O passivo-agressivo, essa pessoa “do bem”

“Passivo-agressivo” é um anglicismo. A expressão inglesa passive-agressive costumava designar aquela pessoa que dava um jeito de se colocar no lugar da vítima para reclamar uma justiça miudinha. “Você vai lembrar de lavar a louça?” É a guerra preemptiva, a doutrina Bush (W.) das relações interpessoais.

Hoje em dia a passive-agressiveness tem sua expressão mais trivial na expressão “do bem”. Existe até um suco que se diz “do bem”. A sugestão óbvia é que quem não é do bem é… Então vem um suco — um suco, senhores, um suco — dizer que foi aprovado por todas as instâncias do conselho Jedi, eleito por votação popular com urna eletrônica, e é bebido todos os dias pelo Dalai Lama. É isso ou ser…

Sim, claro, a passive-agressiveness é um fato, cabe explicá-la, se possível for, mas combatê-la? Seria como combater o gosto pelo McDonald’s. O que interessa é como a passive-agressiveness virou retórica de mercado. Quando eu era criança era muito assertivo, mais ainda do que sou hoje, e era invariavelmente submetido a clichês do tipo “o que seria do azul se todos gostassem do amarelo?”. Pois hoje o azul, ou o amarelo, são “do bem”. Não sei qual é, depende de quem vai se dizer “do bem” primeiro.

Também podemos perguntar: eu acredito mesmo que alguém se acha “do bem” por tomar um suco, por compartilhar um texto? Sei lá, se os publicitários estão ganhando dinheiro propondo isso, então para alguém a ideia cola.

Curiosidades sobre diários

· O líder comunista Luís Carlos Prestes merece o título de diarista mais burro da história. A despeito de todas a precauções recomendadas pela vida na clandestinidade, Prestes insistiu ao longo da vida em manter um diário, que foi capturado duas vezes (pela polícia getulista e pelos militares na década de 60), implicando diversos militantes e operações secretas. Exasperado, Jacob Gorender, historiador e companheiro de partido de Prestes, deixou por escrito a queixa de que este possuía “vocação de arquivista”.

· Quando soube do golpe de 64, Paulo Francis entrou em pânico. Pensando que seria preso de imediato, ele fugiu às pressas e levou apenas dois livros para o seu esconderijo, um deles, a edição completa dos icônicos diários de Samuel Pepys.

· Alguns dos mais detalhados registros contemporâneos das peças de Shakespeare, tal como encenadas durante a vida do bardo, encontram-se nos diários de um sujeito chamado Simon Forman. Além de sua importância histórica – e da curiosidade de Forman ter entendido de maneira confusa o enredo de algumas peças (como Cymbeline) – o mais interessante é notar que o autor foi um conhecido médico e astrólogo que, de acordo com o depoimento da esposa, previu com exatidão o dia e horário da própria morte.

· Apesar de ter mantido um diário praticamente da adolescência até sua vida adulta, Evelyn Waugh fez questão de destruir os cadernos referentes a seus anos universitários em Oxford. A razão, supõe-se, teria sido a vida dissoluta que o escritor – posteriormente convertido ao catolicismo – teria levado, entre festas, comportamentos bizarros e notórios casos homossexuais. Tais experiências serviriam para compor o retrato da passagem por Oxford de Sebastian Flyte, personagem de sua obra maior, “Brideshead Revisited”.

· Antes de se suicidar, o escritor italiano Cesare Pavese ordenou cuidadosamente seus diários e deixou-os preparados para publicação em uma pasta endereçada a seu editor.

· A publicação de “diários” de personagens é um recurso consagrado entre autores de ficção. Um de meus exemplos favoritos é a abertura do livro Los Detectives Salvajes, de Roberto Bolaño:

2 de noviembre – He sido cordialmente invitado a formar parte del realismo visceral. Por supuesto, he aceptado. No hubo ceremonia de iniciación. Mejor así. 3 de noviembre – No sé muy bien en que consiste el realismo visceral. Tengo diecisiete años, me llamo Juan García Madero, estoy en el primer semestre de la carrera de derecho.

Roberto Campos, a “Nona Lei do Kafka” e a “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”

Cláudio Ribeiro

Na segunda-feira, 17 de abril, o diplomata, economista e espadachim da ironia Roberto de Oliveira Campos teria completado cem anos de vida. A ocasião me fez, a princípio, assistir ao debate (as línguas mais escarnecedoras diriam “atropelo”) que Campos travou em 1985 com o então senador Luís Carlos Prestes, na TVE, no Rio de Janeiro – Quem ainda não viu, veja! Está disponível aqui. Depois, procurei em minhas estantes o livrinho A Técnica e o Riso (Edições APEC, 1966), comprado em um sebo no ano passado, mas do qual ainda não havia lido sequer uma linha. Encontrei-o e comecei a leitura imediatamente.

Todo A Técnica e o Riso é sensacional. Porém, vou dar destaque aqui a dois textos nele contidos: “Uma Reformulação das Leis do Kafka” e “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”, pois um completa o outro. Aliás, do primeiro, meu destaque é ainda mais específico: abordarei apenas a “Nona Lei do Kafka”. A nona, de dez. E que seja logo esclarecido, como o próprio Campos o faz: o Kafka em questão não é Kafka. Não é o Franz, mas o Alexandre, economista austríaco, que fora aluno de Mises, representante do Brasil no FMI e primo não muito distante do autor de A Metamorfose.

Kafka e Campos trabalharam juntos no gabinete de Eugênio Gudin, enquanto este foi ministro da Fazenda do governo de Café Filho, entre agosto de 1954 e abril de 1955, após Getúlio Vargas ter dado cabo da própria vida. Foi durante esse período que Alexandre, cujo espírito jocoso não devia nada ao de Roberto, passou a esboçar “Leis” encharcadas de sarcasmo, as quais permitiriam “compreender” a lógica da economia brasileira – que à época era tão ilógica quanto atualmente.  

Das dez “Leis”, a nona diz respeito à “transferência da culpa”, cujo postulado é o seguinte: “É menos importante encontrar soluções do que ter bodes expiatórios”. A título de complemento, Campos escreve: “As frustrações do subdesenvolvimento criam a necessidade de odiar e de procurar causas externas à nação, no domínio da magia e da conspiração, para explicar a nossa pobreza.” Mais adiante, podemos ler uma citação de Bertrand Russell, trazida a lume para reforçar o fato de que nós, segundo Campos,  sempre “precisamos de um bom e renovado estoque de bodes expiatórios”. Eis o texto do filósofo galês: “Não gostamos de ser privados de nossos inimigos; desejamos odiar alguém quando sofremos. Seria tão deprimente pensar que sofremos porque somos tolos; contudo, tomada a humanidade em seu conjunto, essa é a pura verdade! Por esse motivo, nenhum partido político pode adquirir força motriz exceto através do ódio: precisa expor alguém à execração.”

A necessidade de transferir a culpa a outrem, de “expor alguém à execração”, a fim de purgar problemas que são inerentes a determinada comunidade, é um fenômeno ubíquo ao longo da história. “Malhar o Judas” traz sempre uma catarse. Catarse esta que estabelece uma paz momentânea para os entreveros fratricidas. No caso especial explorado pela dupla Campos-Kafka, a “comunidade dos economicamente subdesenvolvidos” prefere culpar a comunidade das formigas, a icterícia ou o “imperialismo ianque” a reconhecer que ela própria tem parte na crise instalada.

Isto fica claro quando Roberto Campos retoma o tema em “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”.

Vejamos!

Munido da mesma verve que alinhavou a “Reformulação das Leis do Kafka”, Campos diz, logo na abertura de “Teoria Animista do Subdesenvolvimento”, que após conversa com o embaixador Miguel Álvaro Osório de Almeida, ambos ficaram “preocupados em chegar a uma mensuração realista do crescimento da economia brasileira; do esforço desenvolvimentista, em suma, para usar o jargão corrente.” Esta mensuração realista teve como resultado um  “subproduto inesperado, que interessará tanto ao sociólogo e ao psicólogo, quanto ao economista: a interpretação ‘animista’ do subdesenvolvimento econômico”. Com a pena da galhofa, e em explícita referência à “Nona Lei do Kafka”, o diplomata acentua: “Em matéria de interpretação econômica continuamos nitidamente pré-lógicos. A essência da atitude animista reside em procurar sempre causas externas ao homem e à nação, no domínio da magia e da conspiração, para explicar o subdesenvolvimento.”

De novo aparece a “transferência da culpa”, a necessidade da construção de um “dentro” e um “fora”, qual uma operação xamânica que expurga o objeto/sujeito causador de malefícios ou expulsa os espíritos malignos. “A objurgação”, prossegue Roberto Campos, “é preferida à autocrítica. O ‘exorcismo’ é uma técnica normal de agir e se espera sempre que do fundo da tenda surja a figura messiânica do ‘salvador’. Dessarte, o desenvolvimento econômico é interpretado em parte como um transe e não como uma acumulação de rotinas produtivas; a proeza descontínua e não o incremento miúdo do esforço; a mágica e não a eficiência.”

E, se a economia se desenvolve, junto a ela se desenvolve também o animismo. O primeiro tipo, segundo Campos, teria sido o “animismo totemista”, isto é, “as forças que impediam o desenvolvimento nacional se corporificavam em animais e objetos”. O exemplo dado é o da sentença de Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto: “‘Ou acabamos com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil’. A noite de São Bartolomeu aplicada às formigas seria o dia da emancipação nacional. Hoje ninguém mais pensa em saúvas e continuamos subdesenvolvidos”.

Com a figura do Jeca Tatu, Monteiro Lobato, teria, de acordo com Campos, introduzido “uma nova forma de animismo. Desta vez, o inimigo era o ‘amarelão’, que solapava o esforço do caboclo nacional. Consequentemente, a purificação das tripas deflagraria um processo de desenvolvimento.” Com o avançar das décadas, os “trustes” e as “forças ocultas imperialistas” formaram o terceiro tipo de animismo que, para muitos, ainda hoje necessita de exorcismo.

A torto e a direito, ou, melhor dizendo, à esquerda e à direita, o que sempre buscamos – e não apenas nós, gente brasiliana –, desde a época mais remota até à era da macroeconomia e da globalização, é aquilo que um certo autor francês falecido há não muito tempo esboçou sob o nome de “mecanismo sacrificial da vítima expiatória, ou do bode expiatório”, em livro intitulado A Violência e o Sagrado (tradução de Martha Conceição Gambini; Paz e Terra, 1990), no qual podemos ler as seguintes palavras: “Qualquer comunidade às voltas com a violência, ou oprimida por uma desgraça qualquer, irá se lançar, de bom grado, em uma caça cega do ‘bode expiatório’. Os homens querem se convencer de que todos os seus males provêm de um único responsável, do qual será fácil livrar-se.”

Roberto de Oliveira Campos provavelmente não conheceu a obra desse autor, René Girard, mais intuiu, em seus momentos de descontração com amigos e companheiros de métier, alguns pontos que vão ao encontro do pensamento do francês. Ambos, assim como Bertrand Russell, souberam que o ódio é o mais inflamável dos combustíveis.

A identidade francesa, a identidade

No Insurgente, escrevi uma pequena reação ao texto do Rodrigo de Lemos n’O Estado da Arte, falando de como a figura de Renaud Camus me lembrava a de… Pat Buchanan.

A tese principal de Camus é bastante simples: na França, um povo está sendo fisicamente trocado por outro. Claro que, se o francês não quer procriar, e se os imigrantes procriam… Não é à toa que o grande bestseller da direita francesa se chama justamente Le Suicide Français (de Eric Zemmour). Vejam bem: eu não li o livro. Estou só ligando alguns pontos.

Resta, porém, a questão da identidade nacional francesa. Identidade nacional é um dos temas da minha pesquisa de doutorado em literatura comparada (para quem quiser saber, será uma comparação entre a literatura de fundação nacional brasileira e argentina), por isso estou atento ao que se diz sobre o tema — mesmo que seja este artigo completamente besta do Figaro, que afirma ser sobre a identidade nacional francesa; porém, troque algumas palavras, e ele pode ser sobre qualquer coisa.

Sobre identidade nacional e nação, creio que é possível dizer duas coisas com alguma certeza.

Primeira. A nação não existe independentemente das pessoas que creem que ela existe. A França ou o Brasil só existem na medida em que haja quem creia nisso.

Muitos anos atrás, li na New Criterion um artigo de Roger Scruton que trazia uma citação de De Gaulle que me revoltou profundamente. O general teria começado sua biografia dizendo: “a vida inteira tive uma certa ideia da França”. Lembro de pensar: “a França são milhões de pessoas, como é possível ter uma ideia de todos esses indivíduos, seu totalitário?”. Ainda não me julgo totalmente errado, mas, após ter passado eu mesmo algum tempo na França, entendo que “uma certa ideia da França” não é algo totalmente descabido. Não vou me meter a falar agora que ideia é essa porque no máximo vou dizer qual é a minha ideia da França — decerto mais romântica do que realista. (É delicioso ser estrangeiro.)

Segunda. Essa “certa ideia” (notaram a ambiguidade em “certa”?), mesmo que exista, mesmo que dependa de quererem que ela exista, não pode ser desejada diretamente. A minha identidade individual, que me distingue, é aquilo que eu faço sem querer diretamente; o meu estilo pode ser em parte calculado, mas a parte que vai ficar como “eu” aos olhos dos outros é a parte que eu não calculei, que é uma decorrência do meu modo de agir. Você produz um texto claro e interessante porque seu foco é o que você pretende dizer, não a produção de um texto claro e interessante. Quem quer produzir um texto claro e interessante acaba produzindo aquelas redações nota 10 que depois viram pretextos para questões de prova. Ou ainda: suponha que um dia você e a sua namorada se encontram e tudo é perfeito. Tempos depois, vocês querem reproduzir aquilo. Não dá. Tudo foi perfeito porque “aquilo” não era o foco.

Em parte, é esse o dilema francês; em parte, é esse o dilema da identidade. Quando ela vira um tema, você vira uma banda de rock com dinossauros tocando as mesmas músicas do tempo de Ramsés II. Pode ser legal. Mas não é a mesma coisa. E talvez fosse mais digno sair de cena.

Ou você pode sempre estar em busca de algo. A sua própria identidade pode nunca virar um tema para você próprio. Os outros que digam o que ela foi depois que você morrer. My Way (assim como Imagine) é a canção dos losers cósmicos. Se você tem de afirmar, é porque não é, e provavelmente não foi.

X-Trans, porque somos muitos

Seu nome atual é Eva Tiamat Baphomet Medusa. Mas é também a lista das mutações às quais foi submetendo o próprio corpo no desejo de conformar uma identidade hesitante, que primeiro pretendeu-se mulher, depois dragão, depois demônio, e acabou num híbrido monstruoso de tudo isso. Tendo renunciado à condição humana para abraçar “sua mais natural autoconsciência como uma besta mítica” – tal como declara em seu blog – essa “x-trans”, outrora um bancário do Arizona que acudia ao nome de Richard Hernandez, tenta agora romper os limites binários do “gênero” para se realizar numa categoria mais abrangente, que seria a de uma “espécie”.

Aos 55 anos de idade, trinta dos quais vividos como Richard, vinte e um como Eva, e nos últimos quatro – desde que amputou as orelhas e o nariz, tingiu as escleras de verde, bifurcou a língua, tatuou-se de escamas e implantou protuberâncias sob a pele, configurando uma senhora reptiliana – diz ter evoluído de transgênero para trans-espécie, termo que designa uma prática radical de modificação corporal. Aparentemente, há coerência nessa afirmação, pois nem todo praticante de modificação corporal é um transgênero, muito embora todo transgênero seja um praticante de modificação corporal (assim como o são as beldades produzidas à custa de silicone, botox e lipoaspiração). Trata-se, portanto, de uma autopercepção que ultrapassa a sexualidade e envolve um espectro mais amplo de referências, no qual as noções de identidade e alteridade tendem, por vezes, a sucumbir numa confusão monstruosa – reavivando o antiquíssimo fenômeno de indiferenciação que, de Ovídio a Kafka, é representado como uma aflitiva metamorfose.

Todos os escritores que se detiveram nesse tema, independente do contexto, testemunham o mesmo imperativo pertinaz de se forjar uma singularidade, quer seja voluntária ou compulsória, capaz de ressignificar as relações interdividuais num vácuo de indistinção coletiva. Mas é uma singularidade que só funciona como adesão a uma esfera mítica, imantada por uma poderosa carga emocional, da qual se espera o reencontro com algo ou alguém em sua imediaticidade modelar – ou, como diz Girard, algo ou alguém suscetível de resgatar uma transcendência nas mediações.

Reparem que as metamorfoses de Ovídio e Kafka têm em comum a mesma fatalidade extraordinária com a qual seus personagens são vitimados, isolando-os numa anormalidade trans-cendente, desde a qual se faz possível um consenso identitário. Neste sentido, quando os xamãs se travestem de peles e chifres, de penas e garras, numa reconfiguração totêmica dessas entidades anormais, eles estão, precisamente, atualizando esse “significante transcendental”, que se desumaniza para restabelecer uma noção da própria humanidade.

Os monstros de todas as mitologias teriam, portanto, esse encargo de diferenciação gregária. Jorge Luis Borges, no bestiário intitulado Livro dos Seres Imaginários, cita como exemplo um monstro germânico cujo nome, Baldanders, significa “já diferente” ou “já outro”. Enquanto Tolkien, no ensaio intitulado Beowulf: the monsters and the critics, repreende os literatos de sua época por não perceberem que os monstros, Grendel e sua mãe (descendentes de Caim!), não são an inexplicable blunder of taste; they are essential, fundamentally allied to the underlying ideas of the poem, which give it its lofty tone and high seriousness. Para Tolkien, esse poema evidencia o quanto o antagonismo dos monstros lhes confere um prestígio às avessas, que sempre restou despercebido nas narrativas míticas precedentes, mas que, em razão da perspectiva cristianizada de seu autor, adquire ali conotação oposta.

Considerando então esse prestígio às avessas do “já diferente” ou “já outro”, impõe-se a hipótese de que personificar, ou melhor, despersonificar-se numa criatura monstruosa equivale a se retirar do círculo das imitações possíveis, ou seja, inviabilizar, drasticamente, toda forma de mediação, tornando-se o extremo de qualquer coisa. Mas, como ensina Girard, todo ato extremado tende a sabotar a plenitude do modelo, convertendo-o em obstáculo absoluto – no qual cada deformidade cultivada interdita e repele as atenções que até então pretendia concentrar. E o que são essas deformidades senão o conjunto de distintivos, abortados e sobrepostos, onde as individualidades irresolutas tentam se fixar sem jamais obter uma síntese unificadora.

Eva Tiamat Baphomet Medusa, numa entrevista para o canal FOX10 de Phoenix, faz um relato de sua trajetória que parece confirmar tal hipótese. Evocando lembranças de uma juventude difícil (escusas de todos aqueles que se tornam rancorosos depois de terem sido só infelizes), conta do inconformismo precoce com o próprio corpo, que lhe parecia um dado a mais na mais banal das estatísticas. Conta ainda como, na puberdade, o desejo de ser mulher despontou juntamente como o fascínio por répteis, especialmente por cobras (sem nenhuma conotação fálica, faz questão de ressaltar); e, não obstante, tocou a vida como um rapaz, teve um filho (que hoje se mantém distante); até que aos trinta anos, depois de muitas tatuagens e piercings, decidiu apagar o Richard na crossdresser Eva. Decorreram outros vinte anos de progressivas modificações, que, todavia, permaneciam aquém de uma imagem sempre inapreensível. Foi quando, já no limite do desespero, após contrair o HIV e tentar suicídio, aderiu ao satanismo, deixando-se encantar pelo Baphomet. Naquele demônio hermafrodita, ou melhor, naquele compósito de gente, cão, burro, bode, serpente e ave, supunha ter achado enfim um modelo que parecia o ponto convergente para todas as suas imitações malogradas.

O problema é que uma entidade tão marvel, tão freak, como o Baphomet, apenas exterioriza a impossibilidade daquilo que pretende realizar. É o que diz Girard em Shakespeare – Teatro da Inveja (p.129):

Entidades que começam a fundir-se jamais se combinarão verdadeiramente; o resultado é uma maçaroca de pedaços emprestados dos seres que a compõem. Se surge uma ilusão de unidade, ela incluirá fragmentos dos contrários mencionados arranjados num caótico mosaico. Em vez de um deus e um cão encarando-se um ao outro como duas especificidades irredutíveis, haverá misturas e combinações mutantes, um deus com características de bicho, ou um bicho que parece um deus.

Para Girard, essas figuras desconcertantes são os emblemas mais expressivos da própria indiferenciação, que só pode projetar-se como uma “uniformidade conflituosa” e, portanto, irrealizável. Como, aliás, não menos irrealizável é a uniformidade do “X” com qual o se pretende neutralizar os pronomes pessoais e abolir o “sexismo” de artigos e substantivos. Tudo isso seriam sintomas da mesma indiferenciação que subjaz à impostura transcendente que os transformistas arcaicos conseguiam instrumentalizar como um princípio de ordenamento. Mas agora, desprovida de suas máscaras e ritos, esvaziada de sua sacralidade, encontra sobrevida em formas residuais, sem qualquer proveito de ordem grupal, que não o de uma mera evasão. Com efeito, em cada cosplay, em cada human-pups, em cada adicto de implantes ou mutilações desfigurantes, é possível vislumbrar essa indefinição da alma, onde pulsões reativas e compensatórias irrompem como répteis ou felinos assombrosos, símios provocantes, que crescem, encolhem, revoluteiam, no esforço de firmar-se numa individualidade que jamais é satisfatória ou definitiva.

Quando quer consolar-se dessa recorrente insatisfação, Eva Tiamat Baphomet Medusa diz, em seu blog, que costuma cantar Born this Way de Lady Gaga, ou Desperate Cry do Sepultura; ou ainda ler textos satanistas para convencer-se de que sua metamorfose comporta os mesmos adiamentos decepcionantes da metanoia cristã.

Não deixa de ser uma comparação cabível, visto que as dinâmicas miméticas de ambas as operações têm na vaidade a causa genérica para toda e qualquer decepção. Na metanoia há um modelo definido, cuja transcendência se realiza como participação em nossa humanidade, fazendo de sua “imagem e semelhança” a centralidade daquilo que singulariza cada pessoa. Trata-se, portanto, de uma dinâmica mimética retrospectiva, que implica num retorno à condição original – uma conversão. Mas é essa centralidade comum e gratuita que (sem a humildade, e, sobretudo, sem o concurso da Graça) suscita frustrações e adiamentos. Ou, como diz o stárets Zósima ao jovem Aliocha Karamazov, é esse rosto humano, demasiado humano, que nos faz hesitar e recuar diante do Cristo.

Na metamorfose, por sua vez, tem-se uma dinâmica em sentido contrário, onde a renúncia à condição humana, alinhada à carência de um modelo único e centralizador, precipita o desejo em permutações cada vez mais exacerbadas – tentando assim se esquivar à participação na imagem do outro, cuja inadmissível semelhança, só pode ser decomposta pela decomposição de si mesmo. Girard aponta para algo de escatológico (ainda que num nível particular) nesse embate destrutivo entre natural e artificial. Curiosamente, Eva Tiamat Baphomet Medusa parece ter uma intuição similar, visto que, numa de suas páginas do Twitter, após fazer referência ao último livro da Bíblia, deixou a seguinte postagem: My metamorphosis reveals a new persona I am adding to my list of names: Apocalypta, the Ten-Horned Salt Water Dragon (sic).

É de se supor que suas leituras da Bíblia tenham somente o propósito fútil de buscar outro mito para se reinventar. Caberia então especular se essa busca, num livro tão desmistificador, não estaria dando ensejo a uma revelação desestruturante de seu universo fantasioso. Talvez isso explicasse outra postagem que, dias depois, dizia: Depression starting to set in. I must see a Dr. soon (sic). Talvez!… Fato é que estudos psiquiátricos recentes têm correlacionado a prática de modificação corporal a um tipo de conduta suicida. E nas estatísticas que corroboram esse estudo constam os nomes de Stalking Cat e Shannon Larratt, que, além de suicidas, foram amigos íntimos de Eva Tiamat Baphomet Medusa. Coincidência pouco inusitada para uma turma que não aguenta “ser mais do mesmo”, e faz da própria decomposição uma meta. A propósito, em outro de seus perfis no Twitter, Eva Tiamat Baphomet Medusa deixou uma mensagem tão lacônica quanto intrigante: Jesus wept! John 11:35. So did I today while take a shower. Many thoughts, many thoughts, many thoughts… É o versículo do evangelho de São João em que Jesus chora pelo amigo Lázaro, já morto. Que tantos pensamentos esse versículo ter-lhe-ia provocado? Sua comoção decorreria de uma identificação com o Cristo ou com o amigo morto?

Na falta de repostas, resta apenas o palpite de que a leitura da Bíblia estaria propiciando a Eva Tiamat Baphomet Medusa uma constatação de sua ilusão e, maiormente, de seu sofrimento. Considerando então, como propõe Girard, que o apocalipse não prenuncia um fim, mas cria uma esperança, compete rezar para que esta constatação não lhe sobrevenha como um juízo autodestrutivo. Antes, ocasione um reencontro com Aquele que pode, de fato, restaurar-lhe a individualidade; e no Dia do Juízo – lembrando o verso místico de Adélia Prado – pode fazer seu corpo ressurgir com a beleza das coisas que nunca pecaram, exato e digno de amor.

Blog não é textão

Tenho pensado sobre gêneros textuais. Deus sabe o que a diversidade vem ensinando nas escolas, mas gêneros textuais são diferentes de gêneros literários, ainda que sejam parecidos com estes. Gêneros textuais são uma das partes mais dolorosas daquilo que você não sabe quando aprende uma língua estrangeira: a carta comercial, a redação de escola, o artigo de jornal. Não pense o leitor que esses gêneros não variam de idioma para idioma…

Nos últimos anos internéticos (dois, três, cinco, sei lá; tudo na internet parece que foi ontem e que foi no século retrasado) surgiu um novo gênero textual: o textão, que parece viver entre o Facebook e o Medium. Nunca o entendi bem. Meu lado autista-psicótico-literalista me sugere que é apenas um texto comprido, o que provoca a ladainha automática de que “ninguém mais lê, ó, meu Deus etc.” Por outro lado, a experiência mostra que o textão é uma espécie de lição de moral sem a menor graça retórica ou narrativa. Esopo escrevia fábulas, La Fontaine deu seu pitaco, e padres e pregadores empenharam-se em falar bonito. Se mantivermos a frieza classificatória, o padre Antonio Vieira foi o grande clássico do textão em língua portuguesa — e veja o leitor que alguns de seus sermões são tão compridos que é o caso de realmente perguntar-se se ele os fazia mesmo nas igrejas.

Além da polarização ideológica, parece existir ainda outra polarização: aquela entre o textão e a zoeira. De fato, muitas vezes pode ser difícil até mesmo distinguir um do outro. Mesmo assim, e para aquém ou além das 28 razões pelas quais você nunca mais precisará acompanhar um argumento de cabo a rabo, o impulso moralizante aparece o tempo todo. Dá saudade de quando era possível simplesmente falar e ouvir sem demonstrar ser virtuoso ou (virtuosamente) engraçadinho.

No fundo, a ideia é essa. Os anos passam, a água corre debaixo da ponte Mirabeau, e o formato do post de blog me parece mais adaptado a um tom de conversa, à fala relaxada de quem no entanto preza um certo rigor (mesmo que esteja sinceramente equivocado). Ouso dizer que isso, hoje, soa até ligeiramente subversivo: escrever porque sim, por puro gosto da conversa, por puro gosto do idioma. Diletantismo? É provável. Não me importa, ou talvez me importa muito: parece um diletantismo urgente.

O meio é a mensagem. O blog é anárquico, antiquado; guarda alguma coisa do mundo impresso, presta-se a mil atualizações diárias e a duas atualizações mensais.

Vejamos quanto tempo dura está encarnação de O Indivíduo.

A diferença entre o Rio de Janeiro e São Paulo

*Nota: este texto terá muitas generalizações. Se você se sentir ofendido por uma generalização…

Há alguns anos venho explicando a amigos em conversas pessoais o que penso ser a diferença entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Pois uma vez uma senhora numa mesa ao lado da minha já se levantou para me cumprimentar pelo brilhantismo de minha explicação; e eu mesmo sinto que é hora de registrá-la por escrito, para que a humanidade a conheça e, mais importante, não a atribua a outra pessoa. Afinal, há algum tempo descobri que David Foster Wallace usou a mesma imagem que eu mesmo (em minha peça) para falar do sujeito que se jogou do World Trade Center no dia 11 de setembro; e eu, que nunca nem li mais do que meio ensaio de Wallace, agora passarei por plagiário, ou, o que é mais grave, praticante da intertextualidade.

Admito que amigos me ajudaram na formulação dos conceitos e sobretudo nos exemplos, mas a fórmula que enuncia a grande diferença veio desta minha privilegiada cachola. E lá vai: a diferença entre o Rio e São Paulo é que o Rio é uma sociedade aristocrática, com os vícios e as virtudes de uma sociedade aristocrática, e São Paulo é uma sociedade burguesa, com os vícios e as virtudes de uma sociedade burguesa.

O Rio, é claro, foi a capital do Império e depois da República. Ou seja: uma cidade de burocratas, uma sociedade baseada no privilégio. Privilégio que começa com os famosos “PR” inscritos nas portas das casas para anunciar que aquelas propriedades seriam usadas pelo Príncipe Regente. A população interpretava o “PR” como “ponha-se na rua”. (E não falei que “PR” são as iniciais de “privilégio” para evitar a leminskização do cosmos.) Mas eis que cá estamos, todos nos achando privilegiados. Privilégio significa “lei privada”. Por isso o Rio deve ser a capital mundial dos concurseiros, que têm algo como zero de espírito de serviço público, e cem de espírito de obtenção dos privilégios da burocracia. Por isso também o Rio é uma cidade onde absolutamente tudo é pessoal. Para você ir num restaurante e ter uma boa experiência, é preciso conhecer o maître, os garçons, ou ao menos ter aquele clique inicial de simpatia na hora de chegar. Não existe nenhum atendente no Rio, do setor público ou do privado, que acredite que sua obrigação é atender, gostando ou não de quem será atendido. Por isso o Rio é a cidade da afetação perpétua de intimidade, que só direi que esconde um enorme desprezo se o leitor aceitar que esse desprezo significa que o outro de fato é imediatamente esquecido.

Mais ainda, no Rio de Janeiro é preciso conhecer as pessoas. Nosso elitismo é em parte de classe, em parte grupal. Nossa classe está aberta a quem imitar nossos trejeitos. Daremos tudo a um dos nossos, mesmo que seja uma besta, e negaremos tudo a quem não for um dos nossos. Quantas vezes não vi, nas duas faculdades de Letras que frequentei, na PUC e na UFRJ, alunos talentosos que desconheciam certas regras de traquejo social – que, em suma, traíam sua origem social pobre – serem desprezados por professores – sem que nem soubessem que estavam sendo desprezados? Esses pobres alunos não entendiam que fazer a pose era mais importante do que estudar.

Mas há as virtudes, claro, e a primeira virtude é que no Rio de Janeiro a ideia de cultura não é estranha à vida, porque para um aristocrata ela é normal – tão normal que ele não precisa ficar falando dela. Jamais um carioca vai convidar você para ver quantos livros ele tem. Ele tem livros. Por quê? Você não tem? Que coisa. Isso tudo faz com que a discussão no Rio seja mais leve ou ao menos mais fluente. Se estamos discutindo, é porque naquele momento somos iguais. Não estamos questionando um as credenciais do outro, estamos só falando daquilo que pensamos, não esperamos que venha daí nenhuma consequência prática. Por isso o carioca fala o que pensa e nunca interpreta isso como arrogância. Nosso parâmetro é outro. (Não que aquilo que o carioca pensa seja necessariamente mais bem pensado.)

Outra virtude é que o carioca está sempre à vontade. As pessoas podem achar que eu sou intelectual, e olha que eu até tenho um par de óculos com aro mais grosso, mas é muito difícil encontrar alguém no Rio que queira ostentar uma identidade. O sujeito é surfista no verão, um dia corta o cabelo punk, vai em todos os lugares, e entende que tudo isso é meio que só de brincadeira. Em São Paulo não. Em São Paulo há punks. De verdade. Que acreditam no punk. Um carioca pensa nisso, diz “hã?” e esquece.

E essa é a chave para pegar o que há de burguês em São Paulo. Se no Rio todo mundo parece filho de um aristocrata decadente, em São Paulo todo mundo parece filho do dono do armazém, mesmo que seja bilionário. São burgueses que se ilustram e não conseguem deixar de se orgulhar de sua ilustração, de querer alardeá-la. Cultura é outro objeto que se adquire e que se ostenta. É como um Porsche, que, bem, você não compra para deixar na garagem.

Por isso também, como falei, o paulista tem uma identidade. Ele é um hipster, ou não gosta de hipsters. É punk, ou skinhead, ou não gosta deles. Ele estudou “na Poli” ou “no Largo de São Francisco” e acha isso o máximo. (Não estou dizendo que não seja.) Aqui no Rio a gente não tem orgulho de onde a gente estudou. Porque nós somos deuses. Já éramos especiais e o lugar é que ficou mais especial com a nossa presença. É por isso também que emporcalhamos tudo. Um deus não liga para nada. (Ver, a esse respeito, a cena de O Leopardo em que o Príncipe de Salina explica por que as estradas sicilianas são tão sujas.)

O GattopardoO Leopardo

Por ser burguês, o paulista sabe o quanto as coisas custam. Sabe que sua posição no mundo é frágil, e depende de ele não criar muitos problemas. Isso é verdade, não estou negando. Mas essa atitude leva a uma diplomacia extremada nas relações. Vou dar um exemplo. Certa vez, há muitos e muitos anos, dei um breve curso em São Paulo, e os alunos me perguntaram o que eu achava de tal livro. Peguei o livro, dei uma olhada, e no dia seguinte falei: “Acho uma fraude. Ele pegou trechos de um livro antigo, que eu conheço muito bem, traduziu e não deu crédito. Aliás, ele reproduziu a fraude de outro autor que já tinha feito a mesma coisa com o mesmo livro. Gente, traduzir e dizer que é seu é fraude.” Pois o diretor do lugar onde dei o curso – uma pessoa boníssima, sem a menor ironia – veio dizer que minha postura era “agressiva”. Mas, caramba, agressão é você vender gato por lebre. A lição que levei foi que em São Paulo estamos sempre pisando em ovos. Mesmo quando o interlocutor diz que não estamos, que podemos falar abertamente.

Claro que o melhor lado de São Paulo é a eficiência. O paulista compreende bem as relações impessoais. Todos os garçons do Brasil deveriam ser paulistas, ou ter treinado em São Paulo. Mais ainda, o paulista busca realmente a qualidade. Você vê isso porque o nível médio de tudo é mais alto em São Paulo. O Rio é uma cidade de extremos; num dia é perfeita, no outro dia é um inferno, e você nunca sabe qual personalidade ela vai assumir. São Paulo ao menos é constante. O que é bom é bom, o que é ruim é ruim, e você já conhece.

O paulista também é um manso, em comparação com o carioca. Há não tanto tempo cheguei numa estação de metrô umas seis da tarde. Tinha gente demais. Cheguei a pensar em desistir. Porém, na minha perplexidade fiquei olhando aquela gente toda e… percebi que as pessoas estavam ordeiramente organizadas numa fila. Era apertado, mas pacífico. No Rio, qualquer aglomeração daquelas no metrô me daria praticamente a certeza de uma convulsão social. Por isso também o trânsito em São Paulo pode ser de maneira geral muito mais intenso, mas também é muito mais civilizado. Porque o paulista, burguês cioso, não vai arriscar suas propriedades como o carioca, esse divino temerário.

O Rio é essencialmente um balneário, mas nós cariocas estamos convencidos de que é o melhor lugar do universo. Quando vou à praia no Posto 6 e tiro a cabeça d’água e vejo as montanhas de Niterói num dia sem névoa, é isso que eu penso. Nós, cariocas, somos aristocratas decadentes e meio delirantes. O Rio é nossa droga, é a cidade que nos maltrata e também nos estonteia. Sua beleza não é nosso mérito: já destruímos praticamente todos os prédios bonitos da cidade (na orla, não consigo pensar em nenhum entre o Copacabana Palace e a Barra da Tijuca). São Paulo é uma megalópole de negócios. Pode impressionar, mas ficar em São Paulo será sempre uma decisão racional, e não pelo menos meio irracional, como ficar no Rio.

Mesmo que no Rio chova muito mais do que se conta. O que é muito chato.

Antiga Sé & adjacências: Centro do Rio, 23 de junho de 2013

Hoje é domingo. Fui à missa no rito extraordinário na Antiga Sé do Rio de Janeiro, na rua Primeiro de Março, em frente ao Paço Imperial. Tirei essas fotos com o celular na saída da missa. (Sou um péssimo fotógrafo, claro.)

De frente para a igreja, assim estão as janelas à esquerda:

Antiga Sé, primeira janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, primeira janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, segunda janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, segunda janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, terceira janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, terceira janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, terceira janela à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, terceira janela à esquerda a partir da porta

Uma visão do outro lado da rua:

Antiga Sé, janelas à esquerda a partir da porta
Antiga Sé, janelas à esquerda a partir da porta

Aqui, a entrada do prédio da Receita Federal (tentei esconder meu reflexo no centro, um amigo saiu ao lado):

Receita Federal, Rua Primeiro de Março, Centro do Rio de Janeiro
Receita Federal, Rua Primeiro de Março, Centro do Rio de Janeiro

E apenas uma das janelas apedrejadas do Paço Imperial:

Paço Imperial, Rio de Janeiro
Paço Imperial, Rio de Janeiro

Camões não é um iPhone

Se fizerem um show com todas as músicas de Noel Rosa, Tom Jobim ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio de lá sem achar que passei a tarde numa biblioteca. – Bruno Tolentino

Se você olhar a tal da “alta cultura” apenas como um objeto que gente mais esnobe do que você usa para… esnobar você, então realmente a primeira estratégia que o ressentimento lhe ditará será desdenhar da “alta cultura”.

Agora, essa é uma visão inteiramente paranoica. Camões não precisa ser visto como um iPhone, nem como uma bandinha de rock obscura, como algo que vai ajudar você a achar que tem mais bom gosto do que os outros. Não conheço quem fosse ficar ressentido se de repente as pessoas atentassem para a genialidade rítmica de Sete anos de pastor”. É claro que mesmo dentro dos círculos “eruditos” existe esnobismo. Vou até contar para vocês um meu esnobismo. Creio ter feito a primeira tradução de um poema inteiro de Geoffrey Hill para o português; no dia em que o “descobrirem”, vou precisar rezar muito para não fazer cara de “só agora que vocês…?” Mas esse fenômeno é igual ao da pessoa que julga conhecer, digamos, o verdadeiro funk porque vai ao baile menos frequentado numa favela que as UPPs desconhecem. É só esnobismo.

Você pode, se quiser, interpretar o mundo exclusivamente como esse jogo de esnobismo, olha, lá está o Pedro com seu monóculo, lendo Camões e tomando vinho francês, desprezando a brava gente brasileira que sacoleja – e, quer saber, sacolejar também é cultura etc. Aí você pode criar uma pose para me esnobar, chamar o consenso universitário, dizer que o desdém que você me imagina sentindo é cultura do estupro e tal.

Mas você também pode sair desse inferno kafkiano, entender que a porta está aberta e é só entrar. Sim, apreciar certas obras de arte demanda trabalho, apuro. Demanda você acreditar que é você, espectador, consumidor, que precisa estar à altura daquele objeto. Mas peraí, o negócio também não é tão complicado. Veja o soneto Sete anos de pastor. Você se informa sobre a história bíblica tão curtinha em que o poema se baseia, adquire uma noção muito básica de métrica, percebe que aquele soneto é um jeito ritmado de contar a mesma história, e pronto. Em quinze minutos você abriu as portas de preciosas obras a que podemos dar nomes que hoje soam pomposos a nossos ouvidos caipiras, como “quinhentismo português”, “classicismo português” etc.

Agora, se sua escola, em vez de lhe proporcionar isso, preferiu usar o dinheiro dos seus impostos ou da sua mensalidade para dizer que torcer o nariz para quem fala “nós vai” é coisa feia, não apenas ela abusou do seu papel como ainda tentou colocá-lo no perverso jogo do esnobismo universal, como um demônio que pretende arrastar o aluno para o mesmo inferno de onde veio.

E quanto mais bibliotecas gratuitas, mais sites, mais wi-fi nas escolas houver, maior será esse ressentimento, mais disseminada será a interpretação de tudo pelas lentes do esnobismo, porque mais tempo as pessoas preferirão passar vendo vídeos de gatos – e logo vão dizer que isso foi a mesma coisa que passar a tarde lendo Camões.

Obviedades sobre raposas preguiçosas

Nada como ler, já com o dia de trabalho um pouco adiantado, a notícia, destacada na home de um dos maiores portais do Brasil (que não deixa de ser o país dos portais), de que a primeira colocada num mestrado na UFF vai estudar o funk e uma entidade chamada Valesca Popozuda. (Foi só publicar o post que já mudaram para “segunda colocada”.)

Quem tenha feito faculdades na área de Humanas não há de espantar-se. Claro que o portal destaca isso na esperança de gerar escândalo: como assim, estão estudando o vil funk, em vez de Machado de Assis, e com o dinheiro dos nossos impostos? Francamente, até eu partilharia desse escândalo, se já não tivesse passado anos numa faculdade de Letras e não soubesse que esse tipo de trabalho é absolutamente comum.

Mas há algo sim na matéria que merece uma pequena discussão: as declarações da menina de que não existe “hierarquia” entre “alta cultura” e “baixa cultura”, a sugestão de que Valesca Popozuda e José Saramago estão no mesmo patamar.

Isso é sempre muito engraçado. Você pode dizer que Toddy é superior a Nescau, mas não pode dizer que Saramago é superior, enquanto artista, a Valesca Popozuda? Bastaria essa pergunta retórica para encerrar a discussão. O que não me impede de prosseguir, em nome de clareza.

Você pode estudar qualquer coisa e fazer abstração de um juízo de valor. É um princípio metodológico: para entender X, não vamos ficar parando o tempo todo para dizer o que é melhor ou pior. Só que você não pode, no meio do estudo, transformar o seu princípio metodológico em um princípio doutrinal, um princípio em si.

E digo que você “não pode” não como uma proibição externa, mas porque você se contradiz. Então o princípio de que não existe melhor nem pior é em si melhor do que o princípio de que existe melhor e pior? É a mesma coisa de quem diz que a verdade não existe. É verdade que a verdade não existe?

Fica muito fácil entender, assim, o que está em jogo. Você transforma o princípio metodológico em doutrina – se faz isso por má fé ou não, eu sei lá. Depois começa a dizer por aí que não há diferença entre gostar de Saramago e gostar de Valesca Popozuda, e eu só posso imaginar que você se sente esnobado pelos fãs de Saramago e, como uma raposa preguiçosa, diz que a uva da “alta cultura” estava verde.

No fim de tudo, você, com todo o pujante imaginário do cancioneiro funkeiro carioca dos últimos cinco anos (sem dúvida tão rico quanto o da literatura mundial!), ainda vai dizer que eu é que sou o esnobe, conservador, autoritário etc. por dizer essas obviedades.

E, no epílogo dessa história, eu serei apenas obrigado a dizer que a disseminação desse tipo de pensamento, que acha que funk e Saramago são a mesma coisa, está gerando uma elitização fantástica. Nunca os bens culturais estiveram tão acessíveis a qualquer pessoa, e nunca foram tão desprezados. Aliás, para ser mais exato, nunca esteve tão na moda alardear o desprezo por eles.

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