros

Volta e meia assisto a um programa na TV francesa cujo nome ignoro. É um programa sobre livros, apresentado por um sujeito de óculos cool que é uma versão ágil do Pedro Bial. Além dele, há debatedores de perfis variados, mas todos membros da “classe média intelectual”, isto é, nenhum deles utiliza termos técnicos, no máximo termos acadêmicos já tornados populares. Não são burros, mas tendem naturalmente à esquerda, como se esperaria de franceses – é impressionante que seja preciso ver programas estrangeiros para perceber que esquerda e inteligêcia não são coisas absolutamente antagônicas.

Duas coisas chamam a atenção no programa. Primeiro, ele é sobre livros. Não um livro por programa; eu só assisti a 35 minutos e vi três livros sendo discutidos, todos com a presença do autor – no caso do primeiro, o “autor” era o homem que descobriu um manuscrito inédito de Alexandre Dumas na Biblioteca Nacional Francesa, editou-o e terminou-o. O segundo livro, Géneration 69, era de dois jornalistas falando da própria geração. O terceiro era de uma atriz que passou para trás das câmeras. Ok, não havia nenhuma coletânea de questões disputadas na Idade Média, nem nada do catálogo da Belles-Lettres, mas eram livros, recheados de argumentos. Creio que até poucos anos isto não seria possível no Brasil, mas hoje é. Parece haver uma febre de leitura; os blogs aumentaram a classe falante, que não quer passar por “inculta”, e sua idéia de cultura é exatamente esta – autores da moda e lançamentos. Nada de questões disputadas, nada do catálogo da Belles-Lettres.

A segunda coisa é a agilidade mental dos debatedores e sua capacidade de argumentação. Os jornalistas do Genération 69 não receberam um monte de elogios, nem “ganharam um espaço para falar do livro”. Sem perder o sorriso, o que os debatedores fizeram com eles teria sido considerado um traumatizante massacre verbal no Brasil. Mas não os escracharam, como muitas vezes faz o Jô Soares (cujo interesse me escapa absolutamente). Nisto residiu o grande interesse do programa – em um autor não ser convidado só para sorrir e falar banalidades, mas efetivamente ter que se defender. Aqui no Brasil, onde a idéia de velhinhas jogando cartas e tomando chá representa o ideal sublime da civilidade, isto seria impensável, seria considerado no mínimo uma descortesia. Um programa como este no Brasil acabaria sendo chato porque o apresentador falaria devagar e cortadamente; o autor falaria devagar e gaguejaria; os debatedores apenas fariam carinhas de indignados e começariam suas frases em tom humilde, dizendo “respeito muito o seu trabalho, mas acho que o Sr. está equivocado em pensar assim”, tentanto conter ao máximo a deselegância de… discordar.

Vai dizer que vocês mesmos não gostariam que o Brasil deixasse o bom-mocismo de lado, crescesse um pouco, aprendesse que a crítica não tem nada de pessoal, e tivéssemos na TV um programa em que gente francamente em desacordo fosse posta para discutir, e não sobre abobrinhas?

Distribuição de renda, de burrice e de maldade

A expressão “distribuição de renda” é um dos Cavalos de Tróia do socialismo na linguagem corrente. Repita que a renda deve ser ou estar “distribuída” e você já aceitou – não quis dizer isso, mas foi isso que disse – o socialismo, a idéia de que cabe a alguém “distribuir a renda”.

(Um brasileiro médio, ao ler este meu parágrafo, diria: “Ai, você é contra pobre!” Não perceberia que estou falando do abuso político da linguagem, exatamente porque a linguagem abusada já estabeleceu um domínio completo sobre seus pensamentos. A mera reação emocional (que ele considera “reflexão”, mas é mero reflexo) já está programada: “distribuição de renda” = “síntese do bem cósmico”, logo “inimigo da distribuição de renda” = “mal encarnado”, ou ainda, na velha terminologia, “inimigo do povo”.)

Nunca entendi porque eu, que só penso em medievalismos, fico relendo obsessivamente os mesmos poemas de Yeats (como parar de ler Two songs from a play?), e faço faculdade de grego, deveria ter o mesmo dinheiro que alguém que dedica sua vida a… ganhar dinheiro. Mas, curiosamente, pessoas que acham que a realização de árduos trabalhos intelectuais como ouvir discos de MPB as torna eruditos (erúditos, como diz um amigo) sempre crêem que a “renda está mal distribuída”. Claro, a sua idéia de cultura também dá uma idéia da sua inteligência; e, como há um aspecto moral na inteligência – sem amor à verdade, nada feito – algumas vezes a falta dela sugere um mal moral, e não intelectual. Em miúdos, elas dizem preocupar-se com os pobres, mas na verdade sentem é inveja dos ricos. Ou, como já bem disse Fernando Pessoa:

Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

– O Guardador de Rebanhos, XXXII

(Quem me apresentou este poema foi o Dr. Julio Fleichman, que sabia muitos versos de Pessoa de cor. Recordo o dia em que ele recitou um de meus favoritos: “Quem te disse ao ouvido esse segredo…”)

Daí que o socialismo seja por excelência a ideologia da pequena classe média, cheia de ódio daqueles que têm as posses com que ela apenas sonha, e não menos cheia de asco dos pobres de quem ela finge sentir compaixão, e que o uso da expressão “distribuição de renda” seja tanto um instrumento de guerra ideológica quanto o adiamento indefinido de um problema psicológico interno, pois abstrai o problema daqueles pobres feios e sujos que estão ali, no sinal, pedindo apenas uma esmola, e que eles dizem defender, mas não querem ver nem de longe.

Fortaleza & normalidade

Entre os males do país está este: parece que há 30 ou 40 anos as pessoas que tinham interesses intelectuais reais conseguiam se reunir e formar um meio. Não estou, é claro, falando de gênios; estou falando de pessoas boas o suficiente para não deixar o nível cair.

Acabou também, mesmo entre boa parte dos melhores de hoje, o simples sentimento de reverência. Ninguém quer representar publicamente a reverência, ninguém quer lhe dar um rosto apresentável. A reverência ficou nas mãos de uma direita meio ridícula, que usa penachos, que defende Vichy; ou então a reverência ficou nas mãos de gente que apenas afeta o temor diante da religião, pois se considera superior a ela, capaz de explicá-la, de dominá-la, de ditar seus rumos (já me incluí neste grupo).

Entre a pura mesquinharia de um esquerdismo boçal e a auto-ilusão de um intelecto inflado, onde fica a experiência humana pura e simples, sincera, apresentada em sua medida própria?

Só porque no Brasil pouca gente concebe que esta “experiência humana pura e simples” não possa comportar um interesse intelectual sincero, isso não é razão para nos abalarmos. Se aqui a normalidade requer a virtude da fortaleza, vamos pedi-la a Deus.

Preconceito contra o preconceito

Vocês não acham que há preconceito demais contra o preconceito?

Isso não é boutade não, é sério. Vamos pensar em quanto mal o preconceito já fez: quase nenhum. Hitler, símbolo máximo do “preconceito”, não tinha preconceitos contra judeus, mas conceitos. Podiam ser conceitos idiotas, mas eram conceitos, não sensações pré-conceituais. A escravidão dos negros também não aconteceu só por causa de um vago (ainda que intenso) sentimento de antipatia em relação aos negros. Se os portugueses, ingleses, franceses etc tivessem tanto preconceito assim nem teriam ido à África.

Doutrinas racistas estúpidas podem ser combatidas com argumentos. Mas o preconceito genuíno só pode ser combatido com a reeducação, com a mutação da sensibilidade. Agora cabe perguntar se alguém em sã consciência acha boa idéia o Estado ter a função de combater os preconceitos.

(Se o distinto leitor achar que sim, não fique imaginando o “Estado”, essa coisa linda, pura, maravilhosa e formidável que existe no mundo das idéias. Pense no Bush, no Kerry, no Lula, na Cicciolina, na Benedita da Silva, no Putin, no Chirac. Pense neles. O “Estado” são esses caras aí.

Aliás, essa é a mesma razão pela qual eu defendo radicalmente a separação entre Igreja e Estado: já pensou, a CNBB com poder político? Deus nos livre e guarde deste mal. Em tese tudo é lindo, meu filho. Na prática tudo é o PT.)

Depois da identidade, só falta o CPF nacional

Entreguei isto como relatório de conclusão de uma matéria na UFRJ neste período. Aproveitei no texto algumas coisas que já disse por aqui, e vocês hão de ter lido outras idéias alhures; como a idéia era fazer algo mais informal, não me preocupei muito também em dar todas referências e fazer bibliografia. De qualquer modo, acho que é um bom apanhado de argumentos a respeito da questão.

Agora, se for para sintetizar tudo: identidade nacional é o cacete, eu acho é que os escritores brasileiros nunca mais deveriam se preocupar com isso.

A Semana de 22 e a questão da identidade nacional

Fazendo uma analogia com a estrutura de um silogismo – premissa maior, premissa menor e conclusão – o presente trabalho pretende questionar a importância da questão da identidade nacional e redimensioná-la, bem como a Semana de Arte Moderna de 1922, propondo uma nova visão da história da literatura brasileira, baseada mais na língua e em sua prosódia do que em uma determinada visão da história do ocidente.

1. Premissa maior: a questão da identidade nacional em si

Olhando a questão da identidade nacional, poderíamos proceder à moda de São Tomás de Aquino na Suma Teológica, e iniciar a discussão com a seguinte pergunta: “a identidade nacional existe?” Depois disso temos que investigar quantos são os significados possíveis da expressão e ver qual o modo de existência dos objetos referidos.

Estamos falando de identidade nacional, portanto temos que nos perguntar: é possível que uma nação tenha identidade? Aliás, o que é exatamente uma nação? É um território político, delimitado por suas fronteiras? É este território, mais o povo que nele habita? A palavra “povo”, por sua vez, parece ao mesmo tempo parte importante da definição de nação – se não quisermos a definição meramente geopolítica – e tão difícil de definir quanto esta. Pulando todos os raciocínios, e sabendo que deste ensaio ninguém espera o rigor escolástico, podemos dizer que por identidade nacional nos referimos à identidade de um povo.

Isto, é claro, só muda a questão de “existe a identidade nacional?” para “existe a identidade do povo x?” Se esta identidade existe, pode ser reconhecida; e, como toda identidade, só pode ser reconhecida através da diferença, isto é, só pode ser claramente observada por quem tenha um grau muito reduzido de participação nela. Assim, no caso do Brasil, a identidade brasileira há de ser mais evidente ao esquimó ou ao russo do que ao português. E se por um lado a extrema dificuldade em definir a identidade nos deixa tentados a crer que ela não existe, por outro a simples comparação entre a cultura do povo brasileiro e do povo esquimó ou inglês deixa bem claro que ela existe. Assim, vamos responder afirmativamente à pergunta inicial: a identidade nacional, entendida no sentido de identidade de um povo, existe.

Mas o critério que utilizamos para chegar a essa conclusão foi o da diferença. Para um inglês, existe a identidade brasileira. E para o brasileiro? Como um brasileiro apreende a sua própria identidade? A questão é imensamente complexa.

O “brasileiro” é uma abstração, e também a identidade. Não encontramos o “brasileiro” nem a “identidade brasileira” em lugar nenhum; encontramos indivíduos que manifestam tais e quais características e não outras. Cada indivíduo, aliás, pode ter uma visão bem particular do que seja a identidade brasileira: há quem diga que o brasileiro é preguiçoso, e quem diga que é trabalhador; que só gosta de futebol, e eu não gosto de futebol e sou brasileiro; que é inteligente e que é burro etc. Isto, é claro, para não falar das diferenças regionais. Temos que encontrar algo que seja comum ao gaúcho, ao carioca, ao cearense; mas ao mesmo tempo não podemos cair na tentação prometéica de encontrar algo que satisfaça a todos os indivíduos. A delineação do brasileiro é no máximo a delineação de um tipo, e por isso mesmo provisória e frágil, mas sem necessariamente deixar de ser satisfatória. Soluções matemáticas e metafísicas são firmes e precisas; soluções para questões culturais são provisórias e condicionadas.

2. Premissa menor: a Semana de Arte Moderna de 1922 e o tratamento da questão da identidade nacional

Há muitos anos parece que a Semana de Arte Moderna de 1922 se instaurou como marco divisor da história da literatura brasileira, e até mesmo como sua chave interpretativa. Os eventos anteriores são tratados, muitas vezes, como mera convergência para a Semana – o romantismo a anteciparia com seu nacionalismo, Gregório de Mattos com sua irreverência, e até o parnasianismo como um pretexto – e os eventos posteriores como uma atualização, como o “tropicalismo” de Caetano Veloso e Gilberto Gil . Voltando à literatura, a geração de 45 é vista como uma “reação”; o concretismo como uma atualização, a vanguarda da vanguarda; e tudo o mais é definido em função da Semana, como algo que negasse ou reafirmasse as suas “conquistas”.

Porém, é muito raro ver alguém questionar – ao menos no meio acadêmico – estas “conquistas”, e pretendo aproveitar o espaço deste trabalho para fazer justamente isto.

O primeiro ponto a tratar seria a questão da identidade cultural brasileira. Digo “seria” porque creio que é importante discutir antes a importância do tema, que me parece exacerbada pelo modernismo. Que o nacionalismo, o “brasilianismo”, seja realçado pelo romantismo, é coisa que se entende em função do momento político de então: a independência do Brasil tornava a questão relevante. Mas depois disto a busca da identidade parece a busca pelo orgasmo como um bem ou valor em si.

Explico, usando como paralelo as teorias de Viktor Frankl , para quem havia basicamente dois tipos de mulheres frígidas: aquelas que sofriam de “hiper-reflexão” e aquelas que sofriam de “hiper-intenção”. A hiper-reflexão impossibilitaria o orgasmo pelo excesso de reflexão – isto é, pensamento – a respeito dele, trazendo um efeito paralisante; já a hiper-intenção seria caracterizada pela colocação do orgasmo como objeto de desejo no ato sexual, quando na verdade o orgasmo é apenas a decorrência natural de um ato cuja motivação é antes o desejo por outra pessoa. Assim, se por um lado o excesso de questionamento sobre a “brasilidade” pode acabar impedindo as pessoas de serem qualquer coisa, também pode impedir os escritores de escrever; pois nem todos podem ter uma sensibilidade adaptada a uma “brasilidade” a qual seriam obrigados. Por outro lado, a “brasilidade” como valor em si mesmo ou como objetivo final pode ocasionar um grande desperdício de talento; a “brasilidade”, no sentido de uma sensibilidade particular ao povo que vive no território político do Brasil, deveria antes aparecer em obras que tratassem de outros assuntos e questões: Shakespeare, Wordsworth ou Byron nunca trataram de “o que é ser inglês”, e mesmo assim suas obras são inconfundivelmente inglesas. Mesmo o nacionalismo irlandês em inglês de Yeats não o fez transformar a “irlandicidade” em um valor em si mesmo.

Frisemos ainda que a identidade nacional estaria em uma sensibilidade peculiar. Muitas obras do modernismo não têm uma sensibilidade brasileira: têm uma sensibilidade emprestada das vanguardas européias, e apenas seu conteúdo é “típico” do Brasil, com tucanos, papagaios, seringueiros, nomes exóticos de plantas etc. O surrealismo não foi inventado no Brasil; e aliás nem mesmo o modernismo. Poder-se-ia alegar ainda, e com razão, que o simples acompanhamento das modas européias constitui a atitude menos nacionalista possível. O contra-argumento em favor das vanguardas européias poderia ser rebatido da seguinte maneira: o que distingue uma obra de arte é sua forma, não seu conteúdo, pois os conteúdos pré-existem no mundo, sem que um artista fale deles. Assim, uma arte verdadeiramente nacionalista e brasileira precisaria contar com uma forma genuinamente brasileira, e isto, ao que parece, não surgiu nem na Semana de 22 nem da Semana de 22.

A própria idéia oswaldeana de “antropofagia”, que tem a pretensão de ocupar este lugar, sempre me pareceu poder ser explicada como simples influência. Culturas sempre foram influenciadas por outras culturas. A Europa (cristã ou paganizada) não teve, então, uma atitude “antropófaga” em relação ao mundo clássico? Não o absorveu e transformou? O romantismo inglês não tem sua dívida com o Sturm und Drang alemão? E o Portugal romântico, não leu Byron? O poeta inglês contemporâneo Geoffrey Hill não está embebido de barroco espanhol? T. S. Eliot não leu Apollinaire e os simbolistas franceses? E ninguém os chama de “antropófagos”. Do mesmo modo, parece apenas mais razoável dizer que Mário de Andrade, Oswald de Andrade etc foram simplesmente influenciados pelas vanguardas européias; não há necessidade de palavra nova quando a coisa é velha.

3. Conclusão: questões para uma futura história da literatura brasileira

Lançadas estão, pois, três objeções:

1. Ainda vale
a pena discutir a identidade nacional? Será que a época da formação nacional já não passou?

2. Não será prejudicial para a literatura tanta preocupação com a identidade nacional?

3. Não será que a Semana de Arte Moderna de 1922 é supervalorizada?

Muitas obras que têm pouca ou nenhuma dívida com a Semana de Arte Moderna – até por razões cronológicas, como os romances de Machado de Assis, as poesias de Castro Alves e, por que não?, os sermões de Padre Antônio Vieira – acabam expressando elementos do caráter nacional sem no entanto ter este objetivo explícito. Não há, é verdade, um épico convincente da formação do Brasil; não há os Brasilíadas (e a Prosopopéia não colou), mas temos grandes poemas indianistas que dão conta deste aspecto (assim como os americanos têm os poemas indianistas de Longfellow; mas acho Gonçalves Dias melhor, mais pungente), ainda que tenham uma forma inteiramente europeizada. É verdade que falamos uma língua européia, e que só isto já impediria uma “brasilização” radical como queria Mário de Andrade – o que aliás é até um benefício, considerando-se a vantagem de manter a comunicação fluente com tantas outras nações; mas isto não nos impediu de criar uma sensibilidade própria.

Usando a diferença para compreender a nossa própria sensibilidade: se nos compararmos com nossos hermanos da América hispânica, vemos que eles têm uma literatura marcada pelo maravilhoso, e que isto parece ser derivado dos primeiros relatos dos espanhóis a respeito da América, recheados de histórias fantásticas; já o relato de Pero Vaz de Caminha, “documento fundador” do Brasil por assim dizer, nada tem de fantástico. É simples, direto, objetivo, pé no chão. Por que não ver uma relação entre isto e a literatura machadiana? Muito do nosso arcadismo também é bastante assim, desprovido do fantástico. E quando há na literatura brasileira elementos “sobrenaturais”, eles parecem quase sempre emprestados do cristianismo, o que coloca o Brasil mais uma vez no seio do ocidente. Parece haver mais semelhanças entre Grande sertão: veredas e o conto A dama pé-de-cabra, de Alexandre Herculano, do que entre o primeiro e Cem Anos de Solidão.

Assim, um método para observar a “identidade nacional” na literatura seria simplesmente observar as obras já escritas e compará-las com as de outros países, em vez de tentar forjar uma literatura baseada numa identidade nacional pré-concebida, montada com uma fôrma européia e conteúdos tropicais, e que valorizasse a língua, a prosódia, o estilo, as inovações formais, muito mais do que os temas ou supostas atitudes típicas de períodos em relação ao mundo. Assim a história da literatura seria muito mais focada em autores, muito mais próxima da sua própria materialidade, e entenderia a identidade nacional como algo natural, espontâneo, não como algo programado.

Protegendo o cinema até a morte

O governo já obrigou, ou quis obrigar, os cinemas a exibir uma determinada porcentagem de filmes brasileiros. As empresas que patrocinam filmes brasileiros podem descontar o dinheiro gasto do imposto de renda. Então eu proponho o seguinte: que o cidadão comum possa descontar do seu imposto o dinheiro gasto com ingressos para filmes brasileiros. Sim, sim: bastaria que, junto com a sua declaração, envie cópias autenticadas deles. O governo pode até sofisticar a lei, com coisas do tipo “o cidadão que ganha até 20 salários-mínimos pode gastar até 3 salários com o cinema brasileiro e descontar esse valor”.

Afinal, se o cinema é “área estratégica”, como quer o Gustavo Dahl, assistir a filmes brasileiros é dever cívico, e cabe ao Estado zelar por seu cumprimento. Por isso também tenho outra proposta: que uma alternativa ao alistamento militar obrigatório seja o alistamento na Brigada do Cinema Brasileiro, em que o jovem passaria um ano de sua vida assistindo a um filme nacional por dia, logo seguido de uma palestra. Em breve, hostes e mais hostes de espectadores treinados estariam prontos para defender esta nossa riqueza, esta nossa pujante Amazônia cultural.

Da vantagem e da virtude de não levar a arte muito a sério

Após sua adesão ao Cristianismo, W. H. Auden costumava dizer em entrevistas que a arte é uma frivolidade, e que a única coisa relevante era amar a Deus e ao próximo. Por mais impressionante que seja que aparentemente não lhe tenha ocorrido que a arte pode ser também uma maneira de amar a Deus e ao próximo, sua afirmação faz sentido. Mas antes de chegar a seu sentido mais geral, vamos lembrar que, para Auden, dizer isto era de certo modo negar os breves anos de intensidade marxista-freudiana de sua juventude em Oxford, e enfatizar o que já tinha dito com o famoso “poetry makes nothing happen” do poema dedicado a W. B. Yeats. Auden queria mostrar que a arte não é eficaz enquanto instrumento de ação política, em suma.

Mas é interessante comparar a afirmação de Auden com o excessivo respeito à “arte” – aqui uso o termo apenas para me referir às “artes” do senso comum contemporâneo; no futuro, escrevendo sobre Coomaraswamy, precisarei o termo – que costumam ter certas pessoas; um respeito propriamente religioso. Crêem que as obras de Shakespeare, Camões ou sei lá quem são intocáveis como as palavras das Escrituras (nas quais mesmo a Igreja não deixou de tocar, aqui e ali; compare em diferentes Bíblias a enumeração dos frutos do Espírito Santo em Gálatas V, 22; leia a questão da Suma Teológica a respeito), e concedem às artes, com exclusividade, toda a dimensão do sublime, do transcendente, do “metafísico”; e aliás “metafísico” é uma das palavras mais vilipendiadas dos últimos 100 anos. Mas, voltando, há muitos que crêem que o playground mental proporcionado pelas obras de arte é o que existe de mais sagrado neste mundo, e também mais puro.

Um destes “muitos”, me lembro agora, foi Ezra Pound. Pound defendia abertamente que o mau artista deveria ser preso e era mesmo um totalitário. Era fascista, fascista mesmo, foi para a Itália apoiar Mussolini; não era o “fascista” da nossa linguagem comum, que significa apenas “pessoa de quem não gostamos”. Era um homem que era a favor de matar pessoas que discordassem de um plano político, um totalitário.

***

A questão, é claro, é que os sonetos de Shakespeare, os poemas de Villon etc não são sagrados. Nem os quadros de Rembrandt. O ser humano nasce, creio, com uma espécie de ímpeto religioso; se este não for devotado às coisas realmente maiores, irá voltar-se para outras coisas, necessariamente menores; e é assim que nasce um Ezra Pound. Toma-se algo que é puro fruto do engenho humano, que é condicionado, local, circunstancial – toda obra de arte é circunstancial, mas isso é assunto para depois – e alça-se este algo ao patamar do universal. Eis, de modo grosseiro, uma pequena receita de totalitarismo. Vide, um pouco mais ao norte da Europa, a importância que Hitler dava à arte.

A pessoa religiosa, por outro lado, sabe que transcendente só Deus; que extraordinário só Deus; e Deus é inapreensível. A consciência da própria pequenez diante de Deus gera o bom-senso: “posso estar errado”. Não é tão difícil criticar Yeats ou Valéry ou Auden ou Pound; mas é impossível elevar-se por si ao nível de Deus e criticá-lO. A pessoa religiosa sabe que um poema é só um poema; que a gigantesca maioria dos poemas, mesmo os mais importantes, constitui apenas uma forma de diversão. De diversão sim: a alma tem necessidade de relaxamento. Pessoas boçais rebolam, se entopem de comida, e pessoas inteligentes lêem poemas, vêem quadros, ouvem música.

Que Auden tenha aparentemente desconsiderado esta necessidade da alma, entende-se pelo contexto. Mas nós não temos o contexto dele; eu, ao menos, não tenho. Tenho à minha volta, na Faculdade de Letras, pessoas atéias que acham que escritores são deuses; idolatria, óbvio.

“Realidade” brasileira

Se você é brasileiro e está lendo este texto no seu computador na sua casa, que não fica na extrema periferia de uma metrópole decadente nem no abandonado e rústico interior do país, sua vida não é real. No Brasil, “real” é “gente passando fome”. Preocupar-se seriamente com alguma coisa é preocupar-se com a pura abstração que é “a fome” e/ou “a miséria”. Agora, se você não tirou a cara do monitor e não foi lá dar comida para os tais dos famintos, você não se preocupou. Você só tem a tal da culpa burguesa e, por alguma razão que eu ignoro, acha que encher o saco dos outros com a sua culpa o torna uma pessoa mais linda – mais linda do que seria se efetivamente ajudasse alguém. Essa incapacidade crônica dos nossos letrados em fazer uma mísera caridade real, de dinheiro ou, o que é mais difícil, tempo – e não esqueçamos os freqüentes protestos contra a veneranda e cristã instituição das esmolas – gera esta atmosfera de negação da experiência. Se você, como eu, pertence à classe média, não tem o direito de ajustar o seu imaginário à sua vida cotidiana; não tem o direito de querer falar sobre sua última viagem aos EUA, sobre o DVD que comprou, sobre poesia inglesa; porque “isso não é a realidade das pessoas que vivem aqui”. Mesmo que você ajude as pessoas que encontra, pessoas que conhece, pessoas que têm nome, que não são “os miseráveis”, que são específicas e não genéricas, isso não adianta: no Brasil, o discurso tem que ser sobre a “realidade”, e a “realidade” tem que ser tudo aquilo que você não vive.

Jesuítas x índios

O principal problema do Brasil é o seguinte: o projeto dos jesuítas fracassou.

Por causa disso, o país ainda está dividido em duas classes de pessoas: jesuítas e índios.

O jesuíta e o índio não se entendem. Exatamente como o brasileiro médio não entende de jeito nenhum o brasileiro que tem alguma aspiração intelectual.

Pense bem: a linguagem mesma está contaminada. No Brasil, o cara que gosta de Caetano Veloso é “culto”. Que palavra sobra então para o sujeito que se dedica a Platão, Aristóteles, Shakespeare etc? Só se for “alienígena” – como alguém que vem de uma terra distante para trazer um bem indesejado.

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