Entreguei isto como relatório de conclusão de uma matéria na UFRJ neste período. Aproveitei no texto algumas coisas que já disse por aqui, e vocês hão de ter lido outras idéias alhures; como a idéia era fazer algo mais informal, não me preocupei muito também em dar todas referências e fazer bibliografia. De qualquer modo, acho que é um bom apanhado de argumentos a respeito da questão.
Agora, se for para sintetizar tudo: identidade nacional é o cacete, eu acho é que os escritores brasileiros nunca mais deveriam se preocupar com isso.
A Semana de 22 e a questão da identidade nacional
Fazendo uma analogia com a estrutura de um silogismo – premissa maior, premissa menor e conclusão – o presente trabalho pretende questionar a importância da questão da identidade nacional e redimensioná-la, bem como a Semana de Arte Moderna de 1922, propondo uma nova visão da história da literatura brasileira, baseada mais na língua e em sua prosódia do que em uma determinada visão da história do ocidente.
1. Premissa maior: a questão da identidade nacional em si
Olhando a questão da identidade nacional, poderíamos proceder à moda de São Tomás de Aquino na Suma Teológica, e iniciar a discussão com a seguinte pergunta: “a identidade nacional existe?” Depois disso temos que investigar quantos são os significados possíveis da expressão e ver qual o modo de existência dos objetos referidos.
Estamos falando de identidade nacional, portanto temos que nos perguntar: é possível que uma nação tenha identidade? Aliás, o que é exatamente uma nação? É um território político, delimitado por suas fronteiras? É este território, mais o povo que nele habita? A palavra “povo”, por sua vez, parece ao mesmo tempo parte importante da definição de nação – se não quisermos a definição meramente geopolítica – e tão difícil de definir quanto esta. Pulando todos os raciocínios, e sabendo que deste ensaio ninguém espera o rigor escolástico, podemos dizer que por identidade nacional nos referimos à identidade de um povo.
Isto, é claro, só muda a questão de “existe a identidade nacional?” para “existe a identidade do povo x?” Se esta identidade existe, pode ser reconhecida; e, como toda identidade, só pode ser reconhecida através da diferença, isto é, só pode ser claramente observada por quem tenha um grau muito reduzido de participação nela. Assim, no caso do Brasil, a identidade brasileira há de ser mais evidente ao esquimó ou ao russo do que ao português. E se por um lado a extrema dificuldade em definir a identidade nos deixa tentados a crer que ela não existe, por outro a simples comparação entre a cultura do povo brasileiro e do povo esquimó ou inglês deixa bem claro que ela existe. Assim, vamos responder afirmativamente à pergunta inicial: a identidade nacional, entendida no sentido de identidade de um povo, existe.
Mas o critério que utilizamos para chegar a essa conclusão foi o da diferença. Para um inglês, existe a identidade brasileira. E para o brasileiro? Como um brasileiro apreende a sua própria identidade? A questão é imensamente complexa.
O “brasileiro” é uma abstração, e também a identidade. Não encontramos o “brasileiro” nem a “identidade brasileira” em lugar nenhum; encontramos indivíduos que manifestam tais e quais características e não outras. Cada indivíduo, aliás, pode ter uma visão bem particular do que seja a identidade brasileira: há quem diga que o brasileiro é preguiçoso, e quem diga que é trabalhador; que só gosta de futebol, e eu não gosto de futebol e sou brasileiro; que é inteligente e que é burro etc. Isto, é claro, para não falar das diferenças regionais. Temos que encontrar algo que seja comum ao gaúcho, ao carioca, ao cearense; mas ao mesmo tempo não podemos cair na tentação prometéica de encontrar algo que satisfaça a todos os indivíduos. A delineação do brasileiro é no máximo a delineação de um tipo, e por isso mesmo provisória e frágil, mas sem necessariamente deixar de ser satisfatória. Soluções matemáticas e metafísicas são firmes e precisas; soluções para questões culturais são provisórias e condicionadas.
2. Premissa menor: a Semana de Arte Moderna de 1922 e o tratamento da questão da identidade nacional
Há muitos anos parece que a Semana de Arte Moderna de 1922 se instaurou como marco divisor da história da literatura brasileira, e até mesmo como sua chave interpretativa. Os eventos anteriores são tratados, muitas vezes, como mera convergência para a Semana – o romantismo a anteciparia com seu nacionalismo, Gregório de Mattos com sua irreverência, e até o parnasianismo como um pretexto – e os eventos posteriores como uma atualização, como o “tropicalismo” de Caetano Veloso e Gilberto Gil . Voltando à literatura, a geração de 45 é vista como uma “reação”; o concretismo como uma atualização, a vanguarda da vanguarda; e tudo o mais é definido em função da Semana, como algo que negasse ou reafirmasse as suas “conquistas”.
Porém, é muito raro ver alguém questionar – ao menos no meio acadêmico – estas “conquistas”, e pretendo aproveitar o espaço deste trabalho para fazer justamente isto.
O primeiro ponto a tratar seria a questão da identidade cultural brasileira. Digo “seria” porque creio que é importante discutir antes a importância do tema, que me parece exacerbada pelo modernismo. Que o nacionalismo, o “brasilianismo”, seja realçado pelo romantismo, é coisa que se entende em função do momento político de então: a independência do Brasil tornava a questão relevante. Mas depois disto a busca da identidade parece a busca pelo orgasmo como um bem ou valor em si.
Explico, usando como paralelo as teorias de Viktor Frankl , para quem havia basicamente dois tipos de mulheres frígidas: aquelas que sofriam de “hiper-reflexão” e aquelas que sofriam de “hiper-intenção”. A hiper-reflexão impossibilitaria o orgasmo pelo excesso de reflexão – isto é, pensamento – a respeito dele, trazendo um efeito paralisante; já a hiper-intenção seria caracterizada pela colocação do orgasmo como objeto de desejo no ato sexual, quando na verdade o orgasmo é apenas a decorrência natural de um ato cuja motivação é antes o desejo por outra pessoa. Assim, se por um lado o excesso de questionamento sobre a “brasilidade” pode acabar impedindo as pessoas de serem qualquer coisa, também pode impedir os escritores de escrever; pois nem todos podem ter uma sensibilidade adaptada a uma “brasilidade” a qual seriam obrigados. Por outro lado, a “brasilidade” como valor em si mesmo ou como objetivo final pode ocasionar um grande desperdício de talento; a “brasilidade”, no sentido de uma sensibilidade particular ao povo que vive no território político do Brasil, deveria antes aparecer em obras que tratassem de outros assuntos e questões: Shakespeare, Wordsworth ou Byron nunca trataram de “o que é ser inglês”, e mesmo assim suas obras são inconfundivelmente inglesas. Mesmo o nacionalismo irlandês em inglês de Yeats não o fez transformar a “irlandicidade” em um valor em si mesmo.
Frisemos ainda que a identidade nacional estaria em uma sensibilidade peculiar. Muitas obras do modernismo não têm uma sensibilidade brasileira: têm uma sensibilidade emprestada das vanguardas européias, e apenas seu conteúdo é “típico” do Brasil, com tucanos, papagaios, seringueiros, nomes exóticos de plantas etc. O surrealismo não foi inventado no Brasil; e aliás nem mesmo o modernismo. Poder-se-ia alegar ainda, e com razão, que o simples acompanhamento das modas européias constitui a atitude menos nacionalista possível. O contra-argumento em favor das vanguardas européias poderia ser rebatido da seguinte maneira: o que distingue uma obra de arte é sua forma, não seu conteúdo, pois os conteúdos pré-existem no mundo, sem que um artista fale deles. Assim, uma arte verdadeiramente nacionalista e brasileira precisaria contar com uma forma genuinamente brasileira, e isto, ao que parece, não surgiu nem na Semana de 22 nem da Semana de 22.
A própria idéia oswaldeana de “antropofagia”, que tem a pretensão de ocupar este lugar, sempre me pareceu poder ser explicada como simples influência. Culturas sempre foram influenciadas por outras culturas. A Europa (cristã ou paganizada) não teve, então, uma atitude “antropófaga” em relação ao mundo clássico? Não o absorveu e transformou? O romantismo inglês não tem sua dívida com o Sturm und Drang alemão? E o Portugal romântico, não leu Byron? O poeta inglês contemporâneo Geoffrey Hill não está embebido de barroco espanhol? T. S. Eliot não leu Apollinaire e os simbolistas franceses? E ninguém os chama de “antropófagos”. Do mesmo modo, parece apenas mais razoável dizer que Mário de Andrade, Oswald de Andrade etc foram simplesmente influenciados pelas vanguardas européias; não há necessidade de palavra nova quando a coisa é velha.
3. Conclusão: questões para uma futura história da literatura brasileira
Lançadas estão, pois, três objeções:
1. Ainda vale
a pena discutir a identidade nacional? Será que a época da formação nacional já não passou?
2. Não será prejudicial para a literatura tanta preocupação com a identidade nacional?
3. Não será que a Semana de Arte Moderna de 1922 é supervalorizada?
Muitas obras que têm pouca ou nenhuma dívida com a Semana de Arte Moderna – até por razões cronológicas, como os romances de Machado de Assis, as poesias de Castro Alves e, por que não?, os sermões de Padre Antônio Vieira – acabam expressando elementos do caráter nacional sem no entanto ter este objetivo explícito. Não há, é verdade, um épico convincente da formação do Brasil; não há os Brasilíadas (e a Prosopopéia não colou), mas temos grandes poemas indianistas que dão conta deste aspecto (assim como os americanos têm os poemas indianistas de Longfellow; mas acho Gonçalves Dias melhor, mais pungente), ainda que tenham uma forma inteiramente europeizada. É verdade que falamos uma língua européia, e que só isto já impediria uma “brasilização” radical como queria Mário de Andrade – o que aliás é até um benefício, considerando-se a vantagem de manter a comunicação fluente com tantas outras nações; mas isto não nos impediu de criar uma sensibilidade própria.
Usando a diferença para compreender a nossa própria sensibilidade: se nos compararmos com nossos hermanos da América hispânica, vemos que eles têm uma literatura marcada pelo maravilhoso, e que isto parece ser derivado dos primeiros relatos dos espanhóis a respeito da América, recheados de histórias fantásticas; já o relato de Pero Vaz de Caminha, “documento fundador” do Brasil por assim dizer, nada tem de fantástico. É simples, direto, objetivo, pé no chão. Por que não ver uma relação entre isto e a literatura machadiana? Muito do nosso arcadismo também é bastante assim, desprovido do fantástico. E quando há na literatura brasileira elementos “sobrenaturais”, eles parecem quase sempre emprestados do cristianismo, o que coloca o Brasil mais uma vez no seio do ocidente. Parece haver mais semelhanças entre Grande sertão: veredas e o conto A dama pé-de-cabra, de Alexandre Herculano, do que entre o primeiro e Cem Anos de Solidão.
Assim, um método para observar a “identidade nacional” na literatura seria simplesmente observar as obras já escritas e compará-las com as de outros países, em vez de tentar forjar uma literatura baseada numa identidade nacional pré-concebida, montada com uma fôrma européia e conteúdos tropicais, e que valorizasse a língua, a prosódia, o estilo, as inovações formais, muito mais do que os temas ou supostas atitudes típicas de períodos em relação ao mundo. Assim a história da literatura seria muito mais focada em autores, muito mais próxima da sua própria materialidade, e entenderia a identidade nacional como algo natural, espontâneo, não como algo programado.
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